quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Um sábio para os Tempos: O papel e a obra de Frithjof Schuon [parte II]

Terminamos, com a presente publicação, a tradução do ensaio de Harry Oldmeadow dedicado à vida e à obra de Frithjof Schuon. A primeira parte pode ser lida aqui.


A exposição da Sabedoria esotérica

Antes de nos dedicarmos aos textos de Schuon, gostaria de abordar brevemente a questão que costumam colocar as pessoas com um crescente interesse na tradição. As Verdades sapienciais que, até aos dias de hoje, se mantinham extrinsecamente inexprimíveis e que vinham a ser protegidas pelos poucos capazes de as compreender são, de certa forma, expostas agora ao público em geral. Como é possível que, no período menos religioso e mais ímpio da história humana, as sabedorias esotéricas preservadas pelas tradições religiosas se encontrem mais acessíveis do que em qualquer outra altura?

A erosão das barreiras protectoras que anteriormente protegiam as tradições foi, em parte, causada por factores históricos que são de certa forma “acidentais”. Podemos, a título de exemplo, citar a exposição das Upanishades; aqui, certos desenvolvimentos, como a introdução na Índia de máquinas de impressão baratas, combinado com uma certa imprudência de alguns dos “reformadores” do Hinduísmo, foram o suficiente para subverter o estatuto esotérico destas Escrituras, tornando-as disponíveis a todos. Existem também inúmeros casos onde uma versão distorcida de doutrinas secretas mal compreendidas, tem sido insensatamente e descuidadamente colocada em circulação pública. O versículo Bíblico “Pois não existe nada escondido que não deva ser revelado…” tem, por vezes, sido tomado como uma licença para todo o tipo de excessos na popularização de doutrinas esotéricas. Os avisos de falsos profetas podem muitas vezes ser mais adequados.

No caso de tradicionalistas como Guénon e Schuon, o desvendar de alguns ensinamentos esotéricos foi ponderado e prudente. Que tipo de factores permitiram este desenvolvimento? Em primeiro lugar, verificam-se certas condições cósmicas e cíclicas que resultam numa situação sem precedentes. Ao discutir aquilo que outrora se encontrava escondido na escuridão e que agora está a ser trazido para a luz, Schuon escreve,

Existe, de facto, algo de anormal nesta ocorrência, mas este reside, não no facto da exposição destas verdades, mas sim nas condições gerais da nossa era, a qual marca o fim de um grande período cíclico da humanidade terrestre – o fim de um maha-yuga, de acordo com a cosmologia Hindu – que deve, assim, recapitular ou manifestar mais uma vez, de uma forma ou de outra, tudo o que está incluído no ciclo, em conformidade com o adágio “os extremos tocam-se”; assim, as coisas que são, nelas próprias, anormais, podem tornar-se necessárias em resultado das condições agora referidas.[39]

Em segundo lugar, de um ponto de vista mais expediente,

… deve admitir-se que a confusão espiritual dos nossos tempos atingiu um tal nível que o mal que possa resultar do contacto de certas pessoas com as verdades em questão, é largamente compensado pelas vantagens que outros possam derivar das mesmas verdades.[40]

Schuon relembra-nos do adágio Cabalista que diz que “é melhor divulgar a Sabedoria do que a esquecer.”[41] E em terceiro lugar, existe o facto já mencionado: as doutrinas esotéricas têm, em tempos recentes, sido tão frequentemente “plagiadas e deformadas”, que aqueles que estão em posição de falar com autoridade sobre estes assuntos são obrigados a dar alguma informação sobre o que é o “verdadeiro esoterismo e aquilo que não é.”[42]

De uma outra perspectiva, pode ser dito que a preservação, ou mesmo a própria sobrevivência, dos exoterismos religiosos formais pode depender dos efeitos revivificadores de um esoterismo mais extensivamente compreendido:

O exoterismo é algo de precário em resultado dos seus limites e das suas exclusões: chega um momento na história quando todos os tipos de experiência o obrigam a modificar as suas pretensões de exclusividade, e é aí confrontado com uma escolha: escapar dessas limitações por um caminho de ascensão, no esoterismo, ou por um caminho de descida, num liberalismo mundano e suicida.[43]

Numa altura em que “a incompatibilidade exterior e prontamente exagerada das diferentes religiões retira amplamente o crédito, na mente da maioria dos nossos contemporâneos, a toda a religião”,[44] a revelação da unidade subjacente de todas as religiões assume um carácter de grande urgência. Esta tarefa apenas pode ser cumprida através do esoterismo. A confrontação aberta de diferentes exoterismos, a extirpação das civilizações tradicionais, e a tirania das ideologias seculares e profanas assumem todos um papel na determinação das circunstâncias peculiares em que as necessidades mais imperiosas da era apenas podem ser respondidas através do recurso aos esoterismos tradicionais. Existe talvez uma pequena esperança que, neste ambiente, criado um sistema metafísico adequadamente fundado no qual se afirme a “profunda e eterna solidariedade de todas as formas espirituais”,[45] as diferentes religiões possam ainda “apresentar uma frente singular contra a onda de materialismo e pseudo espiritualismo”.[46]

Os riscos e as ambiguidades presentes na exposição de doutrinas ocultas a uma audiência, em muitos aspectos mal equipada para os compreender, causaram problemas semelhantes a representantes dos esoterismos tradicionais em toda a parte do mundo. Joseph Epes Brown, a título de exemplo, escreve sobre a revelação da sabedoria tradicional Sioux em termos muito próximos aos usados por Schuon:

…nos dias de hoje, os poucos idosos sábios que ainda vivem entre eles dizem que na aproximação do fim de um ciclo, quando em toda à parte o homem se tornou incapaz de compreender e, ainda mais, de se aperceber das verdades a ele reveladas na origem… é permitido e desejável trazer este conhecimento para a luz do dia, pois pela sua própria natureza, a verdade protege-se de ser profanada e, desta forma, é possível que a mesma possa chegar àqueles que são qualificados para a penetrar em profundidade.[47]

Não é acidental que os poucos homens santos entre os Sioux e os tradicionalistas como Schuon abordem este assunto em termos semelhantes.

A obra de Schuon

O trabalho publicado de Schuon forma um imponente corpus e cobre uma espantosa variedade de religiões e assuntos metafísicos sem quaisquer superficialidades e simplificações, espectáveis quando alguém procura abranger um tão vasto terreno.

Os seus trabalhos sobre religiões específicas ganharam o respeito de académicos e praticantes no seio das tradições em questão. Para além de publicar mais de vinte livros, foi igualmente um prolífero autor para publicações periódicas como Études Traditionnelles, Islamic Quarterly, Tomorrow, Studies in Comparative Religion e Sophia Perennis. A maior parte dos seus principais trabalhos, escritos em Francês, encontra-se actualmente traduzida para língua inglesa.[48]

Todos os textos de Schuon são orientados por um inalterável conjunto de princípios metafísicos. Eles não exibem nada de “desenvolvimento” ou “evolução” mas são, pelo contrário, reafirmações dos mesmos princípios, através de diferentes pontos de vista produzidos a partir de fenómenos divergentes. Mais do que nos casos de Guénon e Coomaraswamy, sentimos que a visão de Schuon foi, desde o princípio, completa. O termo “erudição” não é apropriado: não se trata de um questão de aprendizagem literária. Schuon viajou frequentemente, sobretudo antes da guerra, e manteve relações próximas com representantes de todas as principais tradições religiosas. Ele não só sabe “sobre” uma variedade enciclopédica de manifestações religiosas e tradições sapienciais, mas também as compreende de uma forma que, à falta de melhor expressão, apenas podemos designar de intuitiva. Os seus textos nesta área não têm qualquer paralelo.

Todo o trabalho de Schuon está relacionado com a reafirmação dos princípios metafísicos tradicionais, a explicação das dimensões esotéricas da religião, a penetração em formas mitológicas e religiosas, e a crítica de um modernismo que é indiferente ou abertamente hostil aos princípios que constituem a essência de todas as sabedorias tradicionais. Todos os tradicionalistas são, por definição, dedicados à exposição da sophia perennis que reside no coração das diversas religiões e no interior das suas variadas formas. Eles são também dedicados à preservação e iluminação destas formas que dão a cada herança religiosa a sua raison d'etre e garantem a sua integridade formal e, pela mesma razão, confirmam a sua eficácia espiritual. A posição geral de Schuon – ou melhor, a posição à qual Schuon aderiu, pois a “verdade não é e não pode ser um assunto pessoal”[49] – foi definida no seu trabalho, The Transcendent Unity of Religions (1953), um trabalho sobre o qual T.S. Eliot referiu, “Nunca encontrei um trabalho mais impressionante no estudo comparativo da religião Oriental e Ocidental.”[50] Este livro elaborava, de uma forma incomparável, a distinção entre as dimensões exotéricas e o esotéricas das tradições religiosas e, ao desvendar a convergência metafísica de todas as religiões ortodoxas, providenciava uma base coerente e irrefutável para um ecumenismo religioso adequadamente constituído – podemos mesmo dizer a única base possível.

A maior parte do trabalho de Schuon foi explicitamente dirigida para a tradição Islâmica, sobre a qual se tornou interessado quando ainda muito jovem em Paris. O seu interesse no Islão levou-o ao estudo do Árabe, inicialmente com um Judeu Sírio, posteriormente na mesquita de Paris. Por volta de 1930, Schuon visitou várias vezes o Norte de África, passando algum tempo na Argélia onde se tornou discípulo de Shaikh Ahmad Al'Alawi, o sábio Sufi Argelino e fundador da ordem ‘Alawi.[51] Schuon escreveu sobre este santo moderno:

…alguém que representa em si próprio… a ideia que durante centenas de anos tem sido a base dessa civilização [a Islâmica]. Conhecer tal pessoa é como que ficar cara a cara, em pleno século vinte, com um Santo medieval ou um Patriarca Semita.[52]

Quatro dos livros de Schuon focam-se em aspectos da tradição Islâmica: Understanding Islam (1963); Dimensions of Islam (1969); Islam and the Perennial Philosophy (1976); Sufism: Veil and Quintessence (1981). Ambos os livros Christianity/Islam: Essays on Ecumenic Esotericism (1985) e In the Face of the Absolute (1989) exploram aspectos das tradições Cristã e Islâmica. Seyyed Hossein Nasr, ele próprio talvez o mais eminente académico Islâmico no mundo contemporâneo, escreveu sobre o Understanding Islam, “Acredito que este trabalho é o mais surpreendente alguma vez escrito numa língua europeia sobre a razão pela qual os Muçulmanos acreditam no Islão e como o Islão oferece ao homem tudo que ele necessita religiosamente e espiritualmente.”[53] Apesar de todos os trabalhos de Schuon apresentarem um fragrância Sufi, o seu trabalho não se restringiu de forma alguma apenas à herança Islâmica. Dois grandes trabalhos focam o Hinduísmo e o Budismo: Language of the Self (1959) e In the Tracks of Buddhism (1969). Uma versão revista e ampliada foi mais tarde publicada pela World Wisdom Books em 1993 como Treasures of Buddhism, enquanto que o primeiro, infelizmente, há muito que está indisponível. Apesar de não ter dispendido a mesma atenção a outras religiões e tradições mitológicas, existem inumeráveis referências no trabalho de Schuon a todo o tipo de fenómenos religiosos e doutrinas, provenientes de toda a parte do globo.

Schuon e a sua mulher criaram relações de amizade com Índios Americanos em visita a Paris e Bruxelas em 1950. Durante a sua primeira visita à América do Norte em 1959, foram oficialmente adoptados pela família Red Cloud da tribo Lakota, um ramo da nação Sioux da qual surgiu o reverente “curandeiro” Black Elk. Schuon, Coomaraswamy e Joseph Epes Brown foram fundamentais no esforço para preservar a preciosa herança espiritual dos Índios das Planícies.

Os brilhantes textos sobre o tesouro espiritual dos Índios das Planícies foram reunidos, em conjunto com reproduções de algumas das suas pinturas, no livro The Feathered Sun: Plains Indians in Art and Philosophy (1990). De certa forma, pode afirmar-se que este é um dos livros mais “pessoais” de Schuon, composto por referências directas à sua própria experiência. Adicionalmente, não conseguimos imaginar nenhum dos seus predecessores a escrever algo do género. O livro, em texto e imagem, é também permeado pela nostalgia que marca o desaparecimento de uma economia espiritual e um modo de vida de extrema beleza e nobreza. Existe ainda uma peculiar melancolia no facto de Schuon ter sido adoptado em ambas as tribos Crow e Sioux, relembrando a sua resistência heróica face às invasões da “civilização”. Para além do mais, não podemos deixar de ver no próprio Schuon essas mesmas qualidades que ele exaltava nos Índios – “um heroísmo combativo e estóico com uma fundação sacerdotal, que conferia aos Índios das Planícies e da Floresta um tipo de majestade que era simultaneamente aquilina e solar…”.[54]

O amor de Schuon pela Natureza, o qual reverbera através de todo o seu trabalho como uma assombrosa melodia, foi aprofundado durante os dois períodos que ele e a sua mulher estiveram com os Índios das Planícies. “Para Schuon, a natureza virgem transporta uma mensagem de eterna verdade e realidade primordial, e fundir-nos com ela é redescobrir a dimensão da alma que no homem moderno se tornou atrofiada.”[55] Schuon, escrevendo no contexto da receptividade dos Índios Vermelhos para com as lições da natureza, disse o seguinte:

A Natureza selvagem é semelhante à pobreza sagrada e à espiritualidade da juventude; ela é um livro aberto contendo um inesgotável ensinamento de verdade e beleza. É no interior dos seus próprios artifícios que o homem mais facilmente é corrompido, são eles que o tornam cobiçoso e ímpio; perto da natureza virgem, a qual não conhece nem agitação nem falsidade, ele tinha a esperança de se manter contemplativo como a própria Natureza.[56]

Para Schuon, a “eterna mensagem da Natureza constitui um viaticum espiritual de primeira importância”.[57]

Spiritual Perspectives and Human Facts (1954) é uma colecção de ensaios aforísticos, incluindo estudos do Vedanta e de arte sagrada, bem como uma meditação nas virtudes espirituais. A minha mais conspícua memória da primeira vez que li este livro, para além da sensação da sua cristalina beleza, é do convincente contraste que Schuon apresenta entre os princípios que governam toda a arte tradicional e o pretensiosismo, vaidade e brutalidade de muito do que se faz passar por “arte” no mundo pós medieval e que á muito deixou de “exteriorizar, quer ideias transcendentes, quer profundas virtudes”.[58] Os textos de Schuon sobre arte são frequentemente embelezados com extraordinários epigramas. Quem poderá esquecer um tão pungente e revelador como este:

Quando em frente de uma catedral [medieval], uma pessoa sente realmente o seu lugar no centro do mundo; em frente de uma igreja dos períodos da Renascença, do Barroco ou do Rococó, ele apenas se sente na Europa.[59]

Desde de muito novo Schuon foi fascinado pela arte sagrada, especialmente pela do Japão e do Extremo Oriente. Numa, pouco usual, referência pessoal num dos seus trabalhos, ele fala-nos de uma figura de Buddha num museu etnográfico. Era uma representação tradicional em madeira talhada em ouro e flanqueada por duas estátuas dos Bodhisattvas Seishi e Kwannon. O encontro com esta “deslumbrante encarnação da infinita vitória do Espírito” foi resumido por Schuon na frase "veni, vidi, victus sum".[60] Um comentador chamou a atenção para a importância da sua intuição estética ao dar conta da extraordinária compreensão que Schuon tinha das formas religiosas e sociais: “É suficiente para ele ver… um objecto de uma civilização tradicional, para ser capaz de pressentir, através de uma espécie de “reacção em cadeia”, um total conjunto de ideias intelectuais, espirituais e psicológicas”.[61] Isto pode parecer uma afirmação irresponsável, mas aqueles que lerem a obra de Schuon não duvidarão do dom que esta declara.

Gnosis: Divine Wisdom (1959), Logic and Transcendence (1976) and Esoterism and Principle and as Way (1981) têm sobretudo a função de prolongar e explicitar as discussões sobre os princípios metafísicos. O primeiro inclui uma luminosa secção sobre a tradição Cristã, enquanto que o Logic and Transcendence contém a sua mais explícita refutação de algumas das ideologias ateias do Ocidente moderno. A sua acusação dessas filosofias tipicamente modernas de negação e desespero, tais como o relativismo, “concretismo”, existencialismo e psicologismo, traz-nos à mente a espada de Manjusri! As últimas secções do livro tendem para o seu culminar na seguinte passagem:

Em relação à questão de quais são as coisas mais importantes que um homem deve fazer, situado como está neste mundo de enigmas e oscilações, a resposta deve ser que existem quatro afazeres ou quatro jóias a nunca perder de vista: em primeiro lugar, ele deve aceitar a Verdade; em segundo, tê-la continuamente em mente; em terceiro, evitar tudo o que é contrário à Verdade e ter uma permanente consciência da Verdade; e em quarto, alcançar tudo aquilo que está em conformidade com ela.[62]

Schuon sugeriu alguns anos atrás que Logic and Transcendence era o seu trabalho mais representativo e inclusivo. Essa distinção é talvez partilhada com o Esoterism as Principle and as Way, que inclui uma das explicações mais deliberadas da natureza do “esotericismo”,[63] e com o Survey of Metaphysics and Esoterism (1986), o qual é um magistral trabalho de síntese metafísica.

Stations of Wisdom (1961) é dirigido sobretudo para a exploração de certas modalidades religiosas e espirituais mas inclui “Orthodoxy and Intellectuality", um ensaio de grande importância para a compreensão da posição tradicionalista. Light on the Ancient Worlds inclui um vasto número de ensaios sobre assuntos como o “diálogo” Helenismo-Cristianismo, shamanismo, monasticismo e a religio perennis. Os traballhos mais recentes de Schuon são os livros To Have a Center (1990), Roots of the Human Condition (1991), The Play of Masks (1992) e The Transfiguration of Man (1995). Os últimos trabalhos exibem uma majestosa leveza e um estilo cada vez mais sintético e poético. O capítulo referente ao título da primeira destas quatro colecções é talvez a única afirmação de Schuon em relação à “cultura” literária e artística dos últimos duzentos anos. Outros ensaios nestes livros abarcam assuntos como a intelecção, antropologia integral, arte e oração – o último um assunto para o qual Schuon parecia ser cada vez mais atraído nos últimos anos. Echoes of Perennial Wisdom (1992) é uma antologia de aforismos retirados de muitos dos seus trabalhos. O acontecimento mais importante dos últimos anos foi talvez a publicação do livro Road to the Heart (1995), o qual contem quase cem poemas em Inglês. Nestes poemas, os princípios e visões expressas nos trabalhos de Schuon encontram uma voz lírica da mais simples e concisa forma.

Em complemento a estes trabalhos existe um impressionante conjunto de artigos publicados nas revistas já mencionadas. Alguns dos ensaios cardinais foram publicados no livro The Sword of Gnosis (Penguin, 1974). Um evento de especial importância foi a publicação do livro The Essential Writings of Frithjof Schuon (1986), que inclui alguns dos ensaios mais importantes do trabalho de Schuon, em conjunto com vários textos nunca publicados. A antologia foi editada por Seyyed Hossein Nasr, cuja introdução identifica alguns dos temas recorrentes e princípios da obra de Schuon, situando o seu trabalho num contexto inteligível para os leitores que encontram a perspectiva tradicional pela primeira vez. Uma festschrift foi publicada em 1991, Religion of the Heart, em homenagem aos seus oitenta anos, editada por Nasr e William Stoddart, a qual incluiu uma bibliografia dos seus textos.

No livro Understanding Islam, Schuon tem isto a dizer em relação à natureza dos Livros sagrados:

…é sagrado aquilo que, em primeiro lugar, está ligado à ordem transcendente, em segundo lugar, possui o carácter de absoluta certeza e, em terceiro lugar, ilude a compreensão e o poder de investigação da mente humana normal… O sagrado é a presença do centro na periferia, do imóvel no movimento; a dignidade é uma sua expressão essencial, pois na dignidade também o centro se manifesta no exterior; o coração é revelado nos gestos. O sagrado introduz uma qualidade do absoluto no relativo e confere às coisas perecíveis a textura da eternidade.[64]

Sem querer pronunciar uma pretensão extravagante que possa confundir os textos de Schuon com as Escrituras sagradas, não considero excessivo considerar que estas qualidades se encontram manifestadas em toda a sua oeuvre. O penetrante sentido do sagrado, o amor da oração, os símbolos sagrados e os “modos de Presença Divina”, a maravilhosa sensibilidade para “manifestações de teofanias” e “perfumes celestiais”, o discernimento da “transparência metafísica dos fenómenos”, a capacidade de compreender os “princípios no manifestado”, de ver “o raio vertical”, de ver Deus em toda a parte – estas qualidades transbordam na obra de Schuon e constituem um dom providencial e imcomparável para uma era aparentemente determinada em voltar as costas ao sagrado.[65]

Epílogo

Toda a obra de Schuon, particularmente os seus últimos e mais intímos textos, são atravessados por referências à oração. Numa rara entrevista em 1996, quando questionado sobre a sua mensagem para as pessoas em geral, ele respondeu, “Orar. Ser humano significa estar ligado a Deus. A vida não tem qualquer significado sem isto. A oração, e também a beleza, é claro; pois vivemos entre formas e não numa nuvem. A beleza da alma em primeiro lugar, e depois a beleza dos símbolos à nossa volta.”[66] Parece apropriado, assim, terminar com uma passagem de um dos trabalhos iniciais de Schuon, no qual o seu sentido de oração e o seu amor à beleza das formas naturais convergem. É uma passagem que adquire uma adicional nostalgia à luz da recente passagem de Schuon para o seu último leito.

O homem ora e a oração molda o homem. O santo tornou-se ele próprio a oração, o lugar de encontro da terra e do Céu; e dessa forma ele contem o universo e o universo ora com ele. Ele está em todo o lugar onde a natureza ora e ele ora com ela e nela; nos picos que tocam o vazio e a eternidade, numa flor que liberta o seu aroma ou no cantar de um pássaro. Aquele que vive em oração não vive em vão. [67]


NOTAS:

1 - Seyyed Hossein Nasr, Knowledge and the Sacred Crossroad, New York, 1981, p.107.
2 - ibid., p.101.
3 - Ananda Coomaraswamy, "Medieval and Oriental Art" in Coomaraswamy 1: Selected Papers, Traditional Art and Symbolism ed. Roger Lipsey, Princeton University Press, Princeton, 1977, pp.45-46.
4- Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts Perennial Books, London, 1987 (nova tradução), p.183.
5 – Ver em particular a introdução de Huston Smith à edição revista de The Transcendent Unity of Religions Quest, Wheaton, 1993, ppix-xxvii, e James Cutsinger, Advice to the Serious Seeker: Meditations on the Teaching of Frithjof Schuon SUNY, Albany, 1997.
6 - Frithjof Schuon, "L'Oeuvre'', citado por Whitall Perry em "Coomaraswamy: The Man, Myth and History", Studies in Comparative Religion 12:3, p.160
7 - Jean-Pierre Laurant, "Le problème de René Guénon", Revue de l'histoire des religions CLXXIX: i, 1971, p.63.
8 - René Guénon, The Reign of Quantity and the Signs of the Times Penguin, Baltimore, 1972, p.11.
9 - René Guénon, "La Demiurge", La Gnose 1909, citado em Marco Bastriocchi, "The Last Pillars of Wisdom" in S. Durai Raja Singam, Ananda Coomaraswamy: Remembering and Remembering Again and Again publicação privada, Kuala Lumpur, 1974, p.351.
10 - Gai Eaton, The Richest Vein Faber & Faber, London, 1949, pp.188-189.
11 – A relação entre a Tradição Primordial e as várias tradições merece clarificação na medida em que, apesar de cada tradição derivar a sua forma geral e as suas principais características de uma Revelação em particular, ela contém (em muitos dos seus aspectos), no entanto, certas características da tradição que a precede.
12 – Ver René Guénon, The Symbolism of the Cross Luzac, London, 1958, pp.x-xi e René Guénon, Crisis of the Modern World Luzac, London, 1945, p.9 & pp.108ff.
13 – Ananda Coomaraswamy, "Eastern Wisdom and Western Knowledge", The Bugbear of Literacy Perennial Books, London, 1979, pp.72-73.
14 – Citado em Gai Eaton, The Richest Vein p.199.
15 – Jacob Needleman no seu "Foreword" to The Sword of Gnosis Penguin, Baltimore, 1974, pp.11-12.
16 - De Frithjof Schuon, "L'Oeuvre", citado em Whitall Perry, "Coomaraswamy: The Man, Myth and History", p160. Para algumas reflexões de Frithjof Schuon sobre Guénon ver "Definitions" na Sophia 1:2 Winter 1995; e as contribuições de Schuon para Les Dossiers H: René Guénon ed. Pierre-Marie Sigaud, L'Age d'Homme, Lausanne, 1984, e L'Herne: René Guénon ed. Jean-Pierre Laurant, Les Editions de l'Herne, Paris, 1985 (que inclui uma carta de Guénon para Schuon, 16th April, 1946).
17 - Ver Jean-Pierre Laurant, "Le problème de René Guénon", pp.62-64.
18 - Whitall Perry, "The Man and His Witness" em S. Durai Raja Singam Ananda Coomaraswamy: Remembering and Remembering Again and Again p.7.
19 - Marco Bastriocchi, "The Last Pillars of Wisdom" em S. Durai Raja Singam Ananda Coomaraswamy: Remembering and Remembering Again and Again p.356.
20 - Whitall Perry, "Coomaraswamy: the Man, Myth and History", p.163.
21 - Roger Lipsey citado em Whitall Perry, "The Bollingen Coomaraswamy Papers and Biography", Studies in Comparative Religion 11:4, p.206.
22 - Coomaraswamy citado em Roger Lipsey, Coomaraswamy; His Life and Work Princeton University Press, Princeton, 1977, p.170.
23 – Ver Whitall Perry, "The Man and the Witness", pp3-7; Marco Pallis, "A Fateful Meeting of Minds", Studies in Comparative Religion 12: 3&4, pp.176-182; e Marco Bastriocchi, "The Last Pillars of Wisdom", pp.350-359.
24 - Whitall Perry, "The Man and the Witness", p.5.
25 - Coomaraswamy referiu ele próprio: “Tenho poucas dúvidas que os meus últimos trabalhos, desenvolvidos a partir e como necessidade dos meus trabalhos iniciais sobre as artes e lidando com a filosofia Indiana e a exegese Védica, é realmente a mais matura e mais importante parte do meu trabalho.” Citado em Roger Lipsey, Coomaraswamy; His Life and Work p.248.
26 – Citado em V.S. Naravane, "Ananda Coomaraswamy: A Critical Appreciation" em S. Durai Raja Singam, Ananda Coomaraswamy: Remembering and Remembering Again and Again p.206.
27 - P.L. Reynolds, René Guénon: His Life and Work, p.6.
28 - Gai Eaton, The Richest Vein Faber & Faber, London, 1949, p.199.
29 - Whitall Perry, "The Man and the Witness", p.7.
30 - Coomaraswamy em S. Durai Raja Singam Ananda Coomaraswamy: Remembering and Remembering Again and Again p.223.
31 - Frithjof Schuon, Metaphysician and Artist World Wisdom Books, Bloomington, p.2. Ver também Whitall Perry, "The Revival of Interest in Tradition" em The Unanimous Tradition ed. Ranjit Fernando, Sri Lanka Institute of Traditional Studies, Colombo, 1991, pp.14-16.
32 - Bernard Kelly, "Notes on the Light of the Eastern Religions" em Religion of the Heart pp.160-161.
33 - J. Tourniac, Propos sur René Guénon Paris 1973, p16, citado em P.L. Reynolds, p13. (Tradução: “Outro escritor, M. Frithjof Schuon, por seu lado, desenvolveu a exegese espiritual das formas tradicionais numa série de trabalhos diferentes dos de Guénon, trabalhos de maior coloração – esta palavra não é excessiva, pois a beleza e o jogo colorido tem um papel evidente no trabalhos de F. Schuon – mais “Cristão” que os de Guénon que essencialmente pretendem definir os mecanismos dos princípios invariáveis.”)
34 - Seyyed Hossein Nasr, Prefácio em Frithjof Schuon Islam and the Perennial Philosophy p.viii.
35 - Marco Pallis, The Way and the Mountain Peter Owen, London, 1960, p.78.
36 - Whitall Perry, "The Man and the Witness", p.7.
37 - Whitall Perry, "The Revival of Interest in Tradition", p.15.
38 - C.F. Kelley, Meister Eckhart on Divine Knowledge Yale University Press, New Haven, 1977, p.xiv.
39 - Frithjof Schuon, The Transcendent Unity of Religions p.xxxiii.
40 - ibid.
41 - Frithjof Schuon, The Transfiguration of Man World Wisdom Books, Bloomington, 1995, p.10.
42 - Frithjof Schuon, The Transcendent Unity of Religions p.xxxiv.
43 - Frithjof Schuon, Esoterism as Principle and as Way Perennial Books, London, 1980, p.19.
44 - Frithjof Schuon, The Transcendent Unity of Religions pp.xxxiii-iv.
45 - ibid.
46 - Frithjof Schuon, Gnosis: Divine Wisdom Perennial Books, London, 1979, p.12. Ver também Whitall Perry A Treasury of Traditional Wisdom Allen & Unwin, London, 1971, footnote p.22.
47- Joseph Epes Brown, The Sacred Pipe University of Oklahoma Press, 1953, p.xii. (Esta passagem foi omitida na edição da Penguin.) Ver também Schuon's "Human Premises of a Religious Dilemma" no Sufism, Veil and Quintessence pp.97-113.
48 – Para uma completa bibliografia dos textos de Schuon's até 1990 ver Religion of the Heart pp.299-327.
49 - Frithjof Schuon, Light on the Ancient Worlds p34
50 – Citado por Huston Smith naiIntrodução ao The Transcendent Unity of Religions pix.
51 – Ver Martin Lings, A Sufi Saint of the Twentieth Century University of California Press, Berkeley, 1971, e Michel Valsan: "Notes on the Shaikh al-'Alawi, 1869-1934", Studies in Comparative Religion 6:1, 1971.
52 - Schuon citado em M. Lings A Sufi Saint p.116. Tem um retrato comovedor do Shaikh por Schuon, p.160.
53 - Ver Seyyed Hossein Nasr, Ideals and Realities of Islam Allen & Unwin, London, 1973, p.10. Nasr não foi menos generoso na recomendação dos seus últimos trabalhos. Ver o seu Prefácio no livro de Schuon Dimensions of Islam Allen & Unwin, London, 1969, e Islam and the Perennial Philosophy World of Islam, London, 1976, e a sua Introdução ao The Essential Writings of Frithjof Schuon.
54 - Frithjof Schuon, The Feathered Sun pp.39-40.
55 - ibid., p.6.
56 - Frithjof Schuon, Light on the Ancient Worlds Perennial Books, London, 1965, p.84.
57 - Frithjof Schuon, The Feathered Sun: Plains Indians in Art and Philosophy World Wisdom Books, Bloomington, 1990, p.13.
58 - Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts p.36.
59 - Frithjof Schuon, The Transcendent Unity of Religions footnote p.65.
60 - Frithjof Schuon, In the Tracks of Buddhism Allen & Unwin, London, 1968, p.121.
61 - Frithjof Schuon, Metaphysician and Artist p.1.
62 - Frithjof Schuon, Logic and Transcendence Harper & Row, New York, 1975, pp.265-266.
63 – Os tradutores de Schuon usam frequentemente a palavra "esoterismo"; Eu preferi a palavra "esotericismo". O comentário de Schuon sobre Logic and Transcendence é documentado na crítica de Whitall Perry em Studies in Comparative Religion 9:4, 1975, p.250.
64 - Frithjof Schuon, Understanding Islam Allen & Unwin, London, 1976, p.48.
65 – As frases citadas são de Schuon e são retiradas de fragmentos de correspondência publicada em The Transfiguration of Man p.113.
66 - Deborah Casey, "The Basis of Religion and Metaphysics: An Interview with Frithjof Schuon", The Quest 9:2, Summer 1996, pp.77-78.
67 - Frithjof Schuon, Spiritual Perspectives and Human Facts p.223.

1 comentário:

  1. Parabéns excelente texto,o blog está muito bom.

    A Era,não está determinada em virar as costas ao Sagrado,
    pelo contrário,nesta Era,quer queiramos ou não,vamos ter
    de abraçar o Sagrado.
    Agora,como vamos convencer a massa humana,que não tem
    conhecimentos nenhuns esotericamente falando e nem sequer
    quer ouvir falar nisso,porque não acredita e valoriza muito mais
    o materialismo?É complicado,mas esta crise mundial,ela estava
    predestinada e muito mais acontecerá,até que o homem se convença
    que está no caminho errado.

    Abraço.
    aPr

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