domingo, 9 de março de 2008

O “ponto de partida” de René Guénon - Parte I

Preâmbulo

O texto apresentado de seguida corresponde à primeira publicação de um trabalho em desenvolvimento que será publicado periodicamente neste espaço. Este consiste num resumo de algumas das principais ideias presentes em dois dos primeiros trabalhos de René Guénon e que se considerou ajustado designar por “ponto de partida”.

As obras consultadas integram a colecção integral da obra de René Guénon publicada recente pela Sophia Perennis, editora que disponibilizou pela primeira vez em língua inglesa e de uma forma sistematizada a obra completa do autor. As traduções para a língua inglesa das obras em análise neste estudo foram efectuadas por outros dois grandes pensadores e perenialistas, Marco Pallis e Martin Lings, ambos importantes tradicionalistas.

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Parte I – Questões preliminares
Introdução

O presente trabalho visa apresentar um resumo do que consideramos ser um ponto de partida para o estudo da Tradição. Este designado “ponto de partida”, estabelecido por René Guénon em dois dos seus trabalhos iniciais, viria a servir como introdução e criação das bases fundamentais para a adequada compreensão dos seus trabalhos subsequentes, onde expôs longamente os aspectos mais profundos de diversas doutrinas metafísicas.

Aqueles trabalhos iniciais foram publicados pela primeira vez na década de trinta, nomeadamente, o seu primeiro livro “Introdução ao estudo das doutrinas Hindu”, publicado em 1921 quando tinha a idade de 35 anos, e o seu quarto livro “Este & Oeste” publicado três anos mais tarde. Para os desconhecedores da obra deste autor, refira-se que no intervalo entre a publicação destas duas obras de referência, Guénon publicou outras duas extensas obras denunciando os erros da escola teosófica e do espiritismo (“Teosofia: História de uma pseudo-religião” e “O erro espiritista”).

Em relação à primeira obra referida salienta-se que serão abordadas apenas as suas duas primeiras partes, debruçando-se as restantes à exposição das doutrinas da tradição Hindu e à sua interpretação pelos ocidentais, não cabendo estes temas no âmbito do presente texto.

Assim, e seguindo a estrutura dos seus trabalhos, aborda-se numa primeira parte um conjunto de questões que, na sua opinião, moldaram o desenvolvimento da actual mentalidade ocidental, analisando-se na segunda parte os principais aspectos do pensamento oriental, desenvolvendo-se nesta altura conceitos fundamentais como os de Tradição, Metafísica, Teologia, Simbolismo, Antropormofismo, Pensamento Metafísico e Pensamento Filosófico, Esoterismo, Exoterismo e Realização Metafísica.

Na terceira parte, penetrando na sua segunda obra em análise, serão discutidos em profundidade um conjunto de aspectos a que o autor designou de “ilusões ocidentais”, concluindo na quarta parte com o estudo das possibilidades existentes para a criação de ligações entre o Oriente e o Ocidente.

Interessa salientar um aspecto de extrema importância e que deverá estar sempre presente na mente dos leitores, o facto das obras em análise terem sido escritas há mais de oitenta anos, tendo a face do mundo sofrido importantes modificações desde essa altura. Efectivamente, assistiu-se nas últimas décadas a uma vertiginosa contaminação da cultura do oriente pela cultura ocidental, quer no Próximo e Médio Oriente, quer mesmo no Extremo Oriente, onde a China revolucionária quase destruiu na totalidade da sua própria tradição, para citar apenas um exemplo.

Estes acontecimentos, apesar de não corresponderem às piores suspeitas de Guénon em relação ao estado em que encontraríamos o mundo actual, revelam o carácter profético das suas duras críticas ao mundo moderno, verificando-se o catastrófico alastrar da deterioração do Intelecto humano a todas as civilizações que partilham o planeta.

Este, Oeste e a sua divergência

Comecemos por esclarecer como entende o autor as denominações de Este e Oeste, mais propriamente, as de Oriente e Ocidente. De uma forma geral, Guénon considera o Oriente como essencialmente a Ásia, e associa o Ocidente à Europa, mais concretamente à mentalidade Europeia ou Ocidental. No entanto, Guénon não confina a mentalidade Europeia ao espaço físico da Europa como continente; na realidade, o conceito de uma mentalidade da raça Europeia é considerado como um todo, independentemente da parte do mundo em que a mesma se possa ter fixado, como por exemplo na América ou na Austrália.

A designação de raça não poderá, no entanto, ser entendida como uma raça primária na forma vulgarmente utilizada, sendo inquestionável o facto do povo Europeu ser constituído por uma grande diversidade de raças e etnias perfeitamente identificáveis. Ainda assim, é da mesma forma verdade que existem suficientes características comuns para permitir uma clara distinção deste povo dos restantes, e é neste contexto que o autor utiliza a designação de raça Europeia. Esta é, naturalmente, menos estável e fixa do que uma raça pura e é por essa razão muito propensa para absorver ou ser absorvida por características étnicas de outras raças, Contudo, esta raça Europeia desenvolveu uma mentalidade muito própria ao longo da história, relegando claramente as diferenças existentes para um plano secundário.

Adiantando algumas das características que distinguem a mentalidade Europeia das restantes, Guénon aponta a Grécia e, mais especificamente, as influências Greco‑romanas, como a principal contribuição para a sua formação. Refere o autor que a influência grega se materializou sobretudo na ciência e na filosofia, enquanto que a influência romana se manifestou de uma forma mais social do que intelectual, em especial nas noções de estado, de lei e das instituições. Do ponto de vista religioso, há ainda que referir a importância da influência Judaica.

Como contraste à mentalidade Europeia característica do Ocidente, no Oriente é impossível falar de uma raça Oriental ou Asiática, mesmo admitindo todas as reservas consideradas para a possibilidade de aceitar o conceito de uma raça Europeia. Aqui é possível distinguir várias raças diferentes mais ou menos puras, as quais apresentam características perfeitamente definidas e constituem civilizações notavelmente distintas.

Numa primeira e imediata análise, sobressai a desproporcionalidade entre as entidades designadas por Oriente e Ocidente, já que não existe qualquer equivalência nem simetria entre as duas. Guénon equipara esta diferença à relação geográfica existente entre a Europa e a Ásia, constituindo a primeira um simples prolongamento da última, considerando, da mesma forma, que o Ocidente é de facto uma ramificação que cresceu a partir do tronco principal, pelo que constitui uma divergência.

Para entender esta divergência, é necessário começar por constatar que as diferenças crescentes entre o Ocidente e o Oriente se deveram exclusivamente a alterações ocorridas no Ocidente, mantendo-se o Oriente relativamente imutável. De facto, foram os Europeus que, desde do final do séc. XVII e principio do séc. XVIII, começaram a professar o “progresso” e o “evolucionismo” e passaram a considerar esta imutabilidade das civilizações orientais como um sinal de inferioridade, quando deveria ser, na opinião de Guénon e na nossa, considerada como um sinal de equilíbrio. Assim, pretendendo-se representar num diagrama a divergência em análise, será incorrecto considerar duas linhas afastando-se de um eixo em direcções opostas. De uma forma mais correcta, o Oriente seria o eixo, enquanto que o Ocidente seria representado como uma linha partindo desse mesmo eixo e afastando-se continuamente, tal como na analogia do ramo que nasce do tronco de uma árvore.

Esta afirmação pode ser atestada não só pelo facto da civilização ocidental, tal como conhecemos, retirar grande parte da sua intelectualidade do conhecimento oriental, mas também admitindo, ao contrário do normalmente assumido, que a própria civilização Grega deve grande parte da sua cultura ao Egipto, à Fenícia, à Caldeia, à Pérsia e mesmo à Índia. Guénon argumenta ainda que, perante a evidência de que o “grande” nunca pode ser gerado a partir do “pequeno”, o facto de uma civilização tomar de empréstimo aspectos de outras revela inevitavelmente a categoria à qual cada uma delas pertence.

No entanto, recuperando a analogia utilizada para ilustrar a divergência do Ocidente a partir do Oriente, é fundamental apontar os erros inerentes a qualquer esquematização da realidade, nomeadamente através da representação de um contínuo aumento da divergência desde a antiguidade até ao presente. Na realidade, refere o autor que têm existido abrandamentos nesta divergência e importantes influências do Oriente no Ocidente, tais como os do período Alexandrino, a contribuição dos árabes para o pensamento europeu durante a Idade Média e as influências proveniente da Índia. Por outro lado, o autor salienta também que a divergência ganhou novo fulgor com a Renascença, verificando-se que o aclamado “renascer” trouxe com ele a morte de muitas outras coisas, sobretudo a nível intelectual, culminando com a Revolução Francesa e a rejeição de toda a tradição.

Civilizações e suas relações

Abordemos de seguida um aspecto essencial presente nos capítulos introdutórios do primeiro trabalho de Guénon e ao qual atribuiu a designação de “erro clássico”, consistindo este na predisposição para atribuir a origem de toda a civilização aos Gregos e aos Romanos, considerando o autor que a causa para esta atitude só poderá ser o resultado da sua civilização não remontar muito para além desses povos, sendo grande parte deles derivada. Adicionalmente, a ideia da existência de uma civilização num sentido absoluto contribui para este equívoco, ideia esta agravada pela extrema dificuldade que os ocidentais têm em aceitar a existência de outras civilizações totalmente diferentes e muito mais antigas. Por conseguinte, a tão aclamada “evolução da civilização”, não é mais do que o desenvolvimento de uma civilização em particular a partir da sua origem relativamente recente.

A civilização grega, tal como eles próprios o admitiam, foi largamente influenciada pelos Orientais, sendo a sua grande originalidade a sua forma de expressão, sobretudo a materializada na sua capacidade dialéctica. No entanto, a sua aptidão para examinar cada questão interminavelmente, sobre todos os aspectos e em grande detalhe, obtendo conclusões relativamente insignificantes, revelam uma certa “miopia intelectual”, a qual viria a ser uma das características dos ocidentais modernos.

Na realidade, a inovação do povo grego constituiu uma degeneração e resultou numa individualização dos conceitos que provovou a substituição do puramente intelectual pelo racional, e do metafísico pelo científico e filosófico. Pouca importância se deve atribuir ao facto de os Gregos poderem ter sido mais bem sucedidos do que outros na adaptação de certas formas de conhecimento para uso prático, ou se deduziram consequências deste género enquanto outros o não fizeram; a verdade é que eles assumiram uma forma menos pura e desinteressada do conhecimento. A sua inclinação para a “prática”, no sentido mais geral do termo, acabou por marcar o destino da civilização ocidental, sendo esta inclinação absolutamente predominante nos tempos modernos.

Regra geral, pode-se afirmar que os Ocidentais manifestam uma muito reduzida aptidão natural para a metafísica, facto este facilmente verificável nas próprias línguas ocidentais. Por outro lado, os Orientais mostram um forte desinteresse pelas aplicações do conhecimento, cultivando sobretudo o conhecimento dos princípios universais. Estas diferenças traduzem‑se na separação entre o ‘conhecimento’ Oriental e a ‘pesquisa’ Ocidental.

Assim, o facto dos Orientais nunca se terem dedicado a certos ramos específicos da ciência não é, de forma alguma, um sinal de inferioridade mas, pelo contrário, a consequência da adopção de uma perspectiva intelectual. São precisamente os modos diferentes como a actividade mental humana é utilizada que caracterizam as diferentes civilizações, indicando a direcção escolhida para o seu desenvolvimento. Aqui reside a explicação para a ilusão do progresso entre aqueles que, conhecendo apenas um tipo de civilização, não apresentam a capacidade para conceber uma forma de desenvolvimento diferente da sua, acreditando ser a sua a única possível e não sendo capazes de perceber que um desenvolvimento num dos sentidos pode ser largamente contrabalançado por um retrocesso no outro.

Dificuldades de cronologia e linguística

Passemos agora a uma breve análise de algumas das dificuldades associadas à compreensão das civilizações Orientais. Uma dessas dificuldades á a relacionada com questões cronológicas, as quais estão entre as mais complexas de resolver, alertando Guénon para a tendência dos seus contemporâneos em lhes atribuir importância excessiva e de as procurarem resolver recorrendo aos métodos usuais.

Alerta-nos Guénon que a reclamação de originalidade intelectual, mesmo entre os Ocidentais, é uma tendência bastante moderna, desconhecida, por exemplo, durante a Idade Média, quando a ideias puras e as doutrinas tradicionais não eram a propriedade de um qualquer indivíduo e as personalidades dos seus expositores ou intérpretes não tinha a menor importância. Adicionalmente, em alguns casos, como por exemplo na Índia, o sistema cronológico utilizado, ou algo que possamos considerar próximo de tal, era baseado em números simbólicos, os quais não podem ser interpretados como o número de anos. Estes não representam períodos históricos mas períodos cósmicos, muito semelhante à cronologia bíblica.

Muitas vezes desprezado é ainda o facto de que a datação de um documento descoberto, independente da forma como é obtida, não constitui por si mesmo uma prova de que esse documento não é muito mais antigo. Não só poderá ocorrer uma descoberta posterior de versões mais antigas como, na realidade, é pouco provável que qualquer civilização que tenha sobrevivido até ao nosso tempo tenha deixado textos abandonados para serem descobertos pelos nossos arqueólogos, como acontece com civilizações extintas. Por outro lado, no caso das civilizações já desaparecidas, o mais razoável será admitir que grande parte dos documentos se tenham perdido pelas mais diversas razões e que tenham sido substituídos ao longo do tempo e à medida que iam envelhecendo, sendo substituídos por outros mais recentes.

Outro aspecto de extrema importância muitas vezes esquecido pelos adeptos do “método histórico” prende-se com o facto dos ensinamentos orais precederem, em todo a parte, os escritos, e que o primeiro dos métodos de ensino foi muito provavelmente o único durante longos períodos de tempo. De um modo geral, um texto tradicional não é mais do que a documentação, numa data relativamente recente, de um ensinamento originalmente transmitido oralmente e do qual raramente o próprio autor pode ser identificado.

O último aspecto focado por Guénon, apesar de não ser propriamente cronológico, está relacionado com as questões em análise. Este consiste nas dificuldades em localizar as antigas civilizações, não só em termos temporais, mas também espaciais, dificuldades estas associadas a movimentos migratórios realizados em diferentes períodos, nada nos garantindo que os textos dos actuais descendentes das antigas civilizações tenham a sua origem nos locais onde estes agora vivem. Existem vários casos com evidências deste tipo, ainda que seja o hábito dos nossos investigadores não referir as dúvidas associadas às suas teorias.

Abandonando as questões cronológicas, passemos à análise das dificuldades linguísticas, considerada por Guénon como a mais séria das relacionadas com a correcta interpretação das doutrinas Orientais e que está directamente associada aos diferentes modos de pensamento. De facto, sendo o objectivo da linguagem o expressar os modos de pensamento, quando se procura expressar certas ideias ou conceitos em línguas ocidentais, as quais não estão dotadas de termos adequados e são, sobretudo, pouco habilitadas para expressar conceitos metafísicos, as dificuldades tornam-se praticamente incontornáveis.

Qualquer expressão de um pensamento é intrinsecamente imperfeita pois limita a sua concepção ao enclausuramento numa forma definida, a qual nunca poderá ser completamente adequada, tal como uma concepção ultrapassa sempre em conteúdo qualquer sua expressão. Isto ainda se aplica com ainda mais fundamento quando se tratam de concepções metafísicas, as quais requerem uma devida abertura para o inexprimível e têm na sua própria essência a abertura da porta para ilimitadas possibilidades.

Assim, a única possibilidade de passar certos conceitos de uma linguagem para outra menos adequada será a compreensão do conceito na sua expressão original, através da identificação, na medida do possível, com o modo de pensamento original, recorrendo posteriormente à sua interpretação, o qual, para ser inteligível, deverá ser um comentário e não uma tradução pura e simples. Desta forma, a real dificuldade reside na assimilação mental necessária para atingir este objectivo, sobretudo quando se tratam de ensinamentos que nos chegaram apenas de forma escrita ou simbólica, não acompanhados da tradição oral há muito perdida.