quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Tradição e Religião

A presente publicação é uma tradução de um trecho da absolutamente fundamental obra de Seyyeid Hossein Nasr, “Knowledge and the Sacred”, o qual revela um pouco a forma como a perspectiva tradicional aborda a religião e em particular a sua multiplicidade de formas, multiplicidade esta que constitui um grande desafio ao homem moderno.

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[…] Esta rápida análise do estado actual dos estudos religiosos, na medida em que dizem respeito à variedade e diversidade dos universos religiosos, revela a imperfeição de todos os métodos mais frequentes quando analisados na perspectiva da tradição e da visão sapiencial que reside no coração da mesma, apesar de cada um dos métodos poder conter algum aspecto ou particularidade positiva.

Hoje em dia é nos dado a escolher entre um exclusivismo que destruiria o verdadeiro significado de Justiça Divina e Misericordiosa e um designado universalismo que destruiria elementos preciosos de uma religião, em relação à qual os seus fiéis acreditam ser originária do céu e os quais são de origem celeste. Existe uma escolha entre um absolutismo que negligencia todas as manifestações do Absoluto para além das nossas e um relativismo que destruiria o próprio significado de absoluto. É nos dada a possibilidade de reduzir todas as realidades religiosas a influências históricas ou de as considerarmos como realidades a serem estudadas independentemente e sem qualquer referência para o contexto histórico da revelação de uma manifestação particular do Logos. Somos levados ou a aceitar uma outra educadamente e por conveniência, na melhor das hipóteses por caridade, ou a disputar ou combater a mesma como um oponente a ser refutado ou mesmo destruído, uma vez que a sua visão é baseada no erro e não na verdade. Somos confrontados com a alternativa de não estudar as outras religiões e manter a devoção religiosa no seio da própria tradição (embora esta não seja uma alternativa viável para quem tenha sido tocado pela verdade, graça e beleza de outras religiões) ou de estudar outras religiões com a consequência de perder a própria fé ou, na melhor das hipóteses, ter essa fé diluída e abalada.

O homem moderno enfrenta estas alternativas numa altura em que a presença de outras religiões lhe introduz um problema existencial, o qual é significativamente diferente do confrontado pelos seus ancestrais. De facto, se existe uma realmente nova e significativa dimensão para a vida religiosa e espiritual do homem de hoje, essa será a presença de outros mundos de forma e significado sagrado, não como factos e fenómenos arqueológicos ou históricos, mas como uma realidade religiosa. É esta necessidade de viver no seio de um sistema solar e de acordo com as suas leis, sabendo, no entanto, que existem outros sistemas solares e, inclusivamente, por participação, vir a conhecer algo dos seus ritmos e harmonias, adquirindo, desta forma, uma visão da beleza assombrosa de cada um como um sistema planetário, o qual é o sistema planetário dos que nele vivem. É o ser iluminado pelo Sol do nosso sistema planetário e, ainda assim, através de um notável poder de inteligência, conhecer por antecipação e à distância, que cada sistema solar tem o seu próprio sol, o qual é simultaneamente um sol e o Sol, pois como poderá o sol que nasce todas as manhãs e ilumina o nosso mundo ser outro do que o próprio Sol?

É em relação a este significado crucial do estudo das religiões no seio de múltiplos universos de forma sagrada que a pertinência da perspectiva tradicional e do conhecimento “principial” que reside no seu coração se torna clara para o homem contemporâneo, confrontado com este problema “existencial”. A chave fornecida pela tradição para a compreensão da presença das diferentes religiões sem relativizar a religião, é o resultado de uma das mais eternas aplicações da sabedoria ou conhecimento “principial”, o qual é, ele mesmo, eterno. Apenas este tipo de conhecimento pode realizar uma tal tarefa, sendo simultaneamente um conhecimento com carácter sagrado e conhecimento sagrado em si mesmo.

A tradição estuda as religiões do ponto de vista da scientia sacra, a qual distingue o Princípio da manifestação, a Essência da forma, a Substância do acidente, o interior do exterior. Ela coloca o carácter de absoluto ao nível do Absoluto, afirmando categoricamente que o Absoluto é absoluto. Ela recusa-se a cometer o erro cardinal de atribuir o carácter de absoluto ao relativo, erro que o Hinduísmo e o Budismo consideram ser a origem e a raiz de toda a ignorância. Assim, toda a determinação do Absoluto está imediatamente no reino da relatividade. A unicidade das religiões é encontrada, em primeiro lugar e acima de tudo, neste Absoluto, o qual é simultaneamente Verdade e Realidade e a origem de todas as revelações e de toda a verdade. Quando os Sufis exclamam que a doutrina da Unidade é única (al-tawdīd wāhid), eles estão a afirmar este princípio fundamental mas muitas vezes esquecido. Apenas ao nível do Absoluto os ensinamentos das religiões são semelhantes. Abaixo desse nível, apesar de existirem algumas correspondências de uma ordem mais profunda, estas nunca são idênticas. As diferentes religiões são como que diferentes linguagens a falar de uma única Verdade, na medida em que esta se manifesta em diferentes mundos e de acordo com as suas possibilidades arquétipas, não sendo a sintaxe dessas linguagens a mesma. No entanto, e porque todas as religiões são originárias da Verdade, tudo numa determinada religião revelada pelo Logos é sagrado e deverá ser respeitado e apreciado enquanto meio de elucidação, ao invés de serem desprezados e reduzidos ao insignificante, em nome de uma qualquer universalidade abstracta.

O método tradicionalista de estudo das religiões, enquanto que afirmando categoricamente a “unidade transcendente das religiões” e o facto de que “todos os caminhos levam ao mesmo cume”, é profundamente respeitosa de todos os passos de cada caminho, de todos os sinais que tornam a jornada possível e sem os quais o cume nunca poderia ser alcançado. Este procura penetrar no significado dos rituais, dos símbolos, das imagens e das doutrinas que constituem um universo religioso particular, não procurando ignorar estes elementos ou reduzi-los a algo diferente do que na realidade são no seio desse distinto universo de significado criado por Deus através de uma determinada revelação do Logos.

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