domingo, 14 de junho de 2009

A Terra feita nova

A invenção [das letras] irá produzir o esquecimento nas mentes daqueles que as aprenderem a usar, pois deixarão de exercitar a memória. A sua confiança na escrita, produzida por caracteres exteriores que não são parte deles próprios, irá desencorajar o uso da memória que tem em si mesmos. Vocês inventaram um elixir para recordar, não para a memória; e oferecem aos vossos pupilos, não a verdadeira sabedoria, mas a aparência da sabedoria, pois eles irão ler muitas coisas sem ensinamento, e irá parecer que sabem muitas coisas, quando na verdade eles serão em grande parte ignorantes e difíceis de tolerar; não serão sábios mas charlatães”.

Esta são palavras de Platão, citadas por Ananda Coomaraswamy no seu brilhante ensaio “The Bugbear of Literacy”[1], onde procura mostrar, ao seu estilo irrepreensível e luminoso, a importância e primazia da tradição oral em relação à actualmente entronada escrita, e desconstruir o preconceito de que a iliteracia é uma característica de um povo não civilizado.

Para o homem primordial e para as civilizações tradicionais, o homem só sabia verdadeiramente aquilo que sabia de cor – o saber de coração (cordis). É sabido que muitos povos ancestrais sabiam de coração contos e canções que retratavam toda a sua tradição e todos os ensinamentos que moldavam a sua existência, um conhecimento de memória que necessitaria de numerosos volumes para ser vertido em forma escrita. Um desses povos ancestrais era o dos Índios americanos.

Com esta breve introdução, chegamos ao tema desta publicação, a chamada de atenção para um livro maravilhoso recentemente publicado pela World Wisdom, “The Earth Made New – Plains Indian Stories of Creation”, de Paul Goble.


Os povos tradicionais sabiam bem que só se educa através de contos. Joe Medicine Crow, no prefácio a esta obra, refere “na minha juventude, os contadores de estórias que educavam as crianças eram os seus familiares – os avôs e as avós eram os nossos professores. Lembro-me que o meu avô, cujo nome era Yellowtail, era o meu principal professor.” Só assim podiam eles ficar imbuídos do espírito da sua tradição e preservar um modo vida como o expresso nas seguintes palavras de Stanging Bear (Lakota):

“A vida para os Índios é uma de harmonia com a natureza e com as coisas que o rodeiam. O Índio procura adaptar-se à natureza e a compreender, mas não para a conquistar e governar. A vida era algo glorioso, pois um grande contentamento resulta do sentimento de amizade e de familiaridade com os seres vivos que te rodeiam.”

O conto que este livro nos apresenta é um conto da Criação, uma criação que para os Índios está sempre a acontecer, num eterno presente. O livro contém, acompanhado por magnificas ilustrações, uma estória que celebra a criação de uma nova Terra depois do dilúvio.

Os trechos traduzidos e apresentados de seguida procuraram manter a fluidez da estória e mostrar a sua essência. É uma excelente forma de dar água à semente que reside no interior das nossas crianças e deixar que elas, por si mesmas, intuam o que é a Sabedoria Perene.

Reproduzindo ainda as palavras de quem traduziu, "o que mais me comoveu na leitura desta estória para crianças foi a simplicidade profunda da sua mensagem, espelho de uma harmonia natural que reflecte o Espírito do Homem em comunhão com o Mundo."

[1] – The Essential Ananda K. Coomaraswamy, editado por Rama P. Coomaraswamy. World Wisdom, 2004.


A Terra feita nova
Tradução de Noémia Silva

Há muito tempo, existia um outro mundo, um como o nosso; mas a dada altura as montanhas desmoronaram, a terra abriu-se ao meio e a água jorrou de dentro, cobrindo tudo. Nada do velho mundo podia agora ser visto sobre a água: nem o cume dos grandes choupos, nem o topo das montanhas. Era um tempo de chuva, nuvens negras, terror e calamidade.

Os únicos seres vivos eram os peixes, que estavam nas profundezas, os patos, e todos os animais que viviam na água. O ar estava repleto do clamor dos seus lamentos. Nadavam por todo o lado formando uma multidão de seres, chorando cada um na sua voz:

- Fazedor da Terra! Fazedor da Terra! Nós queremos viver! Dá-nos de volta a terra para que possamos ter um sítio onde fazer os nossos ninhos e pôr os nossos ovos!

Sozinho, o corvo voava ao longe afastado da água. Mais alto que as vozes de todas as outras aves ele chamava indignadamente:

- Crau – crau - crau! Crau – crau - crau! Fazedor da Terra, ouve-me. Estou cansado. Dá-me alguma terra para eu possa poisar e descansar, caso contrário morrerei. Crau – crau – crau! Fazedor da terra, ouves-me?

- Eu oiço-te – disse-lhe o Fazedor da Terra.

- Eu te ajudarei – e com as suas palavras o corvo e todos os restantes sentiram coragem.

- Um de vós deve ajudar-me, preciso de lama para fazer terra. Quem mergulha e me traz alguma?

- Eu! – exclamou o pato-real. Esticou o seu pescoço para dentro de água, mas não conseguiu sequer ver o fundo.

O Fazedor da Terra, o Criador, perguntou novamente: - Quem me traz alguma lama?

O castor batendo com a sua larga cauda na água, disse:

- Eu trago-te lama. Mergulhou, e logo de seguida foi seguido pelo mergulhão; mas nenhum deles conseguiu alcançar o fundo.

O Fazedor da Terra perguntou pela quarta vez: - Há alguém que me consiga trazer lama?

- Eu tentarei – disse o pequeno galeirão preto, e mergulhou para longe de vista. Como não voltava, todos pensaram que tinha sido levado pelas águas. Então o Fazedor da Terra, alcançou o fundo das águas e fez emergir o galeirão quase sem vida. Estava exausto para falar, mas havia lama no seu bico!

O Fazedor da Terra recolheu a lama do bico do pequeno galeirão e disse:

- Um de vós deve carregar esta lama.

Todos queriam carregá-la. Ele olhou amorosamente para todos e escolheu a tartaruga.

- Avó Tartaruga, as tuas costas são fortes e tu és cuidadosa. Tu carregarás a lama. Tu serás sempre a minha alegria! As tuas roupas serão gloriosas, e toda a vida virá de dentro de ti.

O Fazedor da Terra, o Criador, trabalhou a lama molhada com suas mãos até ficar seca. Polvilhou a carapaça da tartaruga com a lama e com seu poder a lama cresceu, cresceu até cobrir por completo a Avó Tartaruga e transformar-se na terra que pisamos.

Vem, poisa e descansa – disse ao Corvo – agora todos vós podeis fazer vossos ninhos. E imediatamente as aves e os animais deixaram a água e deram graças ao Fazedor da Terra.

Com o poder da sua imaginação, o Fazedor da Terra empilhou as montanhas e aplanou as planícies, deixou só a água suficiente para encher os rios, os lagos e os pauis. Pintou o chão com tintas de várias cores, vermelho, amarelo e branco. As montanhas cobriu-as com rochas, pinheiros e neve, e as planícies com ervas e flores. A tudo deu o seu próprio cheiro, e compôs a música da chuva a cair e do vento nos pinheiros. E fez raízes e bagas crescer no seu devido lugar, (…)

Colocou cedros nas encostas, e ao longo dos riachos plantou salgueiros (…)

(…) E preencheu a terra com todo o tipo de seres. Sacudiu o robe pintado que vestia e flocos de aves felizes de todas as cores voaram. Elas entendiam-no quando falava. (…) O Fazedor da Terra estendeu o seu robe no chão e, andando devagarinho, arrastou-o por uma ponta e imensos animais de todo o tipo saíram correndo por debaixo dele. Todos o entendiam quando falava (…)

O Fazedor da Terra pensou: - Vou fazer seres de duas pernas e dar-lhes tudo o que fiz. Eles terão cabelo somente no topo das suas cabeças e viverão juntamente com os búfalos.

E assim foi que na sua sabedoria, tirou um pedaço de lama das costas da Avó Tartaruga e a moldou nas suas mãos formando a figura do Homem e da Mulher.

(…)

Ele disse-lhes – Eu sou o vosso Pai e Avô e a terra é a vossa Mãe e Avó. Eu dou-vos a alegria e a maravilha da vida, e tudo à vossa volta para usares ajuizadamente.

(…)

O Fazedor da Terra falou às pessoas:

- Eu prometi ficar sempre perto de vós. Quando precisarem de mim no vosso caminho pela vida, falem comigo. Cantai! Eu estou a ouvir. Vejam as vossas preces subir até mim no fumo dos vossos cachimbos sagrados. Procurem-me nas colinas e nas montanhas. Oiçam-me no Vento e na Água, no Corvo e no Coiote. Eu virei até vós em sonhos e dar-vos-ei a sabedoria do Alce ou da Águia, da Rocha ou do Trovão. Pensem em todos eles, e eles vos ensinarão tudo o que quereis saber. Lembrem-se que só a Terra fica para sempre. Tenham força! Que todos os seres sejam felizes!

No fim, o Fazedor da Terra empilhou grandes montanhas para travar as águas de voltarem a inundar a terra e a engolir a Avó tartaruga. Ele disse ao Búfalo, com os seus fortes cornos curvos e fortes ombros, para empurrar as montanhas. O búfalo é forte e viverá por muito tempo, mas não para sempre! Ele envelhece; todos os anos perderá um cabelo, e em cada uma das quatro idades uma perna se partirá. Quando o búfalo morrer as montanhas desmoronar-se-ão e as águas voltarão a inundar tudo e então…

… O Fazedor da Terra fará um outro mundo.

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