quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Uma figura de linguagem ou uma figura de pensamento? * - Parte 1

O texto apresentado consiste na primeira parte da tradução de um dos ensaios de A. K. Coomaraswamy mais referenciados por autores tradicionalistas/perenialistas contemporâneos que se debruçam sobre temas como a arte e o simbolismo. Não é demais relembrar que esta individualidade, a par com R. Guénon e F. Schuon, formou a tríade daqueles que foram os mais importantes autores de escritos alinhados com o padrão de pensamento perenialista/tradicionalista no sec. XX. A presente tradução baseia-se no texto editado pelo filho do autor (R. P. Coomaraswamy) e publicado na obra The Essential Ananda K. Coomaraswamy em 2004 pela World Wisdom, que por sua vez referencia os escritos originais do autor Figures of Speach or Figures of Thought: Collected Essays on the Traditional or “Normal” View of Art (Londres: Luzac, 1946) e publicações como Coomaraswamy 1: Selected Papers, Traditional Art and Symbolism (ed. Roger Lipsey, Princeton: Bollingen Series, Princeton University, 1977) e The Door rand the Sky: Coomaraswamy on Myth and Meaning (ed. Rama P. Coomaraswamy, Princeton: Bollingen Series, Princeton University, 1997).


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“Egô de techên ou kâlo, ho an ê alogon pragma.”
Platão, Górgias, 465A[i]

Somos um povo peculiar. Digo isto relativamente ao facto de, apesar de quase todos os outros povos terem chamado à sua teoria da arte ou da expressão uma “retórica” e de terem considerado a arte como uma forma de conhecimento, nós termos inventado uma “estética” e considerarmos a arte como um tipo de sensação.

O original Grego da palavra “estética” significa percepção pelos sentidos, especialmente pela sensação. A experiência estética é uma faculdade que partilhamos com os animais e os vegetais, e é irracional. A “alma estética” é aquela parte da nossa constituição psíquica que “sente” as coisas e que lhes reage: por outras palavras, é a nossa parte “sentimental”. Identificar a nossa abordagem à arte com a prossecução destas reacções não é tornar a arte “bela” mas apenas aplicá-la à vida do prazer e desconectá-la das vidas activa e contemplativa.

A nossa palavra “estética” toma assim como adquirido o que é actual e comummente aceite, isto é, que a arte é evocada por emoções e que tem como fito a expressão e evocação dessas emoções. A este respeito, Alfred North Whitehead observava que “o modo de excitar emoções em favor delas próprias foi uma descoberta tremenda”.[ii] Chegámos ao ponto de inventar uma ciência dos nossos gostos e desgostos, uma “ciência da alma”, a psicologia, e substituímos a concepção tradicional da arte, como uma virtude intelectual e como beleza pertencente ao conhecimento, por meras explicações psicológicas.[iii] A nossa actual indignação quanto ao significado da arte é tão forte como a implicação da palavra “estética”. Quando nos referimos a uma obra de arte como “significante” tentamos esquecer que esta palavra apenas pode ser usada se seguida de um “de”, que a expressão apenas pode ser significante de alguma tese que estava para ser expressa, e negligenciamos que o que quer que seja que não significa algo é, literalmente, in-significante. Na verdade, se toda a finalidade da arte fosse “expressar emoções,” então o grau da nossa reacção emocional seria a medida da beleza e todo o juízo seria subjectivo, já que não pode haver disputa alguma sobre gostos. Dever-se-ia recordar que uma reacção é uma “afecção” e que toda a afecção é uma paixão, ou seja, algo sofrido e padecido passivamente, e não uma actividade da nossa parte – como numa operação de juízo.[iv] Igualar o amor pela arte com um amor por sensações sublimes é fazer das obras de arte uma espécie de afrodisíaco. As palavras “contemplação estética desinteressada” são uma contradição de termos e são completamente desprovidas de sentido.

“Retórica”, cujo original Grego significa perícia no discurso público, implica por outro lado uma teoria da arte qual expressão efectiva de teses. Existe uma grande diferença entre o que se diz visando o efeito e o que se diz ou se faz para que seja efectivo, e que tem que funcionar, ou não mereceria ser dito ou feito. É verdade que existe uma suposta retórica da produção de “efeitos”, tal como existe uma suposta poesia que consiste apenas de palavras emotivas, e um tipo de pintura que é meramente espectacular; mas este tipo de eloquência que faz uso das figuras [de linguagem] em favor das próprias figuras, ou simplesmente para que o artista se exiba, ou para trair a verdade nos tribunais da lei, não é propriamente retórica, mas antes sofística ou a arte da adulação. Entendemos “retórica”, qual Platão e Aristóteles, como “a arte de dar efectividade à verdade”.[v] Por conseguinte, a minha tese será aquela em que se nos propusermos usar ou compreender quaisquer obras de arte (com a possível excepção dos trabalhos contemporâneos, os quais podem ser “ininteligíveis”[vi]), deveríamos abandonar o termo “estética” tal como é empregue actualmente e regressar ao da “retórica”, o “bene dicendi scientia” de Quintiliano.

Aqueles para quem a arte não é uma linguagem mas antes um espectáculo podem objectar que a retórica está primeiramente relacionada com eloquência verbal e não com a vida das obras de arte em geral. Não estou seguro que mesmo tais objectores concordariam em descrever as suas próprias obras como mudas ou ineloquentes. De qualquer modo, devemos afirmar que os princípios da arte não se alteram pela variedade de materiais com que o artista trabalha – materiais tal como o ar vibrante no caso da música ou da poesia, a carne humana no palco, ou a pedra, o metal ou a argila na arquitectura, na escultura ou na cerâmica. Tão pouco um material poderá ser considerado mais belo do que outro; não se pode fazer uma espada de ouro melhor do que uma de aço. Na realidade, o material em si, sendo relativamente desprovido de forma, é relativamente feio. A arte implica uma transformação do material, a impressão de uma nova forma no material que teria estado mais ou menos desprovido dessa forma; e é precisamente neste sentido que a criação do mundo a partir de uma matéria completamente desprovida de forma é chamada de “obra de adornamento”.

Existem boas razões para o facto de que a teoria da arte tenha sido genericamente expressa em termos da palavra falada (ou secundariamente, escrita). Em primeiro lugar, é “através de uma palavra concebida no intelecto” que o artista, quer seja humano ou divino, trabalha.[vii] De novo, aqueles cuja própria arte era verbal, tal como no meu caso, discutiam naturalmente a arte da expressão verbal, enquanto os que trabalhavam com outros materiais também não eram necessariamente peritos na formulação “lógica”. E finalmente, a arte de falar pode ser melhor compreendida por todos do que pode a arte do ceramista, permitamo-nos dizer, já que todos os homens fazem uso da fala (quer retoricamente para comunicar um significado ou sofisticamente por exibicionismo), mas relativamente poucos são os que trabalham a argila.

Todas as nossas fontes estão conscientes da identidade fundamental de todas as artes. Platão, por exemplo, faz notar que “o perito, que está concentrado no melhor quando fala, certamente não falará aleatoriamente, mas com um fim em vista; ele é precisamente como aqueles outros artistas, os pintores, construtores, carpinteiros, etc.”;[viii] e de novo, “a produção de todas as artes são tipos de poesia, e os seus artesãos são poetas”,[ix] no sentido lato da palavra. “Demiurgo” (dêmiourgos) e “técnico” (technitês) são as palavras Gregas comuns para “artista” (artifex). Platão inclui sobre estas denominações não apenas poetas, pintores e músicos, mas também arqueiros, tecedores, bordadores, ceramistas, carpinteiros, escultores, agricultores, doutores, caçadores, e sobretudo aqueles cuja arte é governar; Platão fez apenas distinção entre a criação (dêmiourgia) e o mero trabalho (cheirourgia), entre a arte (technê) e indústria sem arte (atechnos tribê).[x] Todos estes artistas são infalíveis, na medida em que são verdadeiramente fazedores e não meramente industriosos, na medida em que são musicais e por conseguinte sábios e bons, e na medida em que estão na posse da sua arte (entechnos, cf. entheos) e que são governados por ela.[xi] O significado primário da palavra sophia, “sabedoria”, é o de “perícia”, assim como o Sânscrito kausalam é uma “perícia” de qualquer tipo, tanto no fazer, como no agir ou no conhecer.

Agora, para que servem todas estas artes? Sempre e apenas para suprimir uma necessidade ou uma deficiência, real ou imaginada, por parte do patrono humano, para quem o artista trabalha como consumidor colectivo.[xii] Quando trabalha para si mesmo, o artista, na qualidade de ser humano, é também um consumidor. As necessidades que a arte deve servir podem aparentar ser materiais ou espirituais mas, tal como insiste Platão, esta é uma e a mesma arte – ou uma combinação de ambas as artes, prática e filosófica – que tanto deve servir o corpo como a alma para que seja admitida na Cidade ideal.[xiii] Poderemos ver na actualidade que a intenção de servir os dois fins de forma separada é um sintoma peculiar da nossa “falta de coração” moderna. A nossa distinção entre arte “bela” e “aplicada” (ridícula, já que a bela arte ela mesma é aplicada para dar prazer) é como se “não só de pão”[xiv] significasse “de bolo” para a elite que vai às exibições e “só de pão” para a maioria, e habitualmente para todos. A música e a ginástica de Platão, as quais correspondem ao que parecemos apreender por arte “bela” e “aplicada” (uma vez que uma é para a alma e a outra para o corpo), nunca estão divorciadas na sua teoria da educação; seguir apenas uma conduz à afeminação, seguir apenas a outra, à brutalidade; o terno artista não é mais homem do que o possante atleta; a música deve ser realizada nas graças corporais, e o poder físico deveria apenas ser exercitado em moção moderada, e não em violenta.[xv]

Seria supérfluo explicar quais são as necessidades materiais a serem servidas pela arte: necessitamos apenas relembrar que uma censura daquilo que incumbe ou não ser feito deveria corresponder ao nosso conhecimento sobre o que é bom ou mau para nós. É obvio que um governo sábio, mesmo um governo dos livres para os livres, não pode permitir a manufactura e a venda de produtos que são necessariamente nocivos, por muito rentável que essa manufactura possa ser para aqueles cujo interesse é o de vender, mas importa insistir naquelas normas de vivência para assegurar aquela que foi outrora a função dos grémios e do artista individual “inclinado pela justiça, que rectifica a vontade, para fazer o seu trabalho fielmente”.[xvi]

Relativamente ao fim espiritual das artes, aquilo que Platão diz é que estamos dotados pelos deuses com a visão e a audição, e que a harmonia “foi dada pela Musas àquele que consegue fazer uso delas intelectualmente (meta nou) e não, tal como se supõe nos dias de hoje, como um auxílio ao prazer irracional (hêdonê alagos), mas para apoiar a revolução interior da alma, para lhe restabelecer a ordem e em conformidade com ela própria. E devido ao desejo de medida e à carência de graça na maioria de nós, o ritmo foi-nos dado pelos mesmos deuses e com os mesmos fins”;[xvii] e enquanto a paixão (pathé) evocada por uma composição de sons “fornece um prazer-dos-sentidos (hêdonê) ao desinteligente, (a composição) confere no inteligente aquele consolo no coração que é induzido através da imitação da harmonia divina produzida nas moções mortais.”[xviii] Este último deleite ou contentamento que é experienciado quando participamos no festim da razão, o qual é também uma comunhão, não é uma paixão mas antes um êxtase, um sair fora de nós mesmos e um permanecer no espírito: uma condição insusceptível de análise, em termos de prazer ou dor, que possa ser sentida por corpos ou almas sensitivos.

O eu anímico ou sentimental deleita-se nas superfícies estéticas das coisas naturais ou artificiais, com as quais se assemelha; o eu intelectual ou espiritual aprecia a ordem destas coisas e é nutrido pelo que, naquelas coisas, a ele se assemelha. O espírito é uma entidade mais meticulosa do que sensitiva; não saboreia as qualidades físicas das coisas mas antes aquilo a que se chama o perfume ou o aroma dessas coisas, não uma forma sensível mas uma forma inteligível, por exemplo “a imagem que não está nas cores” ou “a música inaudível”. O “consolo no coração” de Platão é o mesmo que aquela “beatitude intelectual” que a retórica Indiana vê no “saborear do aroma” de uma obra de arte, uma experiência imediata, congenérica com o saborear de Deus.[xix]

Por conseguinte, isto não é de modo algum uma experiência estética ou psicológica, já que implica aquilo a que Platão e Aristóteles chamavam de katharsis, e uma “derrota das sensações do prazer” ou dor.[xx] A katharsis é uma purga e purificação sacrificial ”que consiste na separação da alma do corpo, na medida em que tal é possível”; é, noutras palavras, um tipo de morte, aquele tipo de morte a que é dedicada a vida do filósofo.[xxi] A katharsis Platónica implica um êxtase, ou um “apartar” do eu próprio, energético, espiritual e imperturbável, relativamente ao eu próprio, passivo, estético e natural, implica um “ser fora de si mesmo” que é um ser “no seu juízo correcto” e um Eu próprio real, essa “in-sistência” que Platão tem em mente quando “desejaria de novo nascer interiormente em beleza” e chama a isto uma oração bastante.[xxii]

Platão repreende o seu amadíssimo Homero por atribuir aos deuses e aos heróis paixões excessivamente humanas e pela perícia nas imitações destas paixões, que são tão bem calculadas, a ponto de suscitar as nossas próprias “sim-patias”.[xxiii] A katharsis da Cidade de Platão não se efectua por exibições tais como estas, mas antes pela banição de artistas que se permitem imitar todo o tipo de coisas, por mais vergonhosas que sejam. Os nossos próprios novelistas e biógrafos teriam sido os primeiros a partir, enquanto que entre os poetas modernos não é fácil pensar noutro que não William Morris como um que Patão pudesse ter aprovado com sinceridade.

A katharsis da Cidade tem paralelo com a do indivíduo; as emoções estão tradicionalmente ligadas com os órgãos de evacuação, precisamente porque as emoções são resíduos. É difícil ter a certeza sobre o significado exacto da bem conhecida definição de Aristóteles, em cuja tragédia “através da sua imitação de piedade e medo efectiva a katharsis destes e das paixões idênticas,[xxiv] apesar de estar claro que também para Aristóteles a purificação é a das paixões (pathemâta); devemos ter presente que para Aristóteles, a tragédia é contudo e essencialmente uma representação de acções, e não de carácter. Certamente que não é um “soltar” esporádico de – que é o mesmo que dizer, indulgência em – emoções “reprimidas” que poderá conduzir à emancipação das mesmas; um soltar como este, tal como a ebriedade de um ébrio, pode apenas ser uma situação temporária.[xxv] Naquilo a que Platão chama com aprovação o tipo de poesia “mais austero”, presume-se que estamos a desfrutar de um banquete de razão em vez de um “pequeno-almoço” de sensações. A sua katharsis é um êxtase ou uma libertação da “alma imortal” relativamente às afeições do “mortal”, uma concepção de emancipação que tem paralelo estreito nos textos Indianos, em que a libertação se realiza por um processo de “sacudir-se os corpos”.[xxvi] O leitor ou o espectador da imitação de um “mito” é raptado da sua personalidade habitual e passiva e, tal como em todos os outros rituais sacrificiais, torna-se um deus enquanto dura o rito e regressa apenas a ele próprio quando o rito capitula, quando a epifania está no seu término e a cortina cai. Devemos recordar que todas as operações artísticas eram originalmente ritos, e que o propósito do rito (tal como a palavra teletê implica) é sacrificar o homem antigo e fazer ser um homem novo e mais perfeito.

Podemos então imaginar facilmente aquilo que Platão, expondo uma filosofia da arte que não “lhe pertence”, mas que é intrínseca à Filosofia Perene, teria pensado sobre as nossas interpretações estéticas e do nosso contentamento para com a noção de que o fim último da arte é simplesmente o de agradar. Pois, como Platão diz, “o ornamento, a pintura, e a música feitos apenas para dar prazer” são apenas “brinquedos”.[xxvii] O “amante da arte” é, por outras palavras, um “playboy”. Admite-se que a maioria dos homens julga a arte pelo prazer que proporcionam; mas em vez de se afundar a um tal nível, Sócrates diz não, “nem que todos os bois e cavalos e animais do mundo, pela sua prossecução do prazer, proclamem que tal é o critério”.[xxviii] O tipo de música que Platão aprova não é uma música multifária e alterável, mas antes uma música canónica;[xxix] não o som de instrumentos “poli-harmónicos”, mas a simples música (haplotês) da lira acompanhada pelo cântico “concebido deliberadamente para produzir na alma aquela sinfonia de que temos estado a falar”;[xxx] não a música de Marsyas o Sátiro, mas aquela de Apolo.[xxxi]



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* Quintiliano IX.4.117, “Figura? Quae? Cum orationis, turn etiam sententiae?” Cf. Platão, Républica 601B.
[i] “Não posso dar justamente o nome de ‘arte’ a algo irracional.” Cf. Leis 890D, “A lei e a arte são filhos do Intelecto” (nous). A sensação (aisthêsis) e o prazer (hêdonê) são irracionais (alogos, ver Timeu 28A, 47D, 69D). Em Gorgias, o irracional é aquilo que não pode dar conta de si mesmo, aquilo que é irrazoável, que não tem raison d’être. Ver também Fílon, Legum Allegoriarum I.48, “Porquanto a relva é o alimento dos seres irracionais, também os sensivelmente-perceptíveis (to aisthêton) foram destinados à parte irracional da alma.” Aisthêsis é tão somente o que os biólogos agora chama de “irritabilidade”.
[ii] Citado com a aprovação de Herbert Read, Art and Society (Nova Iorque, 1937), p. 84, de Alfred North Whitehead, Religion in the Making (Nova Iorque, 1926).
[iii] Sum. Theol. I-II.57.3c (a arte é uma virtude intelectual); I.5.4 ad 1 (a beleza pertence ao cognitivo, não à faculdade apetitiva).
[iv] “Patologia … 2. O estudo das paixões ou emoções” (The Oxford English Dictionary), 1933, VII, 554). A “psicologia da arte” não é uma ciência da arte mas sim da forma como somos afectados pelas obras de arte. Uma afecção (pathêma) é passiva; fazer ou agir (poiêma, ergon) é uma actividade.
[v] Ver Charles Sears Baldwin, Medieval Retoric and Poetic (Nova Iorque, 1928), p. 3, “Uma arte de discursar verdadeira que não se apoie na verdade não existe e nunca existirá” (Fedro 260E; cf. Górgias 463-465, 513D, 517A, 527C, Leis, 937E).
[vi] Ver E. F. Rothschild, The Meaning of Unintelligibility in Modern Art (Chicago, 1934), p. 98. “A maldição dos feitos artísticos foi a alteração do visual como um meio de compreensão do não-visual para o visual como um fim em si mesmo e a estrutura abstracta das formas físicas como a transcendência artística pura do visual … uma transcendência completamente estranha e ininteligível para o homem médio [sc. normal] (F. de W. Bolman, criticando a obra de E. Kahler Man the Measure, em Journal of Philosophy, XLI, 1944, 134-135; itálico meu).
[vii] Sum. Theol. I.45.6c, “Artifex autem per verbum in intellectu conceptum et per amorem suae voluntatis ad aliquid relatum, operator”; I.14.8C, “Artifex operatur per suum intellectum”; I.45.7C, “ Forma artificiati est ex conceptione artificis“. Ver também São Boaventura, Il Sententiarum I-1.1.1 ad 3 e 4, “Agens per intellectum producit per formas”. Informalidade é fealdade.
[viii] Górgias 503E.
[ix] Simpósio 205C.
[x] Ver, por ejemplo, O Estadista 259E, Fedro 260E, Leis 938A. A palavra tribê significa literalmente “um polimento” [a rubbing], e é um equivalente exacto da nossa expressão moderna “um desgastar” [a grind] (Cf. Hipócrates, Fracturas 772,”vergonhoso e sem arte”, e as palavras “indústria sem arte é brutalidade” de Ruskin. “Para todos os povos bem governados há um trabalho de que cada homem fica encarregue e que ele deve executar” (República 406C). O “lazer” é a oportunidade de fazer este trabalho sem interferência (Républica 370C). Um “trabalho por lazer” é um que requer atenção indivisa (Eurípedes, Andrómaca 552). A visão de Platão sobre o trabalho em nada difere da de Hesíodo, o qual diz que o trabalho não é nenhum opróbrio mas que é a melhor dádiva dos deuses ao homem (Os Trabalhos e os Dias 295-296). Sempre que Platão desaprova as artes mecânicas, fá-lo relativamente aos tipos de trabalho que providenciam exclusivamente o bem estar corporal e que não providenciam em simultâneo alimento espiritual; Platão não relaciona a cultura com o ócio.
[xi] República 342 BC. O que é feito segundo a arte é feito correctamente (Alcibíades 1.108B). Seguir-se-á que aqueles que estão na possa de e que são governados pela sua arte e não pelos seus próprios impulsos racionais, os quais anseiam por inovação, operarão do mesmo modo (República 349-350, Leis 660B). “A arte tem fins fixos e meios de operação apurados” (Sum. Theol. II-IIII.47.4 ad 2, 49.5 ad 2). É desta mesma forma que um oráculo, falando ex cathedra, é infalível, mas não o homem que fala por ele mesmo. Isto é igualmente verdade no caso de um guru.
[xii] República 396BC, O Estadista 279CD, Epinome 975C.
[xiii] República 398A, 401B, 605-607, Leis 646C.
[xiv] Deut. 8:3, Lucas 4:4.
[xv] República 376E, 410A-412A, 521E-522A, Leis 673A. Platão sempre tem presente a obtenção do “melhor” para o corpo e para a alma, “já que não é bom, nem inteiramente possível, que qualquer tipo possa ser deixado só, puro e isolado” (Filebo 63B; República 409-410). “O único meio para a salvação destes males não é nem o exercitar da alma sem o corpo, nem do corpo sem a alma” (Timeu 88B).
[xvi] Sum. Theol. I-II.57.3 ad 2 (baseado na visão de justiça de Platão, que incumbe a cada homem o trabalha para o qual ele está naturalmente apto). Nenhuma das artes visa o seu próprio bem, mas apenas o do patrão (República 342B, 347A), o qual reside na excelência do produto.
[xvii] Timeu 47DE; cf. Leis 659E, no cântico.
[xviii] Timeu 80B, parafraseado em Quintiliano IX.117, “docti rationem componendi intelligunt, etiam
indocti voluptatem”. Cf. Timeu 47, 90D
[xix] Sâhitya Darpana III.2-3; cf. Coomaraswamy, The Transformation of Nature in Art, 1934, pp.
48-51.
[xx] Leis 840C. Sobre a katharsis, ver Platão, Sofista 226-227, Fedro 243AB, Fédon 66-67, 82B, Républica 399E; Aristóteles, Poética VI.2.1499b.
[xxi] Fédon 67DE.
[xxii] Fedro 279BC; tal como Hermes (Lib XIII.3,4, “Passei para fora de mim mesmo”, e Chuang-Tzu,
cap. 2, “Hoje enterrei-me a mim mesmo”. Cf. Coomaraswamy, “On Being in One’s Right Mind”, 1942.
[xxiii] Républica 389-398.
[xxiv] Aristóteles, Poética VI.2.1449b.
[xxv] O homem estético é “um que é demasiado fraco para enfrentar o prazer e a dor” (Républica 556C). Se pensarmos na impassibilidade (apatheia), não como o que nos referimos como “apatia” mas como sendo superior aos impulsos do prazer e da dor; cf. BG II.56 com horror, isto é porque deveríamos estar “indispostos a viver sem fome e sem sede ou afins, se não pudéssemos também sofrer (paschô, sânscrito bâdh) as consequências naturais destas paixões,” os prazeres de comer e beber e disfrutar belas cores e sons (Filebo 54E, 55B). A nossa atitude para com os prazeres e as dores é sempre passiva, se não verdadeiramente masoquista. Cf. Coomaraswamy, Time and Eternity, 1947, p. 73 e notas.
É muito claro na Républica 606 que o deleite numa tempestade emocional é exactamente o que Platão não entende por katharsis; uma tal indulgência apenas favorece os próprios sentimentos que se tentam suprimir. Um paralelo perfeito pode ser encontrado em Milinda Pañho (Mil, p. 76), pergunta-se, sobre as lágrimas derramadas pela morte de uma mãe ou derramadas pelo amor da Verdade, qual delas pode ser chamada de “cura” (bhesajjam) – ou seja, para a mortalidade do homem – e é assinalado que as primeiras são febris, as últimas frias, e é o que é frio que cura.
[xxvi] JUB III.30.2 e 39.2; BU III.7.3-4; CU VIII.13; Svet. Up. V.14. Cf. Fédon 65-69.
[xxvii] Estadista 288C.
[xxviii] Filebo 67B.
[xxix] Républica 399-404; cf. Leis 656E, 660, 797-799.
[xxx] Leis 659E; ver também nota 86 abaixo
[xxxi] Républica 399E; cf. Dante, Paraíso 1.13-21.

*** Parte 2 ***

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Nembutsu como “Lembrança”

Passaram já vários meses desde que regressei de uma fantástica viagem ao Nepal. Nessa viagem, uma das presenças mais fortes e marcantes foi a fórmula sagrada do Budismo Tibetano, a “Om mani padme Hum”, a frase com seis sílabas revelada pelo Bodhisattva Chenrezig.

Durante o tempo em que convivi com esta maravilhosa tradição, a qual se respira tão naturalmente como o ar puro dos Himalaias, várias vezes me veio à memória o ensaio de Marco Pallis, Nembutsu como “Lembrança”[1], que tinha lido no livro A Buddhist Spectrum, lamentando o quanto gostaria de o ter comigo para relembrar alguns detalhes da sua exposição. Decidi que quando regressasse iria trabalhar na sua tradução. Esta revelou-se um grande desafio, como fica patente no tempo que demorou a surgir no Sabedoria Perene.

Para ilustrar alguns dos aspectos referidos por Pallis no seu texto, decidi adicionar algumas das muitas fotografias que trouxe dessa viagem, com as quais espero tornar o texto ainda mais cativante, aliás, tal como Pallis o havia feito originalmente.

Gostaria ainda de deixar aqui o meu profundo agradecimento a Mateus Soares de Azevedo pela sua contribuição na revisão do texto.

Não resisto a terminar com o famoso Namasté (saúdo o divino dentro de ti).




Se nos fosse colocada a questão sobre em que consistem as principais diferenças entre o Theravada, o Budismo do Cânon em Pali, e o Mahayana, este com a sua grande variedade de escolas e métodos, poderíamos começar por referir a ênfase particular dada, nos ensinamentos Mayahana, à função cósmica do Bodhisattva: isto não significa que em relação ao Therevada, o ideal de “Bodhisattva” constitua qualquer espécie de inovação; bastará ler os Jâkatas ou as histórias sobre os nascimentos anteriores do Budha Sakyamuni, para encontrar essas atitudes características, com as quais a palavra Bodhisattva veio a estar relacionada nos séculos subsequentes, aqui prefigurada de um modo mitológico[2]. Estas histórias eram correntes antes da distinção entre Therevada e Mayahana estarem em voga; desde essa altura foram mantidas como um meio comum de instrução popular, expandindo-se a todos os recantos do mundo budista. No entanto, é justo referir que, com o Mahayana, o Bodhisattva ganha, como modelo, uma importância central, de tal forma que o “Voto Bodhisattva” de dedicação consciente à salvação de todos os seres sem excepção, pode ser considerado como indicativo da entrada de um homem para o Mahayana; nesta perspectiva, todas as ocorrências anteriores ao instante da tomada desta decisão devem ser consideradas apenas como uma aspiração, a qual esperava a sua expressão formal através da pronunciação do voto, quando a sua hora chegasse.

Através do seu significado original, a palavra “Bodhisattva” representa alguém que apresenta uma indubitável afinidade para a iluminação, alguém que tende nessa direcção deliberada e instintivamente. No contexto do caminho budista representa alguém que atingiu uma fase avançada[3]; essa pessoa é um seguidor dedicado do Budha em princípio e de facto. Se tudo isto é do conhecimento geral, aquilo que nos interessa aqui é, no entanto, extrair a partir da vocação de Bodhisattva o seu aspecto mais característico, tal como expresso nas palavras do Voto: “Eu, [nome], na presença do meu Mestre, [nome], na presença dos Budas, abraço a ideia de Iluminação… Eu adopto todas as criaturas como mãe, pai, irmãos, filhos, irmãs, e familiares. A partir deste momento… para benefício das criaturas, praticarei caridade, disciplina, paciência, energia, meditação, sabedoria[4] e os modos para a sua aplicação… que o meu Mestre me aceite como um futuro Budha”.

Rapidamente se percebe que esta declaração de intenção antecipa, por implicação, o voto adoptado pelo Bodhisattva Dharmakara, a partir do qual surge o ensinamento e a prática do Terra Pura. Aquele que primeiro proferiu o voto de dedicação total para com o bem de todas as criaturas, “até à última folha de erva” como diz o ditado, depois de deambular pelo caminho de vida em vida ou, como no caso no caso excepcional do poeta-santo Tibetano Mila Repa, no decurso de uma única vida, encontra-se claramente preparado para o grande despertar; os seus esforços intermináveis, canalizados através dos upâyas (meios) apropriados, respondendo a todas as possíveis necessidades, colocaram-no em posse de prajnâ, a sabedoria a partir da qual todas as coisas num mundo anteriormente opaco foram tornadas transparentes à luz de Bodhi – é, neste ponto crucial, que o Bodhisattva renova o seu voto de auxiliar todos os seres. No entanto, desta vez, ele oferece ao seu voto um carácter negativo e mais intenso ao afirmar que, “Eu não entrarei no nirvana até que esteja seguro que poderei levar comigo todas as restantes criaturas actualmente manchadas pela ignorância e em consequente sofrimento”; através deste voto, a compaixão de Bodhisattva é dotada de uma força irresistível; eons de prática do bem passam num relance; inúmeras criaturas são elevadas da sua miséria, até que um dia a taça do mérito de Dharmakara transborda e veja-se!, encontramo-nos face a face com Amitabha, imanando em todas as direcções a sua luz salvadora. Desta forma, é-nos dada a possibilidade de compreender que o voto não falhou os seus objectivos; o próprio Budha surge à nossa frente oferecendo a prova tangível da eficácia do voto através da comunicação do seu Nome sob a forma de nembutsu; a partir deste momento, isto será suficiente para fazer atravessar as perturbadas águas do samsâra, qualquer ser que confie o seu corpo de pecador a este único veículo, tal como o próprio severo patriarca do Zen, Bodhidharma, confiou um dia numa cana que encontrou na margem de um rio e foi transportado em segurança, na sua fina estrutura, até à outra margem. Esta é a história do providencial nascimento do Jôdô-shin.

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Reduzida à sua essência, a nembutsu é, acima de tudo, um acto de ‘lembrança’, daí a atenção surgir naturalmente[5], dando origem à fé no, e à gratidão pelo, Voto. Em resultado destas atitudes elementares é deduzido um completo programa de vida.

Dadas estas propriedades compreendidas no termo nembutsu como indicador providencial e catalisador do conhecimento essencial, não deverá causar qualquer espanto ouvir que existem exemplos comparáveis, da ligação de um nome Divino com um upâya invocatório, em diversos locais para além da China e do Japão; os detalhes serão certamente distintos, mas o princípio operativo mantém-se o mesmo. Este aspecto não impugna, de forma alguma, a originalidade espiritual da mensagem oferecida através dos dois grandes patriarcas, Honen e Shinran Shonin, no âmbito do Budismo Japonês, com efeitos que se prolongam até aos dias de hoje; pelo contrário, este aspecto é uma prova adicional da aplicabilidade universal deste método às necessidades da humanidade e, especialmente, durante uma fase do ciclo do mundo em que a religião tem grandes dificuldades em se manter viva nas mentes humanas, face a um vasto e crescente aparato de distracção, como tal nunca antes visto na história. O facto da óbvia acessibilidade de um tal método não excluir as mais profundas possibilidades – na realidade o oposto é verdade – tornou a nembutsu, e semelhantes métodos encontrados em toda a parte, potentes instrumentos de regeneração, mesmo sob as mais adversas circunstâncias: este facto é uma medida da sua intemporalidade, bem como da sua importância intrínseca.

Como exemplo de mútua corroboração entre tradições, escolhi uma forma de invocação comum no mundo Tibetano/Mongol onde, no entanto, não está, tal como no Japão, associada a nenhuma escola em particular, sendo, de facto, usada por aderentes de várias escolas sem qualquer distinção. Outros exemplos não pertencentes à escola budista poderiam igualmente ter sido escolhidos, mas pareceu-me preferível confinar a escolha a locais próximos, quer porque podemos continuar a usar uma terminologia comum, quer sobretudo porque, na versão Tibetana, o Buddha Amitabha é apresentado de uma forma que torna claramente aparente a familiaridade desta tradição com a Jôdô-shin.

A fórmula operativa, neste caso, é a frase com seis sílabas Om mani padme Hum, da qual o reconhecido revelador é o Bodhisattva Chenrezig (Avalokitesvara em Sâncrito, Kwannon em Japonês). É a sua íntima relação com o Budha Amitabha que providencia a ligação mitológica entre as duas tradições em questão. De forma a melhor demonstrar este ponto, será necessário recuar até ao momento em que o Bodhisattva Dharmakara se transfigurou em Budha da Infinita Luz; aquilo que teremos de dizer agora será algo como uma sequela da história da ascensão de Dharmakara ao “estado” de Budha, tal como relatado previamente.

Se pararmos para examinar esta história em maior detalhe, seremos confrontados com um facto repleto de significado, nomeadamente, que seria possível, sem a menor inconsistência, reverter a ênfase ao dizer que é um prestes a ser Amitabha que foi substituído por um Dharmakara realizado. Por outras palavras, se o estado de Budha representa um estado de consciência ou de conhecimento, o estado de Bodhisattva, quando plenamente atingido, como neste caso, representa a dimensão dinâmica dessa mesma consciência; é essa consciência em modo dinâmico. É evidente que, este último modo de consciência, só pode ser realizado em relação a um objecto em vista; se a salvação de seres em sofrimento for o seu motivo ostensivo, então esta qualidade dinâmica terá necessariamente um carácter de compaixão, a virtude já especificada na versão elementar do voto; esta virtude postula, ainda, um determinado mundo para o seu exercício, sem o qual a compaixão não seria sequer um conceito possível.

Como expressão dinâmica daquilo que é o estado estático de Budha, o estado de Bodhisattva pertence a este mundo; é com perfeita lógica que os ensinamentos Mahayana identificaram, tradicionalmente, compaixão com “método”. O método é o parceiro/equivalente dinâmico da “sabedoria”, a qualidade de consciência: tente-se separar estas duas ideias e elas perderão qualquer aplicabilidade prática, razão pela qual surge a máxima Mahayana que afirma que a Sabedoria e o Método formam um eterno sizígia, excluindo toda a possibilidade de separação. O Bodhisattva incarna o método exequível no samsâra; o Budha personifica a sabedoria eternamente presente no nirvana: isto deixa-nos com duas tríades complementares, nomeadamente, “Bodhisattva este mundo método”, e “Budha terra-Budha (Terra Pura) – sabedoria”. “A vida humana tão dura de obter” é a oportunidade de compreender estas possibilidades complementares; se é verdadeiro o dito que no coração de cada grão de areia se pode encontrar um Budha, não é menos verdade dizer que, em cada ser, é reconhecível um potencial Bodhisattva, em modo activo no caso do homem, e num modo relativamente passivo no caso dos restantes seres, de qualquer forma realizável através de um mais importante nascimento na forma humana.[6]

Do exposto, decorre que a actividade do Bodhisattva em prol de todos os seres não perde a sua necessidade a partir do momento em que o estado de Budha é atingido; o caminho de ascensão de Dharmakara para Amitabha, tal como confirmado pelo Voto, deverá ter o seu equivalente no caminho descendente e sob um novo nome. Este nome é, de facto, Chenrezig ou Kwannon, os quais, segundo relata a história, nasceram a partir da cabeça do próprio Amitabha, tornando-se, assim, os nomeados concessores de uma misericórdia que é tão só uma função da Luz do nirvana; em Chenrezig, podemos ver um Dharmakara como que renascido ‘nirvanicamente’, se uma tal expressão é permitida. Aqui, mais uma vez, a história deste evento celeste é esclarecedora, pois somos informados que Chenrezig, no exercício da tarefa de misericórdia colocada sobre ele pelo seu criador e professor Amitabha, começou por conduzir tantos seres em direcção à prometida terra-Budha que os próprios infernos ficaram vazios. No entanto, quando este Bodhisattva voltava a olhar para o mundo, tal como o seu predecessor Dharmakara o havia feito previamente à pronunciação do seu voto, ele observou o horrendo facto que, tão rapidamente quanto uma grande quantidade de seres subiam para fora da roda infernal de nascimento e morte no seguimento do ser despertar, outra quantidade de seres, em aparente despreocupação, rapidamente se apressavam em preencher os lugares vagos, de tal forma que a massa de sofrimento no samsâra se mantinha virtualmente tão má como sempre. O Bodhisattva foi tão invadido por desilusão e piedade que a sua cabeça se quebrou em fragmentos, razão pela qual o Budha surgiu em seu auxílio com uma nova cabeça. Este acontecimento repetiu-se pelo menos umas dez vezes até que, com a oferta da décima primeira cabeça, o Bodhisattva foi capaz de retomar a sua missão sem mais obstáculos.

Na iconografia Tibetana, Chenrezig é frequentemente representado sob a sua forma de onze cabeças, adequadamente conhecida por “O Grande Compassivo”; múltiplos braços acompanham esta forma como que representando as intermináveis formas com as quais o Bodhisattva pode exercer a sua função de auxiliador de seres. O retrato mais usual de Chenrezig é, no entanto, aquele em que é representado com quatro braços e toda a figura colorida de branco; numa mão segura um rosário, objecto que simboliza a sua comunicação da mani como meio invocatório. Alguns detalhes de como a invocação com a mani é realizada pelos Tibetanos servirão para relacionar esta prática com outros métodos semelhantes encontrados no Japão e noutros locais.

Em primeiro lugar, abordemos a própria fórmula: a sua tradução mais comum é “Om, jóia no Lótus, Hum”. Obviamente, estas palavras não apresentam nenhum significado lógico imediato; podemos, no entanto, assumir que, uma vez que na iconografia tradicional os Budhas são normalmente representados sentados numa flor de Lótus, essa serena flor repousando sobre as águas da possibilidade e, dessa forma, a evocar a natureza das coisas, a jóia deverá representar a presença do Budha e o tesouro dos seus ensinamentos, convidando para a sua descoberta; mas estas constatações são, no entanto, ainda muito superficiais. Em relação às primeiras e últimas sílabas, estas pertencem à categoria de ejaculações metafísicas potentes, pertencentes a muitas iniciações tântricas: pode-se afirmar, com este tipo de fórmula, que o objectivo não é que esta seja dissecada analiticamente, mas pelo contrário, que a sua mensagem nasça espontaneamente numa mente focada em concentração. Este ponto de vista foi confirmado pelo Dalai Lama quando lhe coloquei a questão se a mani seria suficiente por si só para conduzir um homem até à Libertação. Sua Santidade respondeu que seria de facto suficiente para aquele que tenha penetrado no coração do seu significado, uma asserção que suporta a afirmação que a Om mani padme Hum contem “a quintessência do ensinamento de todos os Budhas”. O facto do Dalai Lama exercer, especificamente, uma “actividade de presença” no mundo em nome do Bodhisattva Chenrezig, revelador da mani, oferece ao seu comentário relativo a este aspecto um carácter ainda mais autoritário.


Como em todos os casos semelhantes, deve ser procurada, por aquele que pretende evocar a mani, uma lung (autorização) iniciática, sem a qual a prática continuará irregular e consequentemente ineficaz. Uma vez conferida a lung, é possível invocar de diversas formas, ora sob a própria respiração, ora, como mais comummente, num murmúrio audível, para o qual a palavra Tibetana é a mesma do que a usada para descrever o ronronar de um gato. É recomendado, para quem usa a invocação regularmente, que seja proferido um poema especial de quatro linhas antes de cada sessão e, da mesma forma, um outro como conclusão. Estes poemas são os seguintes:

I

Puro de pecado e de uma luminosa brancura
Nascido da cabeça do perfeito Buddha
Olha para baixo em compaixão pelos seres
Que a Chenrezig seja oferecida oração.

II

Possa eu, brevemente, pelo mérito desta [invocação]
Ser preenchido com o poder de Chenrezig.
Que todos os seres, sem uma única omissão,
Se estabeleçam na sua terra [de Chenrezig].

Não será necessário sublinhar a referência a Amitabha no primeiro verso e a referência á terra-Budha no segundo, de forma a mostrar o quanto estão perto a mani e a nembutsu em relação ao seu principal propósito.

Deverá, ainda, ser feita referência ao tratado relacionado com a mani, no qual são destacadas as várias correspondências simbólicas possíveis de atribuir às seis sílabas, cada uma delas passível de ser um tema para meditação. Estes esquemas de seis partes abrangem um vasto campo, tendo início com a libertação de cada um em torno dos possíveis estados de existência senciente e a realização de cada uma das seis pâramitâs ou Virtudes Transcendentes (ver nota 4); as últimas partes deste tratado conduzem a mente para águas ainda mais profundas, as quais estão para além do âmbito do presente ensaio.

Mudando para aspectos mais externos da invocação mani, é prática comum usar um qualquer tipo de suporte rítmico enquanto se repetem as palavras do mantra, o qual pode ser um rosário ou um utensílio, particular ao Tibete, que tem sido erroneamente designado, por viajantes estrangeiros, como “roda de oração” (uma vez que não existe qualquer tipo de petição). Estas rodas consistem numa caixa rotativa fixa na extremidade de um eixo de madeira, contendo um cilindro de papel finamente enrolado inscrito, em toda a sua área, com a fórmula da mani. Um pequeno peso fixo à caixa permite que quem invoca consiga manter a caixa a girar enquanto repete as palavras; por vezes, sobretudo nos mais idosos, a prática é reduzida a um silencioso movimento rotativo, com a invocação tomada como garantida.


Grandes rodas-mani podem ser encontradas às portas dos templos para que as pessoas possam, à medida que entram, pô-las em movimento; da mesma forma, filas de rodas mais pequenas são normalmente dispostas ao longo das paredes exteriores para que, aqueles que praticam o pradakshinam ou o circuito do edifício sagrado, em sentido dos ponteiros do relógio, as possam pôr a rodar enquanto caminham.




Mas a lembrança da mani não pára aqui; em muitos sítios, imensas rodas-mani rodam incessantemente junto a cascatas, enquanto bandeiras contendo as palavras sagradas ondulam em todas as casas. Finalmente, pedras talhadas com a fórmula, dedicadas como oferenda pelos devotos, são encontradas à beira das estradas e ao longo dos caminhos para os mosteiros. Estas rodas-mani são dispostas de forma a permitir a passagem em ambos os lados, uma vez que a reverência requer que um homem ofereça sempre o seu lado direito a qualquer objecto sagrado pelo qual passe, seja uma stupa, seja uma das rodas-mani; quando a cavalo, a regra deverá ser a mesma. O ditado popular: “cuidado com os demónios à esquerda”, refere-se a esta prática.




Se for colocada a questão em relação ao propósito de tudo isto, a resposta será de que serve para manter as pessoas com a constante lembrança do objectivo da vida humana; a reminiscência é a chave para uma vida religiosamente direccionada a todos os níveis, desde o mais externo e popular, até ao mais interior e intelectual; “popular” pode muitas vezes ser sinónimo de uma profunda sabedoria, pois a distinção anterior não tem qualquer intenção social. Certamente, no Tibete que visitámos enquanto a ordem tradicional ainda se encontrava intacta, toda a realidade estava completamente inundada pela mensagem do Dharma do Budha; esta sentia-se no ar que respirávamos, parecia que era cantada pelos pássaros e murmurada pelos regatos das montanhas à medida que serpenteavam por entre rochas e pedras, um perfume “Dhármico” parecia soltar-se de todas as flores, tendo, simultaneamente, o efeito de uma lembrança e de uma indicação daquilo que ainda precisava de ser feito.


A total ausência de receio por parte das criaturas selvagens à aproximação do homem era um verdadeiro testemunho desta mesma verdade; houve tempos em que um homem poderia ser desculpado por supor que já estava na presença da Terra Pura. A Índia no tempo do Rei Ashoka deve ter sido qualquer coisa deste tipo; encontrá-la em pleno século vinte era qualquer coisa de extraordinário.


Adicionalmente, uma tal situação teria de se reflectir na vida das pessoas, apesar das inevitáveis falhas humanas; a piedade era totalmente espontânea e não precisava nem de atitudes dramáticas para a estimular, nem de justificações racionais. Cada homem era capaz de descobrir o seu próprio nível sem qualquer dificuldade, de acordo com a sua capacidade, e mesmo uma modesta qualificação o poderia levar muito longe.


Entre as muitas pessoas que recorriam à mani, podemos afirmar que a maior parte delas ficava apenas pela sua utilização como forma de reunir o necessário mérito com vista a um renascimento favorável; a finalidade em vista, apesar de não totalmente negligenciável, mantinha-se essencialmente “samsárica”: não olhava para além dos limites do cosmos. Os praticantes com maior percepção usariam a mesma invocação para o propósito geral de nutrir e aprofundar a sua própria piedade; a finalidade aqui seria “devocional”, no sentido da palavra Indiana bhakti, implicando um grau de participação comparativamente mais intenso; esta forma de invocação representa uma posição intermédia na escala de valores espirituais. Mais raro em comparação com os anteriores será o tipo de pessoa cuja inteligência, amadurecida com o decorrer da prática, consegue vislumbrar a verdade pela qual a invocação providencia, quer um meio de relembrança, quer um incentivo para a sua completa compreensão; este é o caso em relação ao qual o Dalai Lama se estava a referir quando falou em penetrar no coração do ensinamento que as seis sílabas encerram.

Num âmbito mais geral, surge frequentemente a questão sobre qual a importância que deverá ser dada à frequente repetição de uma fórmula do tipo da mani ou da nembutsu, quando comparada com o seu uso menos frequente; aqui podemos recorrer ao facto de, no período em que Honen pregava a doutrina da Terra Pura no Japão, muitas pessoas, levadas pelo entusiasmo, competiam umas com as outras com o número de vezes que conseguiam repetir a fórmula, como se isso fosse a coisa que mais importava. Face a tais extravagâncias, Shinran Shonin aplicou um importante correctivo ao mostrar que o valor da nembutsu era essencialmente qualitativo, o número de repetições não tendo qualquer importância no que diz respeito à sua eficácia. A essência de qualquer coisa, aquilo que faz dela o que é e não qualquer outra coisa, não é susceptível de multiplicação: podemos, por exemplo, contar uma, duas ou cem ovelhas, mas a sua qualidade de ovelha não é aumentada nem subdividida. O mesmo se aplica à nembutsu ou à mani; cada uma representando uma presença única e total, carregando em si a sua própria finalidade, independentemente do número, situação espacial ou temporal. Este é um princípio importante; conseguíssemos penetrar, tão profundo quanto o coração da fórmula sagrada, e a sua simples menção seria suficiente para nos transportar para a Terra Pura; os vários passos que nos levaram até à sua entrada fundidos em plenitude.

Ao mesmo tempo, baseados num julgamento empírico, não temos justificação para desprezar o homem que encontra na repetição frequente da fórmula de invocação uma ajuda; estimar o valor da invocação em termos unicamente quantitativos é certamente um erro, mas sentir o ímpeto de preencher a vida com a fórmula porque lhe atribuímos um valor acima de qualquer outra coisa, e porque nos sentimos sós e perdidos sem ela, é algo completamente diferente. Acordar de manhã com a nembutsu, retirar-nos para o leito nocturno com as suas palavras nos lábios, viver com ela e por ela, morrer com o seu último eco nos nossos ouvidos, o que poderia, de facto, ser melhor ou mais humanamente apropriado? Entre aquele que invoca frequentemente e outro que invoca com menos frequência haverá pouco a escolher desde que a atenção esteja focada no essencial. São os efeitos na alma que contarão a longo prazo, a sua transmutação alquímica testemunha do poder do Voto, graças ao qual o controlo sobre a nossa ignorância existencial pode ser identificado com o ouro de Budha, tal como a identificação de Dharmakara com o Amitabha é revelada no próprio Voto.

Existe, ainda, mais uma outra questão de importância prática para todos aqueles que queiram seguir uma disciplina contemplativa fora de uma ordem monástica, nomeadamente, a questão de como poderemos considerar as interrupções impostas pela necessidade de desviar a atenção, durante as horas de trabalho, para assuntos exteriores de origem profissional ou qualquer outro, na maioria dos casos, por motivos associados a meios de subsistência. Não poderá isto, perguntará alguém, dar a ideia de que uma vida dedicada à concentração na nembutsu é virtualmente irrealizável? E, nesse caso, qual será o resultado disto no que respeita ao essencial despertar da fé? Questões deste tipo têm, desde sempre, preocupado a humanidade, de uma forma ou de outra, mas adquiriu uma tensão mais elevada que nunca, em resultado da destruição das civilizações tradicionais estruturadas de acordo com vocações religiosas. O indivíduo é agora deixado com a designada liberdade de escolha, da qual os seus antepassados foram misericordiosamente dispensados. De qualquer das formas, existem precedentes suficientes para permitir uma resposta a esta questão de uma forma que todos compreendam.

O critério que se aplica nestes casos é este: enquanto um homem trabalhar de uma forma honesta, não cruel ou de qualquer outra forma não repreensível, ou seja, enquanto se conformar, de uma forma geral [7], com as definições do Nobre Caminho Óctuplo, sob os títulos de 'Trabalho Correcto' e de 'Meio de Vida Correcto', o tempo e a atenção que estas requerem não constituirão, per se, uma distracção no termo técnico da palavra; pelo contrário, o fluxo da contemplação continuará a fluir calmamente como um rio subterrâneo, preparado para emergir à superfície com uma corrente mais forte assim que a necessária tarefa tenha sido concluída.

Aqui, “necessária” é a palavra operativa: actividades levadas a cabo desnecessariamente, por motivos frívolos ou luxuriosos, tal como o desejo de passar o tempo porque nos sentimos aborrecidos quando não estamos a trabalhar, não poderão ser incluídas nesta categoria. Um vasto número das designadas “actividades de lazer” cai nesta categoria condenável: estas constituem, qualquer que seja o argumento, distracções no sentido restrito da palavra. Seríamos levados a pensar que a breve “difícil de obter vida humana” poderia ser usada para melhor uso; no entanto, tais abusos dos privilégios humanos são, não só tolerados, como mesmo encorajados em grande escala, como que em tributo ao grande deus da Economia, o aliado de Mara no mundo contemporâneo. A maior parte destas formas de passar o tempo pertencem à categoria de drogas nocivas, às quais a criação de vício é mais do que facilitada.

Para além desta questão das vocações ocupacionais do homem e como estas se enquadram adequadamente, a invocação com a nembutsu, ou suas equivalentes noutras tradições, oferecerá sempre um potente meio de protecção contra as distracções de todo o tipo.

Uma vida repleta desta divina influência deixa poucas hipóteses para os demónios de Mara ganharem terreno. Lembro-me do concelho de um lama: “Acaba o trabalho que tens em mãos e depois disso preenche o teu tempo com a invocação da mani.” Isto estabelece o padrão para o programa de uma vida, cujos detalhes se podem estabelecer a si próprios à luz das necessidades particulares.



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A comovente história da viagem de Dharmakara até à iluminação, na qual a nossa participação nos ensinamentos de Jôdô-shin depende, pode, à primeira vista, parecer relatar eventos ocorridos à muito, muito tempo. É bom recordar, no entanto, aquilo que foi referido atrás (nota 2) sobre a natureza intemporal dos acontecimentos mitológicos, razão pela qual eles podem ser aplicados repetidamente, atravessando diferentes circunstâncias da humanidade como meio de iluminação humana. Existem certas verdades que se comunicam mais facilmente desta forma, sem correrem o risco de ficarem aprisionadas entre as alternativas de crença e descrença, esta última, no caso de procura de evidências históricas, é mais do que provável que surja pela própria natureza das evidências em que essa procura se baseia: questione-se as evidências factuais e as próprias verdades ficam vulneráveis, tal como foi evidenciado no caso do Cristianismo Ocidental nos tempos recentes em que, a tentativa de “desmitificar” o seu folclore sagrado, incluindo as Escrituras, resultou apenas no agravamento da situação dos actuais crentes. A evidência histórica tem obviamente a sua importância – não é necessário negar este facto. Em relação à história, um mito tradicional providencia um factor de equilíbrio não facilmente dispensável se uma dada religião pretende manter a sua actuação na mente dos homens.

Desta forma, a velha história de Dharmakara representa o aspecto de Sabedoria de um ensinamento, enquanto que o aspecto de Método é encontrado quando esta mesma história é reanimada numa vida humana, seja na nossa própria vida ou na de outro, graças ao poder evocativo libertado pelo Voto original, seguindo a sua confirmação na pessoa do Buddha Amitabha. Daí, a injunção de direccionar toda a nossa fé no Outro Poder, abandonando-nos. As consequências deste acto irão afectar o nosso pensar e sentir, bem como tudo o que fazemos ou evitamos fazer nesta vida.

Aqui é bom lembrar-nos do que foi dito do início, nomeadamente que a compaixão do Bodisattva, a sua virtude dinâmica, necessita de um campo para o seu exercício, bem como de seres em sofrimento como seus objectos, sem os quais não teria qualquer sentido. Como um campo podemos também dizer um ‘mundo’, quer seja no sentido de um mundo particular (o mundo que nos é familiar, por exemplo), quer seja no sentido do samsâra, compreendendo todas as possíveis formas de existência, incluindo muitas que nunca poderemos conhecer. Um mundo, por definição, é um campo de contrastes, um campo de árvores de karma repleto com os seus frutos, pretos ou brancos, aos quais nós próprios, com a nossa capacidade dual de criadores e desfrutadores destes frutos, somos chamados a participar na sua apanha, sejam eles doces ou amargos. Esta experiência do mundo chega também a nós de uma forma dual, simultaneamente externa e interna: para nós, o mundo exterior é composto por todos os seres e coisas que se enquadram na categoria de o ‘outro’, enquanto que o interior corresponde àquele a que pertencem todas as experiências relacionadas com aquilo que chamo de ‘eu’ ou ‘meu’, a ego-consciência a todos os níveis. Podemos ainda ir mais longe e dizer que o homem, a este respeito, constitui ele próprio algo como um mundo auto-contido; não é sem razão que o estado humano tem sido descrito, por analogia com o Cosmos em geral, por um ‘microcosmos’, um pequeno mundo. É, de facto, no seio desta nossa pequena propriedade, que o drama de Dharmakara e de Amitabha terá de ser manejado se o queremos verdadeiramente compreender, sendo este o aspecto associado ao Método da história, a qual se revela à nossa inteligência, através da sua experimentação concreta, como Sabedoria. E é com este, para nós, absolutamente vital aspecto, que o presente ensaio pode ser devidamente concluído.

Os três principais factores no nosso jogo simbólico são, em primeiro lugar, o veículo psicológico da nossa existência terrena, o qual providencia o estado móvel e, em segundo lugar, a faculdade de atenção sob os seus variados aspectos, incluindo os sentidos, a razão, a imaginação e, acima de tudo, a nossa lembrança activa ou vigilância. Estas representam, entre elas, o dinamismo "Bodhisátevico" relativo à nossa história vocacional; em terceiro e último lugar, existe o poder iluminativo de Amitabha, tal como representado pela Inteligência incorpórea que reside no local secreto no centro de cada ser, onde o samsâra é inoperativo[8] ou, colocando a questão de forma mais correcta, onde o samsâra revela a sua identidade essencial com o nirvana; mas, para este Olho de Buddha aprisionado dentro de nós, capaz de ler a mensagem de Buddha que todas as coisas mostram àquele que sabe onde olhar, a libertação humana através da iluminação e a libertação do sofrimento de outros seres através de um nascimento sob a forma humana, não seriam uma possibilidade; a porta para a Terra Pura continuaria para sempre fechada. Graças ao exemplo de Dharmakara, culminando no seu Voto, sabemos que esta Pura Terra está, no entanto, aberta; aqui consiste a nossa esperança e o nosso incentivo. O que mais podemos pedir da existência do que esta suprema oportunidade que o estado humano compreende, pelo menos enquanto este se manter?

Antes de terminar esta discussão, consideremos uma outra questão respeitante ao modo como são actualmente apresentadas as ideias do Jôdô-shin. Os escritores que têm escrito sobre o assunto têm dado muito ênfase à natureza “de facilidade” do caminho do Jôdô-shin; fé, dizem eles, é tudo o que precisamos, uma vez que Amitabha, ou o Dharmakara, fez todo o trabalho por nós, garantindo, assim, a entrada na Terra Pura.

Isto tem como corolário que qualquer sugestão de responsabilidade ou esforço consciente da nossa parte sugeriria uma perigosa concessão para com o Próprio Poder, e que estes seriam, de qualquer forma, redundantes. Ao proferir estas ideias é usado um vocabulário sentimentalmente vocacionado, sem ter em consideração o provável efeito que este terá em mentes sem capacidade crítica. Apesar deste tipo de linguagem não ter, sem dúvida, a intenção de minimizar os ensinamentos normais do Budismo, denota, no entanto, um carácter pateticamente simplista do pensamento dos autores que a ele recorrem. Alguns procurarão defender-se dizendo que os textos de Shinran e de outros pensadores famosos do Jôdô-shin contêm frases com um carácter de certa forma semelhante; aqueles que citam assim fora do contexto, estão sujeitos a ignorar o facto de que um sábio que ensina, sendo alguém que tem como objectivo vencer corações mas não destruir inteligências (isto não deveria precisar de ser dito), pode, em algumas situações, recorrer a fraseologia esquemática que nunca poderá ser interpretada literalmente. Poucas pessoas mostram prudência na forma como citam, e especialmente na forma como ornamentam essas frases dos grandes.

Quando, por exemplo, Nichiren, esse santo militante, declarou que uma simples pronúncia da nembutsu era suficiente para mandar um homem para o inferno, ele estava obviamente a exagerar com o propósito de provocar a sua audiência numa direcção predeterminada; a história religiosa oferece muitos exemplos deste tipo de excessos retóricos, apesar de motivados espiritualmente. A resposta correcta para tal diatribe seria dizer, num tom de reverência devido a um grande Mestre, “Obrigado Reverendo Senhor, os seus avisos dão-nos grande conforto; para mim o Inferno com a nembutsu seria tão bom como o Céu; sem a nembutsu o paraíso seria de facto um inferno!”[9]

Permita-se-nos, no entanto, por um momento, como um upâya ajustado à ocasião, desenvolver um pouco mais o argumento das pessoas que temos vindo a criticar, colocando a seguinte questão: se a iniciativa de compaixão de Dharmakara, culminando no Voto, veio em auxílio das nossas fraquezas, ao completar por nós a parte mais essencial da nossa tarefa, deixando para nós o consequente aproveitamento deste favor, qual será a melhor forma de retribuir a nossa dívida de gratidão pela misericórdia demonstrada? Certamente uma gratidão elementar requer, da parte do beneficiário, que este procure agradar o seu benfeitor ao fazer aquilo que foi aconselhado e não o contrário. O Caminho das Oito Vias foi aquilo que o Budha deixou para o programa da nossa vida; seguir este caminho, quer seja motivados pelo nosso mais alto interesse, quer simplesmente como agradecimento pela misericórdia de Amitabha, tem, na prática, pouca importância, embora esta segunda atitude se possa auto recomendar para a nossa mentalidade por razões contingentes. Para trazer tudo isto para a devida perspectiva no contexto do Jôdô-shin, é necessário ter em mente o seu princípio operativo, nomeadamente que a nembutsu, em si própria, compreende todos os ensinamentos possíveis, todos os métodos, todos os méritos, “eminentemente” requerendo nada mais de nós do que a nossa fé, a qual deverá ser dada livremente.

Uma fé genuína, seja qual for a forma que a entendamos, não avança sem a sua qualidade heróica; como devemos então a compreender em relação à finalidade do Jôdô-shin, tal como simbolizada pela Terra Pura? Certamente, nesta mesma perspectiva, a fé está lá para agir como um catalisador de todas as outras virtudes, quer as listemos separadamente ou não. Desta forma, uma atitude por vezes vista como unidireccionalmente vocacional pode, no entanto, oferecer profundas revelações do Budismo; para aquele que assim o faça, o caminho poderá ser descrito como “fácil”.

O que é certo, no entanto, é que nenhum Budista, qualquer que seja a sua filiação pessoal pode, de forma razoável, reclamar a autoridade exclusiva dos ensinamentos que segue; tal como em relação à abordagem de salvação de um “Poder Próprio” ou de um “Outro Poder”, podemos talvez afirmar que se o último pode por vezes adoptar uma aparência demasiado passiva, tal como nos casos mencionados anteriormente, o primeiro tipo de método, se concebido de forma imprópria, pode facilmente nos aprisionar num estado de consciência auto-centrada de um tipo extremamente limitador. A melhor defesa contra os erros anteriores é relembrar que, entre dois ensinamentos indubitavelmente ortodoxos mas formalmente contrastantes, onde um deles é deliberadamente enfatizado, o outro deverá sempre ser reconhecido como latente, ou vice-versa. Isto exclui, ainda, qualquer tentação em ceder a excessos sectoriais.

Nenhum método espiritual pode ser totalmente auto-contido; por definição, todo o upâya é devidamente utilizado em função das necessidades de uma dada mentalidade; aí a sua autoridade pára: dizer isto de qualquer ensinamento não implica qualquer desrespeito.

O ênfase dado ao “Outro Poder” no Jôdô-shin providencia uma salutar resposta a qualquer forma de auto-estima, um facto que torna os seus ensinamentos peculiarmente aptos para os nossos tempos, quando a deificação do animal humano, enquanto confinado a este mundo, e a completa cedência para com os seus contínuos apetites de expansão, é pregada em todo o lado. Na presença de Amitabha, os feitos da humanidade individual são reduzidos ao seu devido desinteresse; é na inteligência humilde que a verdadeira grandeza humana é encontrada.

Uma coisa importante para reter em mente de tudo isto é que a misericórdia de Budha é providencial, mas não suspende, por essa mesma razão, a Lei do Karma: se os seres persistirem em ignorar esta lei, enquanto cobiçando as coisas que a misericórdia lhes poderia oferecer, essa mesma misericórdia os atingirá de forma severa; a severidade é misericordiosa quando é a única forma de provocar uma radical metanoia (mudança de perspectiva), sem a qual o deambular no samsâra continuará forçosamente indefinidamente. A nembutsu é o nosso, sempre presente aviso, desta verdade; se, na confiança no Voto, abandonamos todo o desejo de atribuir a vitória a nós próprios, o ego não alimentado irá certamente desaparecer, deixando-nos em paz.


À parte de tudo o resto, a confiança no “Outro Poder” irá manter-se irrealizável enquanto a consciência egocêntrica for confundida com a pessoa real; é esta confusão de identidade que o grande upâya, pronunciado por Honen e Shinran Shonin, foi providencialmente concebido para remover. Que a nembutsu sirva como a nossa perpétua defesa contra este erro fatal, que através da lembrança se mantenha viva nos corações humanos. Onde essa lembrança for elevada ao seu mais alto poder, aí será encontrada a Terra Pura.

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Notas:

1 - [Nota existente no título do versão original] A palavra Nembutsu é uma forma comprimida da frase namu amida butsu, por si própria uma redução Japonesa da fórmula em Sânscrito namo’mitâbhaya buddhaya. O seu significado literal é “glória ao Buda Amitabha”; aqui, namo deverá ser entendido de modo a compreender a fé, a veneração e a gratidão que os seres em sofrimento devem ao Buda como dispensador de luz; o próprio nome “Amitabha” significa “luz infinita”. Esta fórmula providenciou o mantram invocatório à escola do Budismo da Terra Pura; a designação desta “terra-buda” surge a partir do paraíso de Amitabha, localizado simbolicamente no Ocidente. Os ensinamentos do Budismo da Terra Pura, enunciados em primeiro lugar pelos mestres Indianos Nagarjuna e Vasubhandu, chegaram ao Japão através da China e tornaram-se largamente difundidos graças a dois grandes santos, Honen (1133-1212) e o seu proeminente discípulo Shinran (1173-1262), os quais deram a forma actualmente existente à tradição conhecida pelo nome Jôdô-Shinshu (= verdadeira seita Terra Pura): entre nós, a palavra “seita” adquiriu uma conotação negativa, no entanto, tornou se convencional usá-la neste contexto sem que esta contenha esse sentido depreciativo. Estes factos elementares serão suficientes para preparar os leitores menos informados sobre o Budismo Japonês para o texto que se segue.

2 - O epíteto “mitológico” foi aqui introduzido propositadamente, com o intuito de chamar a atenção para uma qualidade importante da comunicação tradicional e que a terminologia moderna tende a suprimir. A palavra Grega mythos, a partir da qual a palavra deriva, significava originalmente apenas uma história e não um tipo particular de história, supostamente fictícia, como acontece actualmente. Esta era necessariamente tida como verdadeira, pois para a mentalidade não sofisticada dos povos educados a partir dos grandes mitos, qualquer outra hipótese seria encarada como sem sentido; a ideia de uma literatura ficcional com o objectivo de entretenimento era completamente estranha a essa mentalidade e, assim, uma alegoria artificial, independentemente do quanto elevado fosse o seu propósito. O “sentido mitológico”, um dos factores da inteligência humana, corresponde a toda uma dimensão da realidade, a qual, sem esse sentido, se manterá inacessível. Essencialmente, o mito não pertence a nenhum tempo em particular; existe uma urgência eternamente presente sobre os eventos relacionados com este, residindo aí o segredo do seu poder para influenciar as almas dos homens século após século.

3 - No Tibete, a palavra Bodhisattva, a par com as suas utilizações mais técnicas, é vulgarmente utilizada em situações em que, no Ocidente, se utilizaria a palavra “santidade”; na realidade, esta utilização não é surpreendente, uma vez uma pessoa santa exibe evidentemente características de um incipiente estado de Bodhisattva [N.T. – estado de Bodhisattva resulta da palavra inglesa “Bodhisattvahood”.]

4 - As seis pâramitâs ou Virtudes Transcendentais: de acordo com a convenção Mahayana, danâ, a disponibilidade de entrega pessoal para servir os outros, caridade no sentido lato, está no topo da lista destas virtudes, sendo a “nota” pela qual um Bodhisattva pode ser reconhecido. No entanto, é improvável que um homem alcance um tal nível de auto-negação sem ter previamente adoptado uma vida de disciplina religiosamente inspirada, shîla, segundo o seu duplo de aspecto de abstenção consciente do pecado e conformidade positiva com os rituais, a doutrina e outras prescrições da religião em questão; tal conformidade não surge sem esforço, vîrya, o espírito combativo. Como um complemento às virtudes referidas, shanti, o contentamento, latente no nosso próprio ser, decorre naturalmente. É a partir de uma certa mistura destas três virtudes que se pode esperar que a compulsão para dâna surja de uma forma poderosa, apontando assim o caminho para a vocação de Bodhisattva. As últimas duas pâramitas, nomeadamente dhyâna, contemplação, implicando por si própria o discernimento entre o real e o ilusório, e o prajnâ, a sabedoria transcendente resultante da síntese de todas as restantes virtudes, completam o esquema de vida para os seguidores do Mahayana: obviamente este padrão geral é aplicável a outras religiões para além do Budismo.

5 - No mundo Islâmico a palavra dhirkr, lembrança, é usada como referência à prática de invocação praticada pelos membros das confraternidades Sufi, tendo o Nome Divino como fórmula operativa; o termo Budista smrti e o dihkr Sufi apresentam significados idênticos.

6 - Para um esclarecedor comentário sobre a relação Bodhisattva-Budha o leitor é recomendado para a consulta da Parte III do livro In the tracks of Budhism de Frithjof Schuon, um trabalho em relação ao qual o presente autor reconhece a sua dívida. [N.T. – Este livro foi publicado numa versão aumentada pela World Wisdom com o título Treasures of Budhism (1993)]

7 - ‘De uma forma geral’: esta reserva era necessária, na medida em que não existe ninguém em posição de identificar todas as repercussões do seu trabalho ou da sua vida num mundo em constante mudança. Tudo o que podemos fazer é evitar práticas de um tipo maléfico, enquanto nos conformamos a um nível razoável com as circunstâncias em que o nosso karma nos colocou. Em tempos antigos, quando as vocações eram mais óbvias e religiosamente garantidas, a descriminação era relativamente fácil, apesar de na prática não ser infalível. Hoje em dia, com as confusas complicações que perturbam a vida à quase totalidade dos homens no mundo moderno, um homem não pode fazer mais do que procurar fazer o seu limitado melhor para se conformar com as prescrições ideais do Caminho das Oito Vias, sob as duas máximas em questão; não se requer a anulação da consciência ao olhar para além do que reside obviamente ao alcance da escolha humana. Isto não significa, é óbvio, que é necessário não ter escrúpulos em relação ao que se faz e não faz; onde o discernimento ainda é possível, este deverá ser exercido à luz dos ensinamentos de Buddha.

8 - Como testemunho concordante podemos, de forma proveitosa, recordar os ensinamentos do grande Sábio medieval da Cristandade Ocidental, Mestre Eckhardt, quando ele disse que na alma humana “é encontrado algo incriado e incriável que é o Intelecto”; ao qual adiciona que, fosse ela inteiramente este, seria também incriada e incriável. Substitua-se “Olho de Buda” pela palavra “intelecto” e temos a mesma frase, a qual qualquer Budista compreenderia. Na tradição produzida pelo núcleo Semita, onde a ideia de “criação” assume um papel dominante, dizer de algo que é “incriado” é equivalente a “para além do âmbito da mudança ‘samsárica’”. Deverá ser ainda referido que, na altura em que Mestre Eckhart escrevia, a palavra “intelecto” encerrava sempre o significado anterior, distinto de “razão”, a qual, como mostra a palavra Latina “ratio”, era uma faculdade que permitia relacionar umas coisas às outras, excluindo a possibilidade de qualquer compreensão das suas similitudes intrínsecas, as quais apenas o Intelecto é capaz. A confusão moderna entre o intelecto, a razão e a mente, até à redução prática da primeira, resultou em desastre para o pensamento humano.
O exemplo referido pode ser equiparado a outro, retirado desta vez do Cristianismo Oriental, onde é dito que as coroas dos Santos perfeitos são feitas de “Luz Incriada”, ou, como podemos também dizer, os diademas dos perfeitos Bodhisattvas são feitos a partir da auréola do próprio Amitabha.

9 - O meu amigo Dr. Inagaki Hisao forneceu-me uma citação dos ensinamentos de Shinran a partir do Tannisho (Capítulo II) onde o mesmo sentimento é expresso em consonância com a tradição Jôdô e através do seu dialecto típico: “Eu não me arrependeria mesmo se fosse enganado por Honen e, assim, ao proferir a nembutsu, cair no inferno… Uma vez que sou incapaz de qualquer prática, o inferno seria definitivamente, e de qualquer forma, onde residiria.”