sexta-feira, 15 de maio de 2009

O deserto e o silêncio

Os últimos dias têm sido iluminados por um ‘pequeno’ tesouro que vou partilhar nesta publicação. Trata-se do livro “In the Heart of the Desert – The Spirituality of the Desert Fathers and Mothers” da autoria do Padre John Chryssavgis. Neste livro somos como que levados pela mão do Padre Chryssavgis através da mais profunda espiritualidade dos Padres do Deserto. É uma excelente introdução a estes eternos ensinamentos que ecoam do mais profundo dos desertos, aquele que apenas se encontra no interior do nosso ser. Fica ainda a referência a uma edição portuguesa dos ditos destes mestres do deserto, “Ditos e feitos dos Padres do Deserto”, da Assírio & Alvim.




Aquilo que pacientemente se chega a praticar é a virtude do silêncio (hesychia). Obtemos auto-conhecimento através da quietude e do silêncio, através da atenção e da vigilância (nepsis). Quando as palavras são abandonadas chega uma nova percepção. O silêncio desperta-nos de uma percepção néscia, de uma visão obscura.

Abade Bessário, no momento da sua morte, disse: “O monge deve ser como o querubim e o serafim: todo olho!”

Abade Poemen disse: “Sê atento interiormente; e sê atento exteriormente.”

O silêncio é o primeiro dever da vida, o primeiro requisito para a sobrevivência no deserto.

Tendo-se retirado para o deserto, Abade Arsénio… ouviu uma voz que lhe disse: “Arsénio, foge; mantém-te silencioso, sempre em oração. Esta é a fonte de uma vida sem pecado.”

O silêncio é também o primeiro dever do amor (agape), o primeiro requisito para a sobrevivência em comunidade.

Abade Poemen disse: “Alguém pode parecer silencioso, mas se no seu coração condena os outros, então balbucia ininterruptamente. E pode haver outro que fale de manhã à noite e, ainda assim, ser uma pessoa verdadeiramente silenciosa no coração. Essa pessoa nada diz que não seja proveitoso.”

O silêncio é uma via de espera, uma via de observação, e uma via de escuta para com aquilo que se passa dentro de nós e à nossa volta. É uma via de interioridade, de paragem e de exploração das profundezas do coração e do centro da vida. É uma via para penetrar o seu interior, para que no fim não fiquemos sem ele. O silêncio nunca é meramente uma cessação de palavras; isso seria uma definição demasiado restritiva e negativa do silêncio. Pelo contrário, ele é a pausa que mantém unidas – na realidade, dá sentido a – todas as palavras, pronunciadas ou não pronunciadas. O silêncio é a cola que une as nossas atitudes às nossas acções. O silêncio é a totalidade, não o vazio; não é uma ausência, mas a consciência de uma presença. Toda a fuga para o deserto pode ser resumida a esta prioridade e prática de silêncio.

Abade Macário o Grande disse aos irmãos de Cétia: “Fujam, meus irmãos.” Um dos anciões perguntou-lhe: “Para onde podemos fugir para além deste deserto?” Macário colocou o seu dedo nos lábios e disse: “Fujam disto!” E foi para a sua cela, fechou a porta, e sentou se.

Um irmão veio ver o Abade Poemen na segunda semana da Quaresma, e falou-lhe dos seus pensamentos. Ele obteve paz e disse-lhe: “Quase que não vinha hoje.” O ancião perguntou-lhe porquê. O irmão disse-lhe: “Pensei para mim próprio: ‘Talvez ele não me receba por ser a Quaresma.’” Abade Poemen disse-lhe: “não fomos ensinados a fechar as portas de madeira; mas sim as portas das nossas línguas.”




O deserto exterior

A realidade é, obviamente, que tendemos a ser impacientes; tendemos a vaguear; tendemos a interferir no processo. E somos tentados a falar; a quebrar o ensurdecedor silêncio. As palavras são formas de afirmar a nossa existência, de justificar as nossas acções. Falamos de modo a nos desculparmos, em nós e ante os outros; enquanto o silêncio é uma forma de morrer – em nós e na presença de outros. É uma forma de abandonar a vida, sempre no contexto e na esperança de uma nova vida e de ressurreição.

Abade Alónio disse: “Se não me tivesse destruído completamente, não teria sido capaz de me reconstituir e moldar de novo.”

As palavras do Abade Alónio podem parecer muito duras. No entanto, pode ser que através do abandono da vida possamos nos encontrar de novo. Na luta contra aquilo que não somos podemos procurar descobrir aquilo que somos de verdade. A realidade é que tendemos a esquecer quem e o que somos de verdade. Quando recusamos o desafio do silêncio não podemos conhecermo-nos a nós próprios. Não é que sejamos tentados a pensar que somos mais do que somos na realidade; infelizmente, é nessa altura que toleramos ser menos do que somos realmente chamados a ser. O orgulho não é o grande pecado; a grande tragédia é o esquecimento do que somos. É por esta razão que a sabedoria do deserto enfatiza a lembrança da morte; era o outro lado da mesma moeda, que pode ser apelidada de lembrança de Deus.

Quando a morte de Arsénio se aproximava, os irmãos viram-no chorar e perguntaram-lhe: “Estás, de verdade, com medo?” “Na realidade”, respondeu-lhes, “o medo que é meu nesta hora tem estado comigo desde que me tornei um monge.”

No entanto, o silêncio não surge facilmente. Se o silêncio é a linguagem de Deus, a linguagem que falam no Céu, será uma surpresa que façamos tantos erros na interpretação desta linguagem? Nunca poderá ser uma tarefa fácil estar na disposição de nos colocarmos às portas do reino dos céus ou, como o Abade Arsénio, estar à beira da morte.

Era dito do Abade Agatão que durante três anos viveu com uma pedra na boca, até aprender a manter silêncio.

Os Padres do Deserto abraçavam a sua mortalidade; eles estavam confortáveis com a morte. Eles reconheciam a morte como uma outra forma de comunidade, como uma outra forma de se ligarem ao seu vizinho e a Deus como Senhor da vida e da morte. Quantas vezes desejamos enganar a morte; instintivamente procurando a evitar ou lhe escapar. Não queremos enfrentar a mudança, ou a dor, ou a paixão, ou a morte. Na terminologia do deserto, essa seria a tentação de sair da cela. A imagem de “viver a morte” é talvez mais aterrador para nós do que a própria morte. E, por esta razão, procuramos meios para lhe fugir – financeira, tecnológica, médica e emocionalmente. As palavras são parte do nosso ser racional; abandonar as palavras é abrir caminho para o nosso ser espiritual. De qualquer forma, os Padres do Deserto aconselham-nos a estar silenciosos e quietos! Recomendam fechar a porta e sentarmo-nos na cela. Devemos simplesmente esperar, mesmo nas situações em que – na realidade, em particular quando – experimentamos momentos de pânico, de incapacidade, de debilidade, de terror, de morte. Foi isso que eles fizeram. Afinal, para onde podemos ir para além do deserto? Para onde podemos ir após escalar uma coluna de trinta pés, como fizeram os Stilitas da Síria? Para onde podemos ir quando, como o Abade António, nos deslocámos do deserto exterior para o deserto interior do Egipto? Apenas te sentas; ficas; e esperas. Depois, quando chegares ao fim dos teus recursos individuais, uma fonte infinita e eterna poderá ser aberta. Não que a graça divina esteja inicialmente ausente; apenas não é reconhecida enquanto dependemos de nós próprios.

Então, simplesmente aguardas. Aguardas com esperança.



O deserto interior

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Eye of the heart - Nº 3

Está disponível o terceiro número do Eye of the Heart - A Journal of Traditional Wisdom. Salienta-se que este número contém um dos artigos vencedores do Ananda Coomaraswamy Essay Prize, o artigo da Drª Emily Pott - "The Zaqqūm Tree".



Editorial

Spiritual symbolism in the Grimms’ tales - by Samuel D. Fohr

The Bosom of the Father: Notes on the Negative Theology of Clement of Alexandria - by Andrew Itter

A methodology of the Imagination - by Angela Voss

Three short essays in astrophysiology - by Roger Sworder

The Book of the Celestial Cow: A Theological Interpretation - by Edward P. Butler

The Zaqqūm Tree - by Emily Pott

Symbolism as marriage and the symbolism of marriage - by Tom Bree

domingo, 3 de maio de 2009

1º Evento Sabedoria Perene

Foi na passada Quinta-Feira, dia 30 de Abril, que o Sabedoria Perene surgiu pela primeira vez fora deste espaço e fez a primeira apresentação pública do seu projecto com raízes na perspectiva universal de três grandes sábios do séc. XX: René Guénon, Ananda Coomaraswamy e Frithjof Schuon, e que procura divulgar a “escola” de pensamento que se tornou conhecida pelas designações de “perenialismo” ou “tradicionalismo”.

Esta possibilidade surgiu da presença do escritor brasileiro Mateus Soares de Azevedo em Portugal, que teve a amabilidade de nos apresentar duas interessantes palestras sobre temas que têm sido alvo de suas recentes pesquisas.


A primeira das palestras proferidas, com o título “Estará esgotado o papel histórico dos Estados Unidos da América?”, apesar de apresentar um carácter mais político, focou de forma extremamente clara os problemas inerentes ao fundamentalismo religioso e as suas nefastas consequências na humanidade, tema aliás que é aprofundado no seu livro “Homens de um livro só”.



Na segunda palestra, “Esoterismo e Exoterismo no Sermão da Montanha”, Mateus Soares de Azevedo apresentou uma breve abordagem sobre um dos temas mais interessantes do Cristianismo, isto é, o carácter eminentemente esotérico da sua mensagem. É interessante referir que Mateus recorreu em diversas ocasiões às palavras do nosso Padre António Vieira.



Foi ainda aproveitada esta oportunidade para divulgar um outro projecto do Sabedoria Perene que já há algum tempo está a ser preparado. Trata-se da criação de uma revista não-periódica de publicação online, a qual visa divulgar alguns dos principais textos publicados no blogue, bem como estabelecer uma plataforma para a publicação de textos de autores de expressão portuguesa dedicados ao estudo da Tradição e da Sophia Perennis. Com efeito, foi desvendado o conteúdo do primeiro número, o qual estará disponível brevemente.


Introdução
A renovação do interesse na Tradição – Whitall N. Perry


Tradição e Sophia Perennis
A Filosofia Perene – Frithjof Schuon
Religio Perennis – Frithjof Schuon
O que é a Tradição – Seyyed Hossein Nasr
Compreender a palavra “Tradição” – Ali Lakhani
Tradição como Função Espiritual – Reza Shah-Kazemi
Carta aberta sobre a Tradição (resumo) – James Cutsinger


Estudos da Tradição
O ponto de partida de René Guénon, parte I – Miguel Conceição
Esoterismo islâmico – René Guénon
Ritos e símbolos – René Guénon
Gnose cristã – Frithjof Schuon
Mulheres de Luz no Sufismo – Sachiko Murata
Sobre a tradução – Ali Lakhani
Religião, Ortodoxia e Intelecto – William Stoddart
Schuon e as grandes figuras espirituais do séc. XX – Mateus Soares de Azevedo
Nembutsu como ‘Lembrança’ – Marco Pallis

In memoriam
René Guénon – Martin Lings
A Tradição Primordial: Um tributo a Ananda Coomaraswamy – Ranjit Fernando
Um sábio para os Tempos: O papel e a obra de Frithjof Schuon – Harry Oldmeadow

Por último, cumpre agradecer a todos os presentes e à Associação Agostinho da Silva, na pessoa do Renato Epifânio, por ter acolhido de forma tão gentil este evento. Não posso ainda terminar sem agradecer profundamente ao Pedro Martins, dos Cadernos de Filosofia Extravagante, por todo o incentivo e apoio na divulgação do evento. Um grande abraço perene a todos.