quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Versos Dourados de Pitágoras

Os Versos Dourados de Pitágoras foram usados por Iamblichus na introdução da sua obra “Sobre o Pitagorismo” e por Hierocles nos seus comentários aos mesmos. Apesar de existirem diferentes opiniões sobre a sua autoria, eles expressam a sabedoria da escola Pitagórica e contém os princípios básicos da sua filosofia, ou da Filosofia, servindo como marcas iniciais para o caminho a seguir para a assimilação final com Deus, através da prática e da contemplação da Verdade, sendo os deuses particulares não mais que formas da suprema Divindade.

A presente tradução pessoal foi efectuada a partir do livro “The Golden Chain – An Anthology of Pythagorean and Platonic Philosophy”, com selecções e edição de Algis Uždavinys, na qual se encontra reproduzida a versão inglesa de Kenneth Sylvan Guthrie (Pythagoras Source Book and Library, Platonist Press, 1919).

Que sejam estes os nossos princípios para o Novo Ano.


***

Em primeiro lugar honra os deuses imortais, como manda a lei;
De seguida respeita o seu juramento e depois os ilustres heróis;
Venera de seguida as divindades na terra, cumprindo os seus rituais;
Honra de seguida os teus pais e todos os teus familiares.
Entre os outros faz do mais virtuoso teu amigo!
Preza fazer uso dos seus suaves discursos, e
aprende a partir das suas boas acções;
Mas não te alieneis dos teus adorados camaradas por fúteis ofensas,
Suporta tudo o que conseguires, pois o poder está ligado à necessidade.
Interioriza isto bem no teu coração: deves controlar os teus hábitos;
Primeiro no estômago, depois no sono, e depois no luxo e na raiva.
Aquilo que te envergonha, não faças aos outros nem a ti próprio.
A maior dever é honrar o “eu”.
Permite que a justiça seja praticada nas palavras tal como nas acções;
Depois cria o hábito, nunca desrespeitador a agir;
Nem nunca esquecendo que a morte está destinada a todos;
E que as posses aqui adquiridas, aqui serão deixadas;
Qualquer que seja o infortúnio que os deuses te tenham destinado
Suporta, o que quer que te atinja, com paciência e sem lamentos;
O seu alívio, da forma que possas, é permitido,
Mas reflecte que tal infortúnio o Destino não dá aos de bem.
O discurso das pessoas é variado, por vezes bom, outras vezes maldoso;
Assim, não permitas que te assuste, nem que te desvie do teu propósito.
Se falsas calúnias chegarem aos teus ouvidos, suporta-as com paciência;
No entanto, aquilo que te digo cumpre-o fielmente:
Não deixes que ninguém com o seu discurso ou acções te iluda
para fazer ou dizer o que não é correcto.
Pensa antes de agir, para que nada errado daí resulte;
Agir sem pensar é o que fazem os tolos;
Procura fazer apenas aquilo de que mais tarde não te arrependas.
Não faças nada para além do teu conhecimento,
Procura, no entanto, saber o que precisas:
e assim a tua vida crescerá em felicidade.
Não negligencies a saúde do corpo;
Controla a comida e a bebida, e todo o exercício do corpo.
Por controlo, entendo evitar aquilo que mais tarde te trará dor.
Segue modos limpos de vida, mas não os luxuriosos;
Evita todas as coisas que provoquem inveja.
No momento inadequado, nunca sejas pródigo, como se não soubesses
proceder da forma adequada,
Nem te mostres avarento, pois uma medida adequada é sempre a melhor.
Faz apenas aquilo que não prejudique os outros, e delibera antes de agir.
Nunca permitas que o sono vença os teus olhos cansados;
Sem que três vezes tenhas revisto as tuas acções do dia:
Onde é que pequei? O que fiz? Que dever negligenciei?
Tudo, do princípio ao fim, revê; e se erraste lamenta no teu espírito,
Regozijando de tudo o que foi bom.
Com zelo e esforço isto repete; e aprende a repetir com alegria.
Assim, avança devotamente nos caminhos da virtude divina.
E isto tenho como certo, e juro por aquele que nas nossas almas
colocou o Quaternário Sagrado,
A nascente da eterna Natureza.
Nunca inicies uma tarefa sem teres pedido a bênção dos Deuses.
Se a estes ensinamentos te manteres fiel, brevemente reconhecerás
nos Deuses e nos homens mortais
A verdadeira natureza da existência, como tudo passa e retorna.
Nessa altura verás o que é verdadeiro,
como a Natureza no seu todo é igual.
Para que não esperes por aquilo que não vale a pena esperar,
para que nada te escape.
Encontrarás homens cuja tristeza eles próprios criaram;
Infelizes que não vêem o Bem que está tão próximo, que nada ouvem;
Poucos sabem como se ajudar em alturas de infortúnio.
Este é o Destino que cega a humanidade; em círculos,
Aproxima-te e orienta-os na sua eterna infelicidade;
Pois eles são seguidos por um desesperante companheiro,
a desunião com eles próprios;
Discreto, procura não o despertar, e afasta-te sempre dele!
Zeus, liberta-os de tão colossais sofrimentos,
Ou mostra a cada um o Génio, o qual é o seu guia!
No entanto, não temas, pois os mortais são divinos de raça,
Para quem a Natureza sagrada tudo revelará e demonstrará;
E para quando o receberes, guarda bem o que te ensino;
Curando a tua alma, estarás seguro de todo o mal.
Evita comidas proibidas; reflecte no que isto contribui
para a pureza
e redenção da tua alma. Reflecte bem sobre todas estas coisas:
Deixa que a razão*, a oferta divina, seja o teu mais elevado guia;
E aí estarás separado do corpo, erguido no éter,
Serás imperecível, uma divindade, não mais um mortal.


[* - o Intelecto, não a razão como entendida actualmente]

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Mulheres de Luz no Sufismo

O texto apresentado de seguida, da autoria de Sachiko Murata, foi inicialmente apresentado em 1999 no Congresso Internacional sobre a Mística Feminina, realizada em Ávila, Espanha. A versão a partir da qual foi efectuada esta tradução parcial foi a revista e publicada no Vol. 12 da Sacred Web.

Neste ensaio, Sachiko Murata aborda sobretudo a receptividade humana para com a luminosidade divina, recorrendo à exposição da natureza metafísica das relações de género em termos daquilo que os Sufistas denominaram de “ciência da religião”, em oposição à “ciência do corpo”.

Ao longo do texto, a autora aborda ainda de forma bastante profunda a simbologia do feminino e do masculino, sendo facilmente identificáveis paralelismos com outras tradições, como por exemplo o Yin e Yang da tradição chinesa. Julgo ser este, assim, um óptimo contributo para a compreensão do conceito metafísico de complementaridade das polaridades, presente no pensamento tradicional.

***

O que quero aqui abordar é um outro lado da realidade feminina, o da sua ligação com a realidade da “luz”, a qual é um dos mais importantes nomes Corânicos de Deus. De acordo com o Corão, “Deus é a luz dos céus e da terra”. Aquilo que gostaria de sugerir é a razão pela qual a feminidade é essencialmente luminosa; por outras palavras, porque é que reflecte directamente a luz divina que preenche o universo. Resumindo, pretendo analisar aquilo que pode ser apelidado de “a luz da mulher” e como as mulheres – e os homens – se podem tornar “mulheres de luz”.

Irei começar por citar um dos mais famosos Sufistas da história, Râbi’a, uma santa que morreu durante o oitavo século, ou seja, no segundo século de existência do Islão. Râbi’a tem sido reconhecida como uma das figuras mais importantes do início da história do Islamismo, existindo vários livros sobre ela no Ocidente. Os seus ensinamentos são frequentemente citados por diversos Sufistas, sendo universalmente respeitada como um dos grandes mestres espirituais do início da tradição Islâmica. Um dos seus mais curtos ditos que chegaram até nós é o seguinte: “Tudo tem o seu fruto, e o fruto do reconhecimento é oferecer-se a Deus.”

Estas breves palavras resumem a sabedoria do Sufismo. Aludem ainda para a “luz da mulher.” No entanto, de forma a compreender como tanto conhecimento pode estar contido em tão poucas palavras, temos de olhar atentamente para o dito e reflectir nas várias referências que faz para o Corão e para as palavras do Profeta.

Iniciemos a nossa análise com a palavra “reconhecimento” (ma’rifa). O que pretende dizer Râbi’a ao utilizar esta palavra, “o fruto do reconhecimento é oferecer-se a Deus”? A palavra Árabe é normalmente traduzida como “conhecimento” ou “gnose” mas, especialmente na sua forma verbal, é mais provável que signifique “reconhecimento”, isto é, relembrar conhecimento. Podemos ainda obter alguma ajuda para a compreensão do que nos quer transmitir Râbi’a de um dito de Maomé repetidamente citado pelos Sufistas nas suas obras. É habitualmente traduzido da seguinte forma: “Aquele que se conhece a si próprio conhece o seu Senhor”, ou “conheceu o seu Senhor”. Eu traduziria da seguinte forma: “Aquele que se reconhece a si próprio, reconheceu o Senhor”. Entendo que o significado destas palavras é o de que todos aqueles que verdadeiramente obtêm o conhecimento de si próprio, e que verdadeiramente relembram o conhecimento que têm do seu verdadeiro “eu”, terão verdadeiramente atingido o reconhecimento de Deus.

Quando Râbi’a disse, “o fruto do reconhecimento é avançar em direcção a Deus”, teria certamente esta frase do Profeta em mente. Assim, com a palavra “reconhecimento”, ela pretendia dizer verdadeiro conhecimento e consciência do “eu” e de Deus. Em relação ao “oferecer se” (iqbâl), ela teria sem dúvida em mente o uso desta palavra no Corão. A melhor forma de compreender o seu significado será, provavelmente, através da análise da história de Moisés e da sarça em chamas. O Corão diz-nos que Moisés ficou assustado depois de ter atirado o seu bastão ao chão e deste se ter transformado numa serpente. Deus disse-lhe, “Moisés, oferece-te e não temas. Certamente estás entre os que estão seguros” (28:31).

Em resumo, ao usar a palavra “oferecer-se”, Râbi’a sugere que aqueles que reconhecem Deus avançarão em Sua direcção, serão abraçados por Ele, e serão libertos de todo o receio. Depois de terem sido libertos do medo, eles estarão seguros. Estarão, assim, entre aqueles a que o Corão se refere como awliyâ ou “amigos” de Deus: “Seguramente os amigos de Deus – eles não terão qualquer medo nem se afligirão” (10:62).

Um segundo dito do Profeta contextualiza ainda mais as palavras de Râbi’a. De facto, acredito que ela estivesse a reafirmar este dito profético por outras palavras. O profeta disse: “Conhecimento sem prática é como uma árvore que não dá frutos”. Quando Râbi’a afirma que “Tudo tem o seu fruto, e o fruto do reconhecimento é oferecer-se a Deus”, ela está a referir-se ao conhecimento e prática que foram delineados pelo Corão, pelo Profeta e pelos seus companheiros. O objectivo de todo o conhecimento religioso é reconhecer Deus, e o objectivo de toda a prática é de oferecer-se a Deus, encontrá-Lo, tornar se Seu amigo e viver sem receio. A prática correcta corresponde à imitação do Profeta seguindo a Shariah (a lei revelada) e cumprindo a Sunna, o modelo exemplar que ele estabeleceu durante a sua vida.

Resumindo, Râbi’a afirma que, comandando as pessoas a perseguir o conhecimento, o Corão e o Profeta estão a dizer-lhes para procurarem e reconhecerem Deus nelas próprias e em todas as coisas, e para obterem total consciência do que estão a reconhecer; e, ordenando-as a praticar, dizem-lhes para se oferecerem sinceramente a Deus e para abandonarem todas as distracções deste mundo. Isto, afirmo, é praticamente a definição de Sufismo, uma vez que aponta para a concentração única em Deus que todos os verdadeiros Sufistas procuram atingir, uma concentração que combina um adequado conhecimento da natureza das coisas com uma adequada actividade.

*

Vou agora abordar a questão da “luz”. É necessário começar por referir que na tradição Islâmica, e sobretudo na versão focada desta tradição conhecida como Sufismo, nada pode ser compreendido enquanto não situado em relação a Deus. Deus é a Realidade criadora do universo e o ponto de referência absoluto. Se não compreendemos como algo está relacionado com esta Realidade Última, então é porque não a compreendemos. Ou melhor, não a reconhecemos por aquilo que é. Assim que “reconhecermos” o que é, tal implicará “oferecer-se a Deus”, como Râbi’a o afirma.

Usando a terminologia Islâmica, existem duas formas básicas para a compreensão ou dois tipos de conhecimento. Tal como se diz ter afirmado o Profeta: “O conhecimento é de dois tipos – conhecimento do corpo e conhecimento da religião.” O conhecimento do corpo é o conhecimento comum que obtemos através do nossos próprios meios. Permite que nos orientemos para o mundo nos termos do mundo. O outro tipo de conhecimento permite que nos orientemos em direcção a Deus. O primeiro tem uma utilidade temporária, de nada nos servindo após a morte. Quando o Profeta disse que o conhecimento exige a prática como seu fruto, ele referia-se ao verdadeiro conhecimento da natureza das coisas e à prática verdadeira, ou seja, aquela que traz benefícios permanentes ao ser humano e não apenas temporários. Os verdadeiros benefícios e os verdadeiros frutos só podem ser obtidos através do segundo tipo de conhecimento, o conhecimento da religião.

Se questionássemos Râbi’a ou qualquer outro Sufista sobre as “mulheres de luz”, eles começariam por falar sobre a luz do ponto de vista do conhecimento da religião. Eles nos diriam para não nos preocuparmos tanto com o conhecimento do corpo que nos mantém ocupados com os nossos preconceitos sobre a sociedade e a psicologia, e com os nossos próprios conceitos como os de “justiça” e “igualdade”. Eles nos diriam que se querermos compreender as mulheres, ou se queremos compreender os homens, devemos pedir a Deus que permita que nos reconheçamos a nós próprios e que reconheçamos o nosso Senhor. Devemos orar a Deus com as Palavras de Maomé, “Deus, mostra-nos as coisas como são”. Todos os seres humanos, quer sejam homens, quer sejam mulheres, tem o mesmo objectivo na vida. Este objectivo é conhecer a Luz suprema e ser iluminado por ela.

Para reconhecer a Luz suprema é necessário que nos reconheçamos a nós próprios. Temos de saber quem somos e como estamos situados em relação à Realidade Última. “Aquele que se reconhecer a ele próprio reconhece o seu Senhor”. De forma a conhecer Deus como Luz, é necessário que nos reconheçamos como luz. Numa famosa oração do Profeta é dito:

Deus, coloca no meu coração uma luz, na minha audição uma luz, na minha visão uma luz, na minha mão direita uma luz, na minha mão esquerda uma luz, à minha frente uma luz, atrás de mim uma luz, sobre mim uma luz, sob mim uma luz, e faz de mim uma luz.

Nesta oração, o Profeta pede a Deus que lhe mostre a luz que ele possui nele próprio porque ele foi criado a partir da Luz Suprema. Só quando encontrarmos luz em nós próprios podemos reconhecer Deus como Luz.

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Regressemos agora ao tema da “mulher”. O que é que estabelece a relação entre a mulher e a luz, de tal forma que possamos falar de “mulheres de luz”. Em termos do Sufismo, tal mulher seria alguém que teria sido em tal medida transformada por conhecimento e prática que Deus lhe teria dado luz no seu coração, na sua audição, na sua visão, etc., tendo Deus a “feito uma luz”.

Uma forma de compreender o que são as “mulheres” é as conceptualizar em relação aos seus opostos. Assim, as mulheres podem ser compreendidas em relação aos homens, e os homens em relação às mulheres. Quais são então as qualidades e atributos contrastantes que nos permitem distinguir as mulheres dos homens?

Regra geral, o pensamento Islâmico entende a masculinidade como uma qualidade de actividade, controlo, autoridade, domínio, força, poder e grandeza. A feminidade manifesta as qualidades complementares – receptividade, aquiescência, submissão, entrega, fraqueza, cedência, humildade.

Quando Deus é entendido em oposição ao mundo, Ele é tipicamente caracterizado em termos de atributos masculinos, uma vez que ele é omnipotente e tem controlo total sobre todas as coisas. Em contraste, quando o mundo é caracterizado em relação a Deus, este é entendido em termos de qualidades femininas, pois não tem nada para além de receptividade. Este não pode ter qualquer actividade própria, apenas pode receber de Deus. Isto não é o mesmo que dizer que não tem actividade, mas sim que apenas obtém actividade através da aquisição das actividades do Senhor, o qual é o único Actor. Quando as criaturas de Deus recebem a actividade do Senhor e estão cientes da sua recepção, nessa altura podem ser os Seus servos perfeitos, agindo como Deus quer que eles ajam.

É claro que Deus tem em Si próprio qualidades masculinas e femininas, Ele é masculino quando é o Irado, o Severo, o Poderoso, o Tirador de Vidas, o Humilhador. Por outro lado, Ele é feminino quando é o Misericordioso, o Tranquilo, o Receptivo, o Dador de Vida.

Tal como Deus é descrito em termos de uma polaridade de atributos masculinos e femininos, o mesmo acontece frequentemente com o universo. O Céu é ascensor, dominante, controlador e masculino. A terra corresponde a descida, é subserviente, receptiva e feminina.

Muitas passagens poderiam ser citadas a partir de obras Sufistas que descrevem o universo como conjuntos de pares contrastantes ordenados de uma forma hierárquica de Deus para o mundo. Nestas descrições, o atributo mais elevado e dominante é representado como masculino, enquanto que o atributo inferior e receptivo é representado como feminino. No entanto, o género de algo não é fixo, uma vez que muda na medida em que o vemos como receptivo para algo mais elevado ou activo em direcção ao inferior (e.g., o céu é feminino em relação a Deus mas masculino em relação à terra).

Da mesma forma, os ensinamento psicológicos Islâmicos – os quais correspondem a descrições do ser humano saudável e completo – utilizam o imaginário do masculino e do feminino para descrever a natureza do “eu” humano. O “eu” ou alma é entendido como constituído por vários níveis, cada um destes com uma relação particular com os restantes. Usualmente, o “eu” é descrito como um microcosmo espelhando a estrutura vertical do macrocosmo.

Quando a alma é entendida como uma hierarquia de níveis, o seu nível mais elevado é o intelecto, e este, na terminologia Islâmica, é uma “luz”. O Profeta disse, “A primeira coisa que Deus criou foi a minha luz,” e disse ainda, “A primeira coisa que Deus criou foi o Intelecto”. Os Sufistas designam esta primeira luz como o “Primeiro Intelecto” e a “Realidade Maometana”, e consideram-no o protótipo do universo e da alma individual, do microcosmo e do macrocosmo. O paralelismo com a doutrina Cristã do Logos é comummente referido.

Quando o Profeta pediu a Deus para que Ele “faça dele uma luz”, ele pedia a Deus que fizesse com que a luz dos mais altos níveis do seu ser, o intelecto, dominasse sobre todos os restantes níveis inferiores do seu ser, incluindo o seu corpo. Quando ele pediu a Deus que colocasse uma luz no seu coração, na sua visão, na sua audição, e em todos as partes do seu corpo, ele pedia a Deus que lhe revelasse a luz essencial da sua própria realidade, a qual foi a primeira coisa criada por Deus. O Profeta mostra a todos os seres humanos, os quais foram criados da mesma luz essencial, que eles apenas podem atingir a sua própria perfeição e reconhecer-se verdadeiramente a si próprios, se a luz escondida da sua própria essência fluir a partir do seu centro e conquistar a sua escuridão.

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Outro famoso dito profético sugere algo sobre a natureza da luz que o Profeta pede a Deus que brilhe sobre ele. Estas são as palavras que explicam o que acontece quando o servo realiza todas as suas tarefas através do reconhecimento do seu ou da sua vassalagem para com Deus. Quando o servo se oferece a Deus através da prática que Deus lhe exige, este acto faz descer o amor de Deus. Nesta haddith, o Profeta releva-nos que Deus diz, “Quando Eu amo o Meu servo, Eu sou a audição pela qual ele ouve, a visão pela qual ele vê, a mão com que ele segura e os pés com que ele caminha.”

É importante não esquecer que estas palavras são proferidas por Deus, a Luz dos céus e da terra. Quando Deus ama o Seu servo, o servo é preenchido com a luz de Deus. Quando Deus preenche o Seu servo com a sua luz, o servo ouve com a luz de Deus, vê com a luz de Deus, caminha com a luz de Deus, segura com a luz de Deus. Por outras palavras, Deus colocou uma luz nos seus olhos, uma luz nos seus ouvidos, uma luz em todas as partes do seu corpo e transformou-o numa luz.

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Para conhecer a natureza da luz é necessário reflectir um pouco sobre o seu oposto, a escuridão. A Luz das luzes é Deus, e luz é inteligência, entendimento, e a fonte de toda essa percepção e compreensão. Daqui se deduz que “escuridão” é a ausência de Deus, a ausência de inteligência e a ausência de percepção e compreensão. No entanto, nada pode estar totalmente ausente da presença de Deus ou destas qualidades, caso contrário não existiria. Isto significa que o único oposto de Deus é a própria inexistência, o que não existe. Assim, Deus não tem oposto. Por outras palavras, não existe algo como “absoluta escuridão”. No entanto, existe algo como “absoluta luz”, Deus.

Se não existe escuridão absoluta, existe, no entanto, muita “escuridão relativa”. Todos nós sentimos escuridão relativa a maior parte do tempo. É a ignorância, a falta de entendimento, a inconsciência, estupidez, fealdade e o mal, tão obviamente em nós e nos outros.

Eu sugeri aquilo que uma “mulher de luz” poderá ser, mas poderemos falar também de uma “mulher da escuridão”? É claro que podemos. Não existe qualquer garantia que uma mulher – ou um homem – irá revelar a luminosidade divina. Na terminologia Islâmica, falar de “mulheres de escuridão” seria discutir a receptividade ao mal, ou a qualidade de aquiescência onde ela não deveria existir. Receptividade para com a luz é positivo, mas a receptividade para com a escuridão é a fonte de toda a ignorância e fealdade.

Em resumo, não pretendo sugerir que o pensamento Islâmico entende o princípio feminino como necessariamente luminoso. Na sua essência é luminoso, mas pode ser pervertido e obscurecido. Da mesma forma, o princípio masculino é essencialmente luminoso podendo, no entanto, ser pervertido e obscurecido.

Se considerarmos o feminino e o masculino em termos dos critérios mais comuns, ou seja, em termos da “ciência do corpo”, veremos que, quer um quer o outro, podem ser bons ou maus, dependendo dos padrões que adoptarmos para o nosso julgamento. Tudo depende do critério que escolhemos. A este nível, tudo é uma mescla obscura de luz e escuridão, sem quaisquer padrões que permitam distinguir entre a luz real e a escuridão real.

No entanto, os Sufistas preferem considerar o feminino e o masculino em termos da “ciência da religião”, ou em termos do verdadeiro reconhecimento. Só assim podem falar do bem e do mal, da luz e da escuridão, em termos reais. Deste ponto de vista, a luz da mulher aparece em todas as coisas do universo que manifestam a luz de Deus através da sua submissão à actividade criativa de Deus. Nesta perspectiva, todas as coisas são mulheres luminosas, uma vez que todas as coisas se submeteram a Deus e O servem como Seus servos. Ser um servo de Deus é ser uma mulher perante Deus. Quando o mundo é entendido simplesmente como uma criatura de Deus, não existem mulheres de escuridão, pois tudo é um sinal de Deus, uma manifestação do poder criador de Deus.

Ao nível humano, no entanto, é necessário distinguir entre “mulheres de luz” e “mulheres de escuridão”. Mulheres de luz são todos os seres humanos, homens ou mulheres, que se submetem livremente aos ensinamentos e vias de Deus. Mulheres de escuridão são todos os seres humanos, homens ou mulheres, que se submetem livremente a qualquer coisa que os afaste de Deus.

Ao usar o termo “submissão”, tenho em mente a palavra árabe islâm. No Corão, existem dois tipos básicos de muçulmanos, ou seja, dois tipos básicos de criaturas submissas a Deus. Por um lado, todas as coisas criadas são muçulmanas, uma vez que todas são Suas criaturas. O Corão diz, “Para Deus se submeteu [islâm] todas as coisas nos céus e na terra” (3:83). Por outro lado, as únicas criaturas que merecem ser apelidadas de muçulmanas são os seres humanos que livremente se submetem a Deus seguindo um dos 124 000 profetas enviados por Deus à raça humana.

Assim, na terminologia do Corão, ser um verdadeiro muçulmano implica a submissão livre a Deus e receptividade para com a Sua luz orientadora. A primeira coisa solicitada a alguém que queira ser verdadeiramente muçulmano é que aceite livremente que é uma “mulher”, no sentido da palavra que tenho usado. Não podemos ser totalmente humanos sem nos rendermos totalmente a Deus, ou seja, não podemos ser totalmente humanos sem actualizarmos a luz da feminidade. Através da entrega a Deus, “oferecemo-nos” a Deus e afastamo-nos de toda a escuridão da feminidade, a qual aumenta quando nos oferecemos ao mundo e não a Deus.

Visto em termos da sua natureza criada, todos os seres humanos são “femininos” antes de terem quaisquer outras qualidades, o que equivale a dizer que eles são inicialmente entregues e submissos ao comando criador de Deus. Como todas as restantes coisas, eles chegaram a Deus como servos e obedecem Lhe em absoluto. As dificuldades surgem na nossa condição humana quando não conseguimos ver que somos por natureza mulheres, ou quando pretendermos ser homens quando na realidade somos mulheres. Em relação a Deus, todos os seres humanos devem escolher ser mulheres. A forma de alcançar este objectivo é reconhecer a nossa própria receptividade e natureza por aquilo que é.

Assim que reconhecermos a nossa natureza feminina, teremos reconhecido o domínio e a autoridade do nosso Senhor. Só assim podemos compreender a hadith sobre o reconhecimento do “eu” como significando o seguinte: “Quem reconhecer a feminidade do seu próprio “eu”, reconheceu a masculinidade do Senhor”. Quem sabe que ele ou ela é na verdade uma mulher, compreendeu que Deus é a origem de todo o poder e autoridade e que apenas Deus merece ser apelidado de “senhor”, “mestre”, e “homem”.

Como comentário final, vou voltar ao dito de Rabi’â com o qual comecei. “Tudo tem o seu fruto, e o fruto do reconhecimento é oferecer-se a Deus.” Rabi’â está simplesmente a dizer que quando as pessoas se reconhecem a elas próprias por aquilo que verdadeiramente são, elas não terão outra alternativa senão oferecer-se a Deus, uma vez que Deus é a origem dos seus “eus” e de todas as coisas. Elas não terão outra alternativa senão renderem-se a Deus de livre vontade. Mas, ao fazê-lo, cada uma delas, homem ou mulher, serão uma mulher de luz.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Sachiko Murata

Sachiko Murata é actualmente professora de religião e estudos asiáticos na State University of New York. Fez a sua formação inicial em direito no Japão, tendo posteriormente frequentado a Universidade de Teerão onde foi a primeira mulher a estudar fiqh (jurisprudência Islâmica).

Durante a sua estadia no Irão, estudou a tradição sapiencial Islâmica com notáveis autoridades no assunto como Toshiko Izutsu e Seyyed Hossein Nars, tendo traduzido um clássico Islâmico sobre teoria da jurisprudência para Japonês. Concluiu posteriormente o seu Ph.D. em literatura Persa tendo, no entanto, sido forçada a abandonar o país em conjunto com o seu marido William Chittick após a Revolução Iraniana.

Murata fixou-se em Stony Brook, Nova York, onde ensina Islamismo, Confucionismo, Taoísmo, e Budismo. É autora de vários livros incluindo “The Tao of Islam”, “Chinese Gleams of Sufi Light”, “The Vision of Islam (onde é co-autora com o seu marido) e “Temporary Marriage in Islamic Law”.


Publicações no “Sabedoria Perene”:

sábado, 1 de dezembro de 2007

Provas de Deus?

A ideia para a publicação da presente tradução de um curto trecho de um artigo de James Cutsinger surgiu da leitura de uma recente publicação no blog Espectadores, no qual se travam frequentemente árduas batalhas com o ateísmo generalizado da nossa sociedade actual. Aqui fica uma pequena contribuição.

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Finalmente, não, o ateísmo não é a posição mais inteligente. Pelo contrário, o ateísmo contradiz-se a si próprio. Pense-se no seu fundamento. O ateu afirma, “Deus não existe”. Ora, quem declara “isto não existe”, está a afirmar algo que um especialista em lógica classificaria como uma proposição negativa universal, seja qual for a coisa a que se esteja a referir. É negativa porque afirma “não” e nega algo, e é universal porque o plano que abrange é ilimitado. Se eu afirmasse, “não existe um ornitorrinco nesta capela”, eu estaria também a expressar uma afirmação negativa mas não universal, uma vez que o contexto estaria restrito a este edifício e poderíamos verificar a veracidade ou falsidade da minha afirmação atribuindo a alguém na sala a função de revistar minuciosamente o edifício, criando-se um exercício sistemático de caça ao ornitorrinco. Repare-se, no entanto, que quando um ateu afirma, “Deus não existe”, ele não está a dizer, “Não existe Deus nesta capela”, ou “Não existe Deus em Greenville”, ou “Não existe Deus na nossa galáxia”. Ele está a dizer, “Não existe Deus em qualquer parte de todo o universo, não existe Deus em qualquer parte da total extensão da realidade”. Mas ao afirmar tal coisa ele está a indicar que fez essa procura. Ele inspeccionou cuidadosamente todos os buracos e fendas da existência, tal como seria necessário inspeccionar todos os buracos e fendas do edifício para verificar que aí não existia qualquer ornitorrinco. No entanto, se ele procurou verdadeiramente todos os locais onde é possível procurar – se ele pode honestamente afirmar que verificou pessoalmente toda a extensão da realidade – deste facto resulta que ele terá de ser omnisciente. No entanto, a omnisciência é um atributo de Deus. Assim, ao afirmar que “Deus não existe”, um ateu está implicitamente a declarar ser Deus e, assim, inevitavelmente a contradizer-se.

Gostaria ainda de colocar mais umas questões antes de prosseguir. Ao longo da minha palestra referi algumas autoridades chave de algo que podemos chamar de “tecnologia” da vida espiritual, e pergunto-me se conhecem alguns deles. Por exemplo Patanjali? Não, tal como pensava. E Nicephorus o Solitário? Também não. Talvez Jalal al-Din Rumi? Estão cautelosamente a abanar afirmativamente a cabeça para este, imagino que o nome soe familiar, talvez pela popularidade da sua poesia. Mas será que estudaram os seus ensinamentos? Não. Bem, deixem-me perguntar o seguinte: já alguma vez tentaram se concentrar num só pensamento, e notaram que é impossível manter essa concentração por mais de dois ou três segundos? Sim, então trata-se de uma experiência familiar. Estão familiarizados com o facto de que a nossa consciência comum do dia a dia é altamente indisciplinada – na realidade, praticamente fora do nosso controlo.

Este é o meu ponto de vista: cada um destes três sábios que mencionei – o primeiro, Pantajali, o mais renomeado professor Hindu de yoga; o segundo, Nicephorus o Solitário, um mestre do Hesicasmo do Cristianismo Oriental; e o terceiro, Jalal al-Din Rumi, foi uma grande shaykh Sufi – cada um deles ensinou aos seus discípulos um método para adquirir o controlo da sua consciência, de forma a estabelecer um estado de quietude ou estabilidade que possa servir como um portal para níveis, modalidades ou dimensões de consciência normalmente velados ou adormecidos, dimensões a partir das quais e nas quais eles poderão experimentar directamente a Fonte Última de Todas as Coisas.

Vocês procuram evidências. Querem que alguém que vos “mostre” Deus. Muito bem, estes e outros mestres, quer do passado quer do presente, estão totalmente preparados para vos assistir nessa tarefa. Mas eles vão requerer aquilo que qualquer “cientista sério” como vós próprios reconhece como essencial quando se pretende testar uma qualquer teoria: nomeadamente, que se entre no laboratório, que neste caso é a mente, seguindo cuidadosamente os procedimentos e usando os equipamentos que estes cientistas espirituais oferecem. Até que isto tenha sido feito, peço desculpa, mas será um sinal de ignorância pensar que as afirmações das religiões do mundo não são verificáveis.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Inspirador de Fé (Al-Mumin)

Al-Mumin










Quanto tempo dirás,
“Eu conquistarei todo o mundo e o preencherei com o meu ser”?
Mesmo se um manto de neve cobrisse o mundo por completo,
o sol poderia derretê-la num instante.
Uma única centelha da misericórdia de Deus
poderia transformar veneno em água pura.
Onde existe dúvida,
Ele estabelece a certeza.

[Jalâluddîn Rumi, Mathnawi I:542-546fonte: Sufism.org]

sábado, 10 de novembro de 2007

A Buddhist Spectrum

Este livro, “A Buddhist Spectrum”, reflecte a sabedoria adquirida durante mais de meio século de estudo e de experiência vivida no Budismo Tibetano, bem como do estudo de outras religiões. Marco Pallis, dado a conhecer ao público com o seu trabalho “Peaks and Lamas”, o qual introduziu pela primeira vez no Ocidente a tradição integral do Tibete vista numa perspectiva Tradicionalista, escreveu ao longo da sua vida um importante conjunto de ensaios, na sua maioria dedicados ao Budismo, grande parte dos quais vieram a ser publicados nos seus dois livros publicados posteriormente.

Este livro, tal como indica o seu título, lida com uma grande variedade dos mais importantes aspectos da Tradição Budista, sendo simultaneamente uma obra dedicada à religião comparada, baseada sobretudo no encontro entre o Budismo e o Cristianismo. O objectivo de Pallis foi apresentar o Budismo como um upaya para a salvação e oferecer uma chave para a compreensão profunda dos seus ensinamentos tradicionais. Adicionalmente, a sua obra serve como um antídoto para as incompreensões resultantes da exposição de uma versão secularizada do Budismo tão dominante no mundo Ocidental.

Seyyed Hossein Nars disse em relação a esta obra: “A Buddhist Spectrum é simultaneamente um dos mais acessíveis trabalhos sobre o Budismo e uma grandiosa obra dedicada ao estudo de diferentes religiões e da sua espiritualidade. É o fruto dos pensamentos e das meditações de um homem cuja autoridade da sua exposição sobre questões religiosas e, em particular, o Budismo na sua forma Tibetana, teve uma profunda influência em muitos estudiosos e praticantes de religião, quer no Ocidente, quer no Oriente”.

Esta obra publicada pela World Wisdom é constituída pelos seguintes dez ensaios:

I – Living One’s Karma
II – The Marriage of Wisdom and Method
III – Is There a Problem of Evil?
IV – Is There Room for ‘Grace’ in Buddhism?
V – Considerations on the Tantric Alchemy
VI – Nembutsu as Remembrance
VII – Dharma and the Dharmas
VIII – Metaphysics of Musical Polyphony
IX – Anattâ
X – Archetypes, as Seen Through Buddhist Eyes

Virtude

Uma virtude apenas é um símbolo de imortalidade na condição de ser fundada em Deus; este facto atribuí-lhe um carácter simultaneamente impessoal e generoso. Uma qualidade que seja puramente natural - e não validada por uma atitude espiritual que a envolva de vida divina - não tem mais importância para Deus do que o "metal que tine". [Frithjof Schuon - Spiritual Perspectives and Human Facts]

Marco Pallis

Marco Pallis nasceu em 1895, filho de pais Gregos residentes em Liverpool, tendo recebido a sua educação em Harrow e na Universidade de Liverpool. Serviu durante a Primeira Grande Guerra o exército Britânico, tendo-se posteriormente dedicado ao estudo de música sobre a alçada de Arnold Dolmetsch. O seu crescimento intelectual foi muito influenciado pelas obras de dois grandes perenealistas, Ananda Coomaraswamy e René Guénon, tendo visitado o último duas vezes no Cairo e traduzido dois dos seus livros com o seu amigo Richard Nicholson.

Em 1923 Pallis visitou pela primeira vez o sul do Tibete numa expedição de montanha, tendo aí regressado nos anos de 1933 e 1936, fruto de um profundo interesse pela sua cultura tradicional, visitando os mosteiros em Sikkin e Ladakh. Depois da Segunda Grande Guerra regressou para uma visita mais prolongada, altura em que, após visitar o Ceilão e o Sul da Índia, tendo recebido o darshan de Ramana Maharshi em Tiravunnamalai, se fixou perto de Shigatse onde estudou com lamas Tibetanos e foi iniciado numa das linhagens com o nome Tibetano de Thubden Tendzin.

Pallis regressou a Inglaterra em 1950 quando, em conjunto com Richard Nicholson e outros músicos, formou o “English Consort of Viols”, um grupo dedicado à preservação de música Inglesa antiga.

Escreveu dois livros resultantes das suas experiências durante a estadia no Tibete: Peaks and Lamas (1939), o qual se veio a tornar um bestseller, e The Way and the Mountain (1960). Constituem um conjunto único de ensaios sobre a cultura Tibetana e o Budismo Tibetano.

A obra de Pallis é totalmente livre das comuns assumpções de superioridade do Ocidente, derivando grande parte dos seus livros de uma receptividade para com as lições da Tradição que ainda sobrevivia na altura no Tibete. Pallis atingiu algum conhecimento público quando participou na exposição da farsa de Lobsang Rampa.

Pallis escreveu inúmeros artigos para a publicação “Studies in Comparative Religion”, alguns dos quais foram incluídos na sua última publicação, A Buddhist Spectrum (2004). Huston Smith, um dos mais prestigiados estudiosos de religião escreveu sobre a sua obra, “Para a compreensão, e a beleza que essa compreensão necessita para ser efectiva, não encontro nenhum autor que o ultrapasse no que diz respeito ao Budismo”. Marco Pallis deixou-nos em 1989.


Bibliografia:

Peaks and Lamas (1939)
The Way and the Mountain (1960)
A Buddhist Spectrum (2004)


Publicações no “Sabedoria Perene”:

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Studies in Comparative Religion

Os primeiros resultados do projecto da World Wisdom de recuperação da primeira e mais importante publicação periódica em língua inglesa dedicada aos estudos da Tradição, a "Studies in Comparative Religion", estão finalmente disponíveis, contendo já um considerável número de artigos disponíveis para consulta.

Esta publicação, fundada em 1963 por Francis Clive-Ross e em actividade durante 25 anos, foi contemporânea de muitos dos mais importantes escritores tradicionalistas, tais como Schuon, Burckhardt, Pallis, Lings, W. N. Perry e muitos outros, os quais eram seus colaboradores assíduos, tendo sido possível manter uma elevada qualidade durante toda a sua existência.

Este projecto, para além de disponibilizar todos os artigos publicados ao longo dos 25 anos de vida da "Studies in Comparative Religion", pretende retomar a sua publicação, estando prevista a edição de novos números a partir do próximo ano.

Para mais informação consultem o site: Studies in Comparative Religion. Mais uma vez está de parabéns a World Wisdom.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Spiritual Perspectives and Human Facts

Este livro de Frithjof Schuon, a sua terceira obra e publicado pela primeira vez em 1953 pela editora Cahiers du Sud, é constituído por um conjunto de meditações sobre a tradição e a civilização moderna, a arte, a vida espiritual, a metafísica e as virtudes espirituais, sendo este último tema alvo de uma extensa discussão. De extrema importância é ainda um capítulo dedicado à comparação entre as perspectivas do Sufismo e do Vedānta.

Esta nova edição da World Wisdom, dirigida por James S. Cutsinger, contém, para além de um conjunto importante de notas que ajudam à compreensão da obra, um apêndice com uma selecção de cartas e textos pessoais escritos por Schuon, os quais são publicados pela primeira vez.

Fiquemos com algumas das palavras de Schuon que prefaciaram a sua obra em 1988.

“Esta colecção de textos, escritos por volta do meio do século – anteriormente a muitos dos restantes livros – difere destes na medida em que, ao invés de se tratarem de artigos, consistem de extractos de cartas, notas das nossas leituras, e reflexões surgindo independentemente de circunstâncias exteriores e organizados posteriormente em forma de capítulos. Sendo assim, Spiritual Perspectives and Human Facts, contém assuntos que não abordámos noutros livros, nomeadamente no que diz respeito ao Cristianismo, ao Vedānta, psicologia espiritual e o simbolismo das cores; (…)”

Procuraremos traduzir alguns dos maravilhosos trechos que abundam neste livro para futuras publicações no "Sabedoria Perene", recomendando-se, no entanto, a leitura integral desta obra de Frithjof Schuon, sobretudo as suas meditações sobre as virtudes.

domingo, 21 de outubro de 2007

Tradição como Função Espiritual

Neste texto é apresentado um resumo das principais ideias contidas num brilhante artigo de Reza Shah-Kazemi, intitulado “Tradition as Spiritual Function: A “Perennialist” Perspective”, o qual foi inicialmente publicado no Volume 7 da Sacred Web e que foi disponibilizado para a Religioperennis.org onde pode ser consultado, recomendando-se vivamente a sua leitura [ler artigo].

O tema abordado neste artigo é, segundo a própria opinião do autor, um dos aspectos fundamentais da tradição religiosa, a função espiritual da tradição, ou seja, os meios com os quais as diferentes tradições religiosas indicam o caminho para a realização espiritual, isto é, a realização interior das verdades espirituais contidas nos seus ensinamentos. Esta função espiritual pode ser referida de várias formas: o “método” que acompanha a “doutrina”, a “praxis” que complementa a teoria, a “actividade” que aprofunda o “pensamento”. É, em resumo, um esforço da vontade para assimilar o que foi conceptualmente apreendido na mente; é um caminho que nos leva da cabeça para o coração. Pode ainda ser referida como “oração”, entendida esta como incluindo todos os meios pelos quais a alma se dirige à “única coisa necessária”, ou seja, petição pessoal, oração canónica, meditação, contemplação, concentração e invocação.

Segundo os Perenialistas, a oração envolve todos os caminhos que tornam possível o contacto e o assimilar do Absoluto, bem como os meios para nos transcendermos, residindo aqui a importância da Tradição. A Tradição pode ser compreendida como o primeiro ponto de contacto entre a alma e as verdades reveladas por Deus e transmitidas através da tradição; verdades estas que são simultaneamente transcendentes e imanentes e, assim, infinitamente acima e misteriosamente no interior da alma, não estando, no entanto, acessíveis excepto por meio de graças transformativas provenientes das manifestações exteriores da transcendência divina, tendo sido veladas pelo esquecimento, tal como afirmado por todas as grandes tradições.

A “ciência” da Tradição está, assim, directamente relacionada com um recordar espiritual, uma necessidade que é simultaneamente cognitiva e existencial, implicando, não só o relembrar de uma verdade esquecida, mas também o “recordar”, no sentido de reunir as realidades imanentes escondidas no interior da alma com as realidades transcendentes acima dela.

O autor foca de seguida a sua atenção no carácter primordial que os Perenialistas atribuem à Tradição. O aspecto mais importante que é referido está relacionado com o facto daquele carácter primordial não poder ser entendido de uma forma exclusivamente temporal, mas também num sentido “espacial” ou “central”, pois é esta realidade primordial que se acredita ser a substância nuclear de todas as diferentes tradições reveladas. Uma das mais citadas passagens extraídas dos textos sagrados sobre esta realidade interior das religiões é também citada pelo autor, sendo retirada do Corão: “Para cada um de vós prescrevemos uma Lei e um Caminho. E se Deus tivesse desejado Ele teria vos feito apenas uma comunidade. Mas Ele deseja testar-vos com aquilo que Ele vos deu. Por isso, rivalizem entre vós em boas acções. Para Deus é o vosso retorno, e Ele vos informará sobre aquilo que vos distingue.” (V:51).

Esta e outras passagens, não só do Corão mas também de outros textos sagrados de tradições reveladas, providenciam uma base para o entendimento das religiões como sendo várias revelações de apenas uma Realidade última, suportando a ideia da “unidade transcendente das religiões”. No entanto, e ao contrário do entendimento que muitos poderão ter desta ideia, a perspectiva específica dos perenialistas está, não no facto de poderem existir vários caminhos para o cume, mas sim no facto de, para além de assumirem a existência desse cume, lançarem-se na subida que a ele os dirige, traduzindo-se na prática dos elementos mais essenciais da religião de cada um. “Este ênfase, longe de implicar a descoberta de qualquer nova “religião”, pelo contrário, procura aprofundar o compromisso com a actual religião de cada um, respeitando todas os seus requisitos exotéricos, enquanto penetrando nas suas profundezas esotéricas” [sublinhado nosso].

Nesta perspectiva, a especificidade de cada uma das tradições religiosas é garantida, sendo cada uma delas única e irredutível. No entanto, num nível principial, as distinções entre formas dão lugar a realidades universais, preocupando-se a perspectiva metafísica dos perenialistas com a relação entre qualidades particulares e princípios universais.

Voltando à palavra Tradição, o autor cita uma descrição de Marco Pallis em que este considera a Tradição como uma categoria genérica que compreende todas as várias tradições que constituem e transmitem a religio/sophia perennis:

"...onde quer que uma tradição completa exista, isso implicará a presença de quatro coisas, nomeadamente: uma fonte de (…) Revelação; uma corrente de influência ou Graça emitida a partir dessa fonte e transmitida ininterruptamente através de uma variedade de canais; um meio de “verificação”, o qual, quando rigorosamente seguido, conduzirá o sujeito humano para sucessivas posições em que poderá “actualizar” as verdades comunicadas pela Revelação; e finalmente, um corpo formal de tradição – as doutrinas, as artes, as ciências e outros elementos que em conjunto determinam o carácter de uma civilização normal”.

Continuando com as palavras de Marco Pallis e com uma sua expressão, “a voz da sabedoria tradicional”, a qual apela aos seres humanos para terem em consideração as suas imperfeições e as suas possibilidades, o autor diz-nos que a Tradição deve tornar-se viva nas nossas mãos, que devemos ser “metamorfoseados” por ela, e que o início desta metamorfose reside na nossa capacidade de reconhecer que necessitamos dela, que ansiamos urgentemente pelo Absoluto.

Este aspecto é precisamente um dos mais sensíveis para o homem moderno, a asserção de que estamos num estado sub-humano e que precisamos de sofrer as transformações estipuladas pela sabedoria tradicional, de acordo com um método espiritual. Outra dificuldade para a mente irrequieta do moderno traduz-se no sentimento geral de: se as verdades últimas estão no interior da nossa alma, porque é que temos de seguir uma revelação e os seus requisitos formais? A resposta dada pela perspectiva perenialista é a de que, se cada indivíduo fosse capaz de realizar essas verdades últimas apenas com os seus próprios recursos, então essas verdades que teriam sido oferecidas à humanidade por Deus seriam redundantes; e quem a este argumento responde que apenas alguns terão essa capacidade para dispensar os meios cedidos pelo Absoluto, considerando-os como possíveis e não exclusivos, a resposta perenialista é que esse indivíduo se estaria a auto-denominar um santo. O autor volta a analisar este aspecto mais à frente, pelo que vamos também continuar, levantando a pergunta “o que devo fazer” para responder à “voz da sabedoria tradicional”? As seguintes palavras de Marco Pallis voltam a servir de guia:

“O primeiro passo (…) será tipicamente um passo negativo; (…) uma renúncia á vida governada pelas preocupações profanas, de forma a procurar o conhecimento que resulta do ego parar de se considerar divino. Para nos prepararmos para a missão que temos pela frente, sentimo-nos obrigados a respeitar uma disciplina não criada por nós; e isto é precisamente o que as prescrições exteriores das religiões nos oferecem, sendo o seu propósito controlar o nosso ser ao longo da estadia terrena (…) tratada de forma inteligente, uma lei religiosa não precisa de ser perturbante; mas de qualquer forma a sua dureza e a sua suavidade deverão ser aceites como parte de um todo orgânico tradicional”.

Subjectivamente, esta importante submissão, derivada da humildade e que Pallis designa por “uma disciplina não criada por nós”, está longe de poder ser associada a um conformismo, devendo, pelo contrário, ser entendida como um meio de modéstia pessoal, um esforço profundamente enraizado para viver de acordo com os princípios e regras fielmente transmitidas pela tradição. Este caminho, esta obediência para com a autoridade religiosa, é visto pelas várias tradições como um pré-requisito necessário para qualquer início num percurso de transformação e auto transcendência, antecipando a extinção do egotismo que marca o verdadeiro nascimento da vida divina.

Objectivamente, os rituais – mesmo a um nível exotérico – quando praticados, põem em movimento um momento espiritual em direcção ao Absoluto. Relembra-nos o autor que Guénon insistiu repetidamente que o impacto dos rituais das religiões é rigorosamente objectivo e que esses rituais são canais de graças independentes do grau de receptividade ou conhecimento de quem os pratica:

“A repetição destas fórmulas [rituais] procuram produzir uma harmonização dos diferentes elementos do ser e causar vibrações que, pelas repercussões que atravessam a imensa hierarquia de estados, são capazes de abrir vias de comunicação com os estados mais elevados, o que é em geral o propósito essencial e primordial de todos os rituais”.

É óbvio que existem profundas diferenças entre os rituais exotéricos e esotéricos, no entanto, segundo a perspectiva perenialista, não existe qualquer possibilidade de separar os dois, alertando‑nos para quem oferece um Sufismo sem Islão, um Tantrismo Tibetano sem Budismo, uma Oração de Jesus sem Cristianismo, etc.. É, de facto, uma das grandes tentações do mundo moderno, a de dispensar os elementos formais das religiões, ignorando a “superstrutura” e desligando-a da “infraestrutura” mística, a qual pode ser perseguida segundo os desejos pessoais. O autor apresenta um exemplo característico desta tendência, o autor Fritz Staal, dedicando-se durante alguns parágrafos à demonstração do quanto as ideias deste são opostas à perspectiva perenialista.

Um outro papel absolutamente fundamental da tradição no caminho do conhecimento místico está relacionado com os grandes perigos que este acarreta para as nossas mentes presas no esquecimento, no orgulho e na pretensão. É precisamente neste caminho que a tradição espiritual e um aconselhamento preciso são imperativos, sendo indispensável um guia que já tenha atravessado o caminho, um guia que já tenha sido guiado por outros, numa corrente de autoridade espiritual transmitida e originária na revelação, a qual garante à tradição o seu poder e eficácia sagrada. Este caminho místico, garantido pelas elevadas “funções espirituais” da tradição, envolvem uma iniciação, um “segundo nascimento”, uma total entrega para com os meios sagrados que permitem a travessia das formas exotéricas para a essência esotérica de uma determinada tradição, travessia esta que deverá ser efectuada sobre a estrutura protectora da tradição revelada.

Em resumo, os perenialistas defendem que qualquer esforço individual para substituir a tradição religiosa na busca do Absoluto nunca será mais do que um acto de tolice individual ou, pior ainda, de auto engano. Os principais inimigos a ultrapassar na vida espiritual não são os “demónios” externos, mas sim os internos, os pecados congénitos do orgulho e do individualismo, sendo este último o mais difícil de superar. O indivíduo é tão incapaz de superar o individualismo como uma pessoa é incapaz de fugir da sua própria sombra.

É precisamente nesta batalha que uma inteligente e total submissão para com uma autêntica orientação e autoridade tradicional se tornam fundamentais, sem elas a tarefa de dissolver todas as coagulações da alma produzidas pelos venenos do egotismo e individualismo seria virtualmente impossível. Esta alteração alquímica a efectuar na alma, esta solve et coagula, passa assim pela “dissolução” dos nós subjectivos e individualistas, e a fixação dos elementos da verdade, obtidos por meios que são objectivos e supra-individuais.

O orgulho é um dos obstáculos principais da vida espiritual, o sentido ilusório de auto-suficiência que é a raiz de todo o fracasso de nos transcendermos. A negação da necessidade de recorrer e abraçar os meios oferecidos pelas tradições reveladas é uma expressão – explícita ou implícita – do individualismo.

Estas ideias devem ser assimiladas em profundidade, tornando-se parte do nosso ser, para que as suas verdades supra-formais se possam tornar “realidade”. O total e activo compromisso com uma disciplina contemplativa no seio de uma tradição revelada é inequivocamente o suporte mais efectivo para esta assimilação.

Finalmente, é essencialmente a oração que nos torna receptivos para a pureza da vida divina; para a presença sagrada à luz da qual todas as imperfeições da alma se tornam aparentes e pelas graças da qual elas são ultrapassadas.

A seguinte passagem de Schuon com que o autor termina o seu artigo, expressa a intenção fundamental que orienta o discurso dos perenialistas e que tão brilhantemente Reza Shah-Kazemi descreveu neste seu trabalho:

“Todas as grandes experiências espirituais concordam neste ponto: não existe medida comum entre os meios postos em operação e o resultado. “Com o homem isto é impossível, mas com Deus todas as coisas são possíveis”, diz o Evangelho. De facto, o que separa o homem da Realidade divina é a mais ténue das barreiras: Deus está infinitamente perto do homem mas o homem está infinitamente longe de Deus. Esta barreira é uma montanha para o homem; o homem está perante uma montanha que terá de ser removida com as suas próprias mãos. Ele escava a terra em vão, a montanha mantém-se; no entanto, se o homem avança sem escavar, em nome de Deus, a montanha desaparece. Ela nunca existiu.”

Espírito Índio

"Não pertubes nenhum homem sobre a sua religião - respeita-o na sua visão do Grande Espírito, e exige dele o mesmo respeito com a nossa. Trata com respeito as coisas que ele considera sagradas. Não forces a tua religião a ninguém".

Wabasha e Red Jacket,
Seneca

Retirado e traduzido de “Indian Spirit”, editado por Michael Oren Fitzgerald & Judith Fitzgerald. Publicado por World Wisdom, Inc., 2006.


Black Bird - Oglala Lakota

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Esoterismo [2]

Continuamos com as palavras de Frithjof Schuon sobre significado da palavra esoterismo.

***

O esoterismo é aquilo que desvenda a relatividade de algo aparentemente absoluto ou o absoluto de algo aparentemente relativo. Visto do alto, o carácter de absoluto de uma dada forma revela os seus limites, enquanto que a contingência existencial de um determinado fenómeno revela, pelo contrário, o carácter de absoluto da sua essência, de uma forma tal em que um único elemento sagrado, depois de perder o carácter formal de absoluto que lhe é atribuído pela perspectiva exotérica, assume um novo carácter de absoluto, ou mais correctamente, revela-o, nomeadamente o do arquétipo que manifesta. O Evangelho aparenta ser absoluto enquanto se impõe aos Cristãos como a única palavra de Deus; mas a visão esotérica das coisas permite-nos, por um lado, descobrir os limites deste totalitarismo e, por outro lado, discernir neste mesmo Evangelho o carácter absoluto da Palavra Divina como tal, a palavra a partir da qual todas as Revelações derivam. [Frithjof Schuon - Logic and Transcendence, The Problem of Qualifications]


O esoterismo pode ser entendido como a “religião da inteligência”: isto significa que este opera com o intelecto – e não apenas com o sentimento e a vontade – e que, consequentemente, o seu conteúdo é tudo o que a inteligência pode alcançar, e que apenas ela pode alcançar.* O “sujeito” do esoterismo é o Intelecto e o seu “objecto” é, ipso facto, a Verdade total, nomeadamente – expressa em termos Vedânticos – a doutrina de Atma e Maya; e aquele que diz Atma e Maya, diz Jnana, conhecimento directo, intuição intelectual.
(* Está longe da verdade que todo o esoterismo histórico é esoterismo puro; uma exegese colorida por um sistema confessional ou totalmente envolvido num misticismo subjectivo está longe de uma verdadeira gnose. Por outro lado, está longe de ser o caso de que tudo o que é colocado na categoria de esoterismo o seja na realidade; acontece demasiadas vezes que diversos autores, ao abordar este conceito, não façam a devida distinção entre o que é genuíno e o que é falso, entre a verdade e o erro, em consonância com os dois pecados do nosso tempo, os quais são a substituição da inteligência pela psicologia e a confusão entre o psíquico e o espiritual.) [Frithjof Schuon - To Have a Center, Intelligence and Character]

Reza Shah-Kazemi

Reza Shah-Kazemi (Ph.D. em Religião Comparada na Universidade de Kent) é investigador auxiliar no Instituto de Estudos Islâmicos em Londres.

É o autor do livro “Paths to Transcendence: According to Shankara, Ibn Arabi, and Meister Eckhart”. Shah-Kazemi contribuiu ainda para as seguintes obras: “Paths to the Heart”, “Islam, Fundamentalism, and the Betrayal of Tradition: Essays by Western Muslim Scholars”, sendo ainda o autor do ensaio: A Sacred Conception of Justice: Imam ‘Ali’s Letter to Malik al-Ashtar, incluído na obra "The Sacred Foundations of Justice in Islam".


Mais informação:

The Institute of Ismaili Studies


Publicações no “Sabedoria Perene”:

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Knowledge and the Sacred

Este livro é sem dúvida uma das obras fundamentais dedicadas à exposição e análise das tradições sagradas e da própria Tradição. A magistralidade desta obra levou Huston Smith, um dos mais prestigiados autores ligados ao estudo das religiões do mundo, a escrever as seguintes palavras: “Em relação ao livro em análise, se o seu autor é um fenómeno, este seu livro é um evento. (…) Historiadores intelectuais irão no futuro considerar esta obra comparável com a tradução para Latim de Aristóteles por William of Moerbeke no século XIII, a de Platão do séc. XV por Marsiglio Ficino ou os Ensaios sobre Budismo Zen de D.T. Suzuki em 1927, sendo um marco de uma nova fase de compreensão multi-cultural”.

Esta obra de Seyyed Hossein Nasr resulta das lições dadas na Universidade de Edimburgo, tendo sido o primeiro não Ocidental a ser convidado para leccionar as prestigiadas Gifford Lectures naquela Universidade desde que as mesmas foram instituídas em 1889.

Neste trabalho, Nasr procura ressuscitar a qualidade sagrada do conhecimento e reavivar a verdadeira tradição intelectual do Ocidente com o auxílio das tradições do Oriente ainda vivas. O livro está dividido em dez capítulos, cada um deles verdadeiras obras-primas:

1. Conhecimento e a sua Dessacralização
2. O que é a Tradição
3. A redescoberta do Sagrado: O reavivar da Tradição
4. Scientia Sacra
5. Homem, Pontífice e Prometeico
6. O Cosmos como Teofania
7. Eternidade e a Ordem Temporal
8. Arte Tradicional como Fonte de Conhecimento e Graça
9. Conhecimento Principial e a Multiplicidade de Formas Sagradas
10. Conhecimento do Sagrado como Entrega

Algumas das publicações no “Sabedoria Perene” foram extraídas deste magnífico livro, sendo certo que muitas mais surgirão, sendo as palavras de Nasr uma verdadeira fonte de conhecimento e inspiração.

Tradição e Religião

A presente publicação é uma tradução de um trecho da absolutamente fundamental obra de Seyyeid Hossein Nasr, “Knowledge and the Sacred”, o qual revela um pouco a forma como a perspectiva tradicional aborda a religião e em particular a sua multiplicidade de formas, multiplicidade esta que constitui um grande desafio ao homem moderno.

***

[…] Esta rápida análise do estado actual dos estudos religiosos, na medida em que dizem respeito à variedade e diversidade dos universos religiosos, revela a imperfeição de todos os métodos mais frequentes quando analisados na perspectiva da tradição e da visão sapiencial que reside no coração da mesma, apesar de cada um dos métodos poder conter algum aspecto ou particularidade positiva.

Hoje em dia é nos dado a escolher entre um exclusivismo que destruiria o verdadeiro significado de Justiça Divina e Misericordiosa e um designado universalismo que destruiria elementos preciosos de uma religião, em relação à qual os seus fiéis acreditam ser originária do céu e os quais são de origem celeste. Existe uma escolha entre um absolutismo que negligencia todas as manifestações do Absoluto para além das nossas e um relativismo que destruiria o próprio significado de absoluto. É nos dada a possibilidade de reduzir todas as realidades religiosas a influências históricas ou de as considerarmos como realidades a serem estudadas independentemente e sem qualquer referência para o contexto histórico da revelação de uma manifestação particular do Logos. Somos levados ou a aceitar uma outra educadamente e por conveniência, na melhor das hipóteses por caridade, ou a disputar ou combater a mesma como um oponente a ser refutado ou mesmo destruído, uma vez que a sua visão é baseada no erro e não na verdade. Somos confrontados com a alternativa de não estudar as outras religiões e manter a devoção religiosa no seio da própria tradição (embora esta não seja uma alternativa viável para quem tenha sido tocado pela verdade, graça e beleza de outras religiões) ou de estudar outras religiões com a consequência de perder a própria fé ou, na melhor das hipóteses, ter essa fé diluída e abalada.

O homem moderno enfrenta estas alternativas numa altura em que a presença de outras religiões lhe introduz um problema existencial, o qual é significativamente diferente do confrontado pelos seus ancestrais. De facto, se existe uma realmente nova e significativa dimensão para a vida religiosa e espiritual do homem de hoje, essa será a presença de outros mundos de forma e significado sagrado, não como factos e fenómenos arqueológicos ou históricos, mas como uma realidade religiosa. É esta necessidade de viver no seio de um sistema solar e de acordo com as suas leis, sabendo, no entanto, que existem outros sistemas solares e, inclusivamente, por participação, vir a conhecer algo dos seus ritmos e harmonias, adquirindo, desta forma, uma visão da beleza assombrosa de cada um como um sistema planetário, o qual é o sistema planetário dos que nele vivem. É o ser iluminado pelo Sol do nosso sistema planetário e, ainda assim, através de um notável poder de inteligência, conhecer por antecipação e à distância, que cada sistema solar tem o seu próprio sol, o qual é simultaneamente um sol e o Sol, pois como poderá o sol que nasce todas as manhãs e ilumina o nosso mundo ser outro do que o próprio Sol?

É em relação a este significado crucial do estudo das religiões no seio de múltiplos universos de forma sagrada que a pertinência da perspectiva tradicional e do conhecimento “principial” que reside no seu coração se torna clara para o homem contemporâneo, confrontado com este problema “existencial”. A chave fornecida pela tradição para a compreensão da presença das diferentes religiões sem relativizar a religião, é o resultado de uma das mais eternas aplicações da sabedoria ou conhecimento “principial”, o qual é, ele mesmo, eterno. Apenas este tipo de conhecimento pode realizar uma tal tarefa, sendo simultaneamente um conhecimento com carácter sagrado e conhecimento sagrado em si mesmo.

A tradição estuda as religiões do ponto de vista da scientia sacra, a qual distingue o Princípio da manifestação, a Essência da forma, a Substância do acidente, o interior do exterior. Ela coloca o carácter de absoluto ao nível do Absoluto, afirmando categoricamente que o Absoluto é absoluto. Ela recusa-se a cometer o erro cardinal de atribuir o carácter de absoluto ao relativo, erro que o Hinduísmo e o Budismo consideram ser a origem e a raiz de toda a ignorância. Assim, toda a determinação do Absoluto está imediatamente no reino da relatividade. A unicidade das religiões é encontrada, em primeiro lugar e acima de tudo, neste Absoluto, o qual é simultaneamente Verdade e Realidade e a origem de todas as revelações e de toda a verdade. Quando os Sufis exclamam que a doutrina da Unidade é única (al-tawdīd wāhid), eles estão a afirmar este princípio fundamental mas muitas vezes esquecido. Apenas ao nível do Absoluto os ensinamentos das religiões são semelhantes. Abaixo desse nível, apesar de existirem algumas correspondências de uma ordem mais profunda, estas nunca são idênticas. As diferentes religiões são como que diferentes linguagens a falar de uma única Verdade, na medida em que esta se manifesta em diferentes mundos e de acordo com as suas possibilidades arquétipas, não sendo a sintaxe dessas linguagens a mesma. No entanto, e porque todas as religiões são originárias da Verdade, tudo numa determinada religião revelada pelo Logos é sagrado e deverá ser respeitado e apreciado enquanto meio de elucidação, ao invés de serem desprezados e reduzidos ao insignificante, em nome de uma qualquer universalidade abstracta.

O método tradicionalista de estudo das religiões, enquanto que afirmando categoricamente a “unidade transcendente das religiões” e o facto de que “todos os caminhos levam ao mesmo cume”, é profundamente respeitosa de todos os passos de cada caminho, de todos os sinais que tornam a jornada possível e sem os quais o cume nunca poderia ser alcançado. Este procura penetrar no significado dos rituais, dos símbolos, das imagens e das doutrinas que constituem um universo religioso particular, não procurando ignorar estes elementos ou reduzi-los a algo diferente do que na realidade são no seio desse distinto universo de significado criado por Deus através de uma determinada revelação do Logos.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Sobre a crítica

Ouvimos muitas vezes dizer que toda a crítica é “estéril” porque não envolve qualquer proposta “construtiva”; isto é o mesmo que dizer que, por não sabermos indicar a alguém o caminho correcto, não temos o direito de lhe dizer que está a caminhar em direcção a um precipício, ou como ser proibido de reparar na existência de manchas no sol sob o pretexto de não termos capacidade de criar um sol sem manchas.
Na realidade, toda a verdade é por definição construtiva; apenas o erro é destrutivo. Destruir uma destruição é já algo construtivo
. [Frithjof Schuon – Spiritual Perspectives and Human Facts]

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Esoterismo [1]

Desde o início da actividade do Sabedoria Perene que nos temos vindo a dedicar sobretudo à exposição do verdadeiro significado das palavras Tradição e Sophia Perennis, as quais se pretende continuar a aprofundar, sendo fundamental clarificar o seu significado da forma mais completa possível.

No entanto, iremos em algumas das nossas futuras publicações procurar aprofundar igualmente um outro termo de grande importância e que é muitas vezes mal compreendido, o esoterismo. Para tal, recorreremos a alguns perenialistas, procurando extrair das suas obras alguns textos a ele dedicados.

Consideramos o trabalho de estudo e análise do correcto significado da terminologia utilizada em toda a linguagem espiritual de enorme importância, pelo que esta será sempre um dos principais temas deste espaço. Usando as palavras de Frithjof Schuon: “Toda a expressão é necessariamente relativa, no entanto, a linguagem tem a capacidade de transmitir a qualidade de absoluto necessária; a expressão contém tudo, como uma semente: abre tudo, como uma chave mestra; o que resta para ser visto depende da capacidade de entendimento para a qual se dirige”. São precisamente deste autor as palavras apresentadas de seguida, dedicadas ao significado da palavra esoterismo.

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A palavra “esoterismo” sugere, em primeiro lugar, uma ideia de complementaridade, de uma “metade”. O esoterismo é o complemento do exoterismo, é o “espírito” que completa a “letra”. Onde quer que exista uma verdade da Revelação e, assim, uma verdade formal e teológica, deverá igualmente existir uma verdade de intelecção, ou seja, uma verdade não-formal e metafísica; uma verdade não legalista ou obrigatória, mas sim uma que brote a partir da natureza das coisas, e uma verdade que seja também vocacional, uma vez que nem todos os homens apreendem esta natureza.

Mas, de facto, esta segunda verdade existe independentemente da primeira; não sendo, assim, na sua realidade intrínseca, uma metade complementar; só o é extrinsecamente e como que “acidentalmente”. Isto significa que a palavra “esoterismo” designa, não só a verdade total na medida em que é “colorida” pela entrada num sistema de verdade parcial, mas também a verdade total como tal, a qual é incolor. Esta distinção não é uma mera extravagância teórica; pelo contrário, ela implica consequências extremamente importantes.

Assim, o esoterismo como tal é metafísica, a qual está necessariamente ligada a um método apropriado de realização. Mas o esoterismo de uma religião particular – precisamente de um exoterismo particular – tende a adaptar-se a esta religião e, desta forma, entrar nos meandros da teologia, psicologia e legalidade (os quais são estranhos à sua natureza, preservando, ao mesmo tempo, no seu centro secreto, a sua autêntica e plenária natureza), mas para a qual não será o que é.

[Frithjof Schuon - Survey of Metaphysics and Esoterism, Two Esoterisms]

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Nova publicação periódica - Eye of the heart

Regressamos de férias com uma agradável notícia, o aparecimento de uma nova publicação periódica dedicada ao estudo da Sabedoria Tradicional.

Este novo projecto, liderado pelo Dr. Timothy Scott, surge no âmbito do programa de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade La Trobe em Bendigo, na Austrália. Esta publicação, "Eye of the Heart - A Journal of Tradicional Wisdom", será dedicada ao estudo do significado interior de filosofia e religião à luz de príncipios metafísicos, cosmológicos e soteriológicos, penetrando nas formas preservadas nas várias religiões.

Para já trata-se apenas do anúncio desta nova publicação e do convite ao envio de artigos. Para mais informações pode-se consultar a seguinte página: http://www.latrobe.edu.au/prs/newsandevents/callforarticles

Infelizmente esta notícia coincide com o anúncio do fim da publicação on-line e gratuita do "journal" da religioperennis.org, Vincit Omnia Veritas, tendo o número publicado no passado mês de Julho sido o seu último. Os artigos publicados encontram-se, no entanto, disponíveis na página Religio Perennis - artigos.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Religio Perennis

PARTE II / >> PARTE I

Regressemos às nossas considerações sobre a religio perennis considerada, quer como discernimento metafísico e concentração unificadora, quer como descida do Princípio divino, o qual se torna manifestação por forma a que a manifestação possa regressar ao Principio.

No Cristianismo – segundo Santo Ireneu e outros – Deus “tornou-se homem” por forma a que o homem possa “tornar-se Deus”; na terminologia Hindu poderíamos dizer: Âtmâ tornou-se Mâyâ por forma a que Mâyâ possa tornar-se Âtmâ. No Cristianismo, a contemplação e concentração unificadora consiste em residir no Real manifestado – a “Palavra feita carne” – por forma a que esse Real resida em nós, que somos ilusórios, de acordo com o que Cristo disse na visão concebida a Santa Catarina de Siena: “Eu sou Aquele que é; vós sois aquela que não é.” A alma reside no Real – no reino de Deus que está “dentro de nós” – através de uma permanente oração do coração, tal como é ensinada pela parábola do juiz injusto e a injunção de São Paulo.

No Islão, o mesmo tema fundamental – fundamental devido à sua universalidade – é cristalizado de acordo com uma perspectiva bastante diferente. O discernimento entre o Real e o não-real é afirmado pelo Testemunho da Unidade (a Shahâdah): a concentração correlativa no Símbolo ou a consciência permanente no Real é realizada por este mesmo Testemunho ou pelo Nome divino que o sintetiza e que é, assim, a cristalização quintessêncial da Revelação do Alcorão; este Testemunho ou este Nome é também a quintessência da revelação Abrâmica – através da linhagem de Ismael – e recua até à Revelação primordial do ramo Semita. A “descida” do Real (nazzala, unzila); ele entrou no não‑real ou ilusório, o “perecível” (fânin) [5], ao tornar-se o Alcorão – ou a Shahâdah que o sintetiza, ou o Ism (o “Nome”) que é a sua essência sonora ou gráfica, ou a Dhikr (a “Menção”) que é a sua síntese operativa – por forma a que com esta dádiva divina o ilusório possa regressar ao Real, à “Face (Wajh) do Senhor que só ele aceita” (wa yabqâ Wajhu Rabbika) [6], qualquer que seja a importância metafísica atribuída às ideias de “ilusão” e de “Realidade”. Nesta reciprocidade residem todos os mistérios da “Noite do Destino” (Laylat al-Qadr), a qual é uma “descida”, e a “Noite da Ascensão” (Laylat al-Mi‘râj), que é a sua fase complementar; realização contemplativa – ou “unificação” (tawhîd) – participa nesta ascensão do Profeta através dos degraus do Paraíso. “Em verdade” – diz o Alcorão – “a oração protege contra o pecado maior (fahshâ) e o menor (munkar), mas a menção (dhikr) de Allah é maior” [7].

Mais próximo, de certa forma, da perspectiva Cristã mas, simultâneamente, mais afastada, é a perspectiva Budista, a qual, por um lado, baseia-se na “Palavra feita carne”, mas por outro, não contempla qualquer noção antropomórfica de um Deus criador. No Budismo, os dois termos da alternativa ou do discernimento são o Nirvâna, o Real, e o Samsâra, o ilusório; em última análise, o caminho é a consciência permanente do Nirvâna como Shûnya, o “Vazio”, ou a concentração na manifestação salvífica do Nirvâna, o Buddha, o qual é Shûnyamûrti, “Manifestação do Vazio”.

Em Buddha – especialmente na sua forma de AmitabhaNirvâna torna-se Samsâra para que Samsâra se torne Nirvâna; e se o Nirvâna é o Real e o Samsâra a ilusão, o Buddha é o Real no ilusório, e o Bodhisattva é o ilusório no Real [8], o que sugere o simbolismo do Yin‑Yang. A passagem do ilusório para o Real é descrita no Prajnâpâramitâ-hridaya-sûtra nestes termos: “Foi, foi – foi para a outra margem, atingiu a outra margem, ó Iluminado, que sejas abençoado!”.

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É da natureza das coisas que todas as perspectivas espirituais tenham que colocar a concepção do homem em contraste com a correspondente concepção de Deus; surgem assim três ideias ou definições: em primeiro lugar a do homem; em segundo, a de Deus tal como Ele se revela a um homem que é definido desta forma e, em terceiro, do homem como determinado e transformado por Deus em resultado da perspectiva em questão.

Do ponto de vista da subjectividade humana, o homem é quem contém e Deus é o contido; do ponto de vista divino – se nos permitimos expressar desta forma – a relação é inversa, estando todas as coisas contidas em Deus e não existindo nada que O possa conter. Dizer que o homem é feito à imagem de Deus significa que, ao mesmo tempo, Deus assume algo dessa imagem a posteriori e em ligação com o homem; Deus é Espírito puro, e o homem é, consequentemente, inteligência ou consciência; por outro lado, se o homem é definido como inteligência, Deus aparece como “Verdade”. Por outras palavras, Deus, ao desejar Se atestar sob o aspecto de “Verdade”, dirige-Se ao homem enquanto capacitado com inteligência, tal como Se dirige ao homem em angústia para atestar a Sua Misericórdia ou para o homem capacitado com livre arbítrio O atestar como Lei salvadora.

As “provas” de Deus e da religião estão no próprio homem: “Conhecendo a sua própria natureza, ele conhece também o Céu”, diz Mencius, de acordo com outras máximas semelhantes. Devemos extrair da nossa própria natureza as chaves que abrem o caminho de subida em direcção à certeza do Divino e da Revelação; falar do “homem” é implicitamente falar de “Deus”; falar do “relativo” é falar do “Absoluto”. A natureza humana em geral e a inteligência humana em particular, não podem ser compreendidas separadas do fenómeno religioso, o qual os caracteriza na forma mais directa e completa possível: capturando a transcendente – não a “psicológica” – natureza do seu humano, capturamos a natureza da revelação, religião, tradição; compreendemos as suas possibilidades, as suas necessidades, a sua verdade. E, ao compreender a religião, não só numa forma particular ou literal, mas na sua essência sem forma, compreendemos também as religiões, ou seja, o significado da sua pluralidade e diversidade; este é o lugar da gnose, ou da religio perennis, onde as antinomias extrínsecas dos dogmas são explicadas e resolvidas.

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No seu plano exterior e, desta forma, contingente – o qual tem, no entanto, a sua importância na ordem humana – existe concordância entre a religio perennis e a natureza virgem e, pela mesma razão, entre esta e a nudez primordial, a da criação, nascimento, ressurreição, ou o mais alto padre no Sagrado dos Sagrados, um eremita no deserto [9], um sâdhu ou sannyâsin Hindu, um Indío Vermelho numa oração silenciosa numa montanha [10]. A natureza inviolada é, simultaneamente, um vestígio do Paraíso terreno e a prefiguração do Paraíso celeste; os santuários e trajes diferem, mas a natureza virgem e o corpo humano permanecem fiéis à sua unidade inicial. A arte Sagrada, a qual aparenta afastar-se dessa unidade, na realidade, serve simplesmente para restaurar aos fenómenos naturais as suas mensagens divinas, para as quais o homem se tornou insensível; na arte, a perspectiva do amor tende para inundar e exceder, enquanto que a perspectiva da gnose tende para a natureza, a simplicidade e o silêncio; este é o contraste entre a riqueza Gótica e a sobriedade Zen [11]. Mas não devemos perder de vista o facto de que os modelos ou modos exteriores são sempre contingentes e que todas as combinações e todas as compensações são possíveis, especialmente porque, na espiritualidade, todas as possibilidades podem se reflectir nas restantes de acordo com as adequadas modalidades. Uma civilização é integral e saudável na medida em que estiver fundada no “invisível” ou na religião “basilar”, a religio perennis, isto é, na medida em que as suas formas e expressões sejam transparentes para o Não-Formal, mas também – e ainda com mais razão – o pressentimento de uma Beatitude intemporal. Pois a Origem está, simultaneamente, dentro de nós e à nossa frente; o tempo não é mais do que um movimento espiral em torno de um Centro imóvel.
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[5] A palavra fanâ’, por vezes traduzida como “extincão” por analogia com o Sanskrit nirvâna, tem a mesma raiz e significa literalmente “natureza perecível”.

[6] Sûrah “O Misericordioso” [55]:27.

[7] Sûrah “A Aranha” [29]:45.

[8] Ver “Le mystère du Bodhisattva” (Études Traditionnelles, Maio-Junho, Jullho-Augosto, Setembro-Outubro, 1962).

[9] Tal como Maria do Egipto, na qual o não-formal e carácter totalmente interior de um amor por Deus, partilha as qualidades da gnose, de tal forma que se lhe pode chamar “gnose do amor” no sentido de parabhakti.

[10] Simplicidade na roupa e na sua cor, em particular branca, substitui muitas vezes o simbolismo de nudez na arte do traje; em todos os planos, o estado de nudez inspirado pela Verdade nua contrabalança um “culturismo” terreno. Por outro lado, um robe sagrado simboliza a vitória do Espírito sobre a carne, e a sua riqueza hierática – a qual estamos longe de criticar – expressa a profusão inextinguível do Mistério e Glória.

[11] Mas é muito claro que a mais sumptuosa arte sagrada é infinitamente mais próxima da gnose do que a ignorante e simplista dos nossos contemporâneos que professam estar a fazer “uma limpeza”. Só uma simplicidade que seja qualitativa, nobre e conforme com a essência das coisas, pode reflectir e transmitir o perfume da sabedoria não-formal.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Compreender a palavra “Tradição”

Este curto texto de Ali Lakhani dedicado ao significado da palavra “Tradição”, tal como entendida pelos perenialistas ou tradicionalistas, foi publicado como editorial do nono número da publicação periódica Sacred Web. A tradução deste texto constitui, assim, mais uma contribuição para o objectivo de dar a conhecer o pensamento destes autores, dedicados ao estudo das doutrinas Tradicionais e da Sophia Perennis.

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A Tradição nada tem a haver com quaisquer “idades”, sejam “negras”,
“primitivas”, ou quaisquer outras. A Tradição representa a doutrina
dos princípios primeiros, os quais são inalteráveis.
Ananda K. Coomaraswamy, Correspondência, 1946


…não existe nem pode existir nada verdadeiramente tradicional que não
contenha em si algum elemento de ordem sobre-humana. Este é, de facto, o ponto essencial, contendo em si a própria definição de tradição
e de tudo o que lhe está relacionado.
René Guénon, O reino da quantidade e os sinais dos tempos


Os termos “tradicional” e “moderno” sugerem uma distinção entre o antigo e o novo, o fixo e o em alteração, o venerado caminho do passado e o progressivo caminho do futuro. A polaridade subjacente que reflecte está fundada na estrutura metafísica da realidade, na arquitectura da Absoluta inviolabilidade da Substância e da Infinita possibilidade da Forma. Esta polaridade subjacente é expressa na dialéctica da Necessidade e Liberdade. A Necessidade é o principio organizador da disposição, da projecção e reintegração: tudo o que existe reside e emerge a partir de uma mesma realidade, cuja Substância transcendental é simultaneamente a sua Origem e o seu Fim, o critério de toda a objectividade. A Liberdade é o princípio criativo desta disposição, expressando-se numa infinita variedade de modos e modalidades da Forma e no imanente potencial da nossa própria subjectividade pessoal.

Os termos “Tradição” e “Modernidade”, tal como usados por tradicionalistas como Seyyed Hossein Nasr, não são derivativos da diferenciação convencional entre os termos “tradicional” e “moderno”, apesar do uso particular que eles dão a estes termos tenha como premissa a estrutura metafísica descrita atrás. Isto pode ser confuso. Para Nasr, “Modernidade” é “aquilo que está separado do Transcendente, dos princípios imutáveis que, na realidade, governam todas as coisas e que são dadas a conhecer ao homem através da revelação no seu sentido mais universal”, enquanto que “Tradição”, por contraste, designa esses mesmos princípios imutáveis, a sophia perennis ou sabedoria primordial, as quais estão fundadas no Transcendente. De acordo com esta definição, Modernidade não é necessariamente um sinónimo de contemporâneo (ou focado no futuro), nem Tradição é sinónimo de continuidade história (ou focado no passado). Tradição é, neste sentido, metahistórica: a sua única relação com o passado reside na ligação de uma particular tradição religiosa à sua fonte original, ou seja, à revelação que a autentica, a escritura que a fundou e as suas formas de adoração, transmitidas através do ambiente protector de uma tradição particular. Mas esta relação entre uma tradição particular e as suas origens históricas é, de certa forma, acidental. A relação entre Tradição e Revelação transcende a história. A Revelação, “no seu sentido mais universal”, não é um acontecimento histórico: está baseada no eterno presente e é contínua. A sua autenticação não pode ser reduzida à nossa capacidade para a colocar em qualquer momento da história, mas sim, garantida pela sua capacidade de ressoar como verdade no interior do santuário do Coração, cuja faculdade de discernimento é o supra-racional Intelecto.

O Conhecimento é, assim, uma ressonância da Substância espiritual que pertence ao todo da criação, e cuja presença ressoa no interior do Coração puro. O Conhecimento não é uma mera forma de taxidermia intelectual, mas sim um caminho para habitar a própria criatura. É ser humano na sua totalidade.

Em linguagem corrente, os termos “tradicional” e “moderno” sugerem duas atitude distintas para com a mudança, o primeiro resistindo-lhe, e o último aceitando-a. Mas a “Tradição”, no sentido de sabedoria primordial, não é necessariamente resistente à mudança. A imagem de Shiva Nataraja personifica, quer a ideia de quietude (o fixo, ou o ser), quer a de movimento (em mudança, ou vir a ser). A “Tradição” é uma combinação de ambos estes elementos. É ao mesmo tempo um Equilíbrio estático e uma Atracção dinâmica, o realismo clássico da transcendência e o idealismo romântico da imanência. O homem é simultaneamente um escravo da mudança (estando sujeito aos processos do tempo) e o seu mestre (estando equipado para a transcender espiritualmente). A busca da salvação é, num determinado nível, uma busca pela paz, enquanto que noutro, uma busca da criatividade e frescura, a libertação da petrificação. O termo “tradicional” pode ter uma implicação pejorativa de excessiva rigidez e formalismo, enquanto que o termo “moderno”, pode querer significar aquilo que é excessivamente individualista ou sem princípios. Nestes sentidos, quer o tradicional quer o moderno são opostos à “Tradição”, a qual reconhece a mútua interdependência dos princípios organizadores e criativos da realidade. Quando a criatividade deixa de se conformar às hierarquias inerentes a um universo ordenado espiritualmente, a volição torna-se satânica e profana a Liberdade. E quando as exigências de conformidade reprimem a expressão genuinamente espiritual, o intelecto torna-se tirânico e profana a Necessidade. A “Tradição” reconhece que a Necessidade (o discernimento intelectual que a expressão criativa tem necessariamente um princípio organizador) e a Liberdade (a transcendência da expressão criativa em conformidade com esse princípio organizador) estão interligados, e que o discernimento intelectual tem implicações morais. O “ethos” humano é assim uma dimensão da estrutura sagrada da realidade.

A “Modernidade”, no sentido considerado pelos tradicionalistas, indica uma tendência para uma “rigidez” moral e intelectualidade “opaca”. Quando a realidade deixa de ser apreendida como metafisicamente “transparente para a transcendência”, não existe nenhuma realidade espiritual apreendida que possa ressoar na alma humana, nada que “derreta” o coração em submissão por compaixão, a verdadeira e serena Liberdade, cuja vil falsificação é uma alma aprisionada pelas paixões, cedendo às gratificações momentâneas de auto-indulgência, antes que os seus insaciáveis apetites sejam desviados para uma nova sedução.

É neste sentido que “Tradição” e “Modernidade” são colocados em oposição. O tradicionalista não é necessariamente oposto ao “moderno” como convencionalmente entendido, apenas à “Modernidade”, entendida como o inverso de “Tradição”, no sentido particular definido anteriormente. Um tradicionalista pode ser “moderno” no modo de vestir, na linguagem, nos confortos modernos ou tecnologias e, ainda assim, necessariamente oposto à “Modernidade”, no sentido da sua negação do transcendente ou do sentido do sagrado. Da mesma forma, nem tudo o que parece “tradicional” está de acordo com a “Tradição”. Por exemplo, o fundamentalismo, apesar de poder surgir revestido de uma roupagem tradicional e usar uma linguagem tradicional, é a própria antítese da “Tradição”, a qual recusa a redução fundamentalista do espírito à palavra, bem como o seu excessivo formalismo e exclusivismo. “Pelos seus frutos conhecê-los-emos”, não pela sua aparência.

As palavras e os rótulos, em ultima análise, tendem a ocultar a realidade, abstraindo-a. Na melhor das hipóteses agem como símbolos, inspirando o significado que reside adormecido no nosso interior. “Tradição” e “Modernidade” são, finalmente, aspectos de nós próprios: “Duo sunt in homine”, ensinado por S. Aquino, um ensinamento que ressoa através do discurso tradicionalista e no interior de cada alma humana. Existe, no fim, um elemento em cada alma que terá de ser conquistado para um bem maior. A “Tradição” convida cada um de nós a cumprir o nosso total potencial humano, a compreender o mundo exterior com o olho interior, com compaixão, e a nos conformarmos com a vontade do intelecto e, dessa forma, ultrapassar as tendências do nosso ser Prometeico, integrando a Verdade, a Bondade e a Beleza nas nossas vidas, por forma a alcançar a Vida Eterna.