quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Caminho para o Coração*

Esta publicação resulta de uma muita generosa dádiva enviada por um dos nossos amigos do outro lado do Atlântico, Alberto Vasconcellos Queiroz, que é fundador, conjuntamente com Mateus Soares de Azevedo, de um projecto já aqui mencionado por diversas vezes, a editora Sapientia.

Esta sua partilha, que vamos mencionar mais à frente, permite-nos abordar um aspecto menos conhecido de um dos maiores expositores da Sabedoria Perene, Frithjof Schuon. Referimo-nos ao facto deste, para além de encarnar nos nossos tempos aquilo que podemos imaginar terem sido os grandes sábios de tempos imemoriais, ter sido um grandioso artista e, nos últimos três anos da sua vida, um extraordinário e prolífero poeta, escrevendo cerca de 3500 curtos poemas na sua língua materna, o alemão.

Nas palavras de William Stoddart, esta torrente de poemas “cobre todos os aspectos possíveis da doutrina metafísica, do método espiritual, das virtudes, bem como do papel e função da beleza… exibem uma incrível sagacidade, profundidade, compreensão e compaixão. Eles são a sua dádiva final para o mundo, o seu testamento e o seu legado.” Ainda segundo a opinião deste autor amplamente autorizado para falar da obra de Schuon, o principal tema destes poemas “é a oração confiante a um Deus todo-misericordioso e a benevolência para com os homens de boa vontade. Acima de tudo, os poemas são instrumentos de instrução e, como tal, uma poderosa propulsão para o interior.” Patrick Laude diz-nos, ainda, que o esoterismo quintessencial que Schuon expõe tem as características da simplicidade da verdade pura, e que é esta simplicidade que os seus poemas transmitem, oferecendo uma “destilação musical do elixir da sabedoria”.

É precisamente esta sua vertente de poeta que temos o prazer de dar a conhecer através de alguns versos traduzidos por Alberto Queiroz. Tratam-se de composições poéticas pertencentes à colecção de poemas ingleses, escritos antes da 'explosão' na sua língua materna, e que são, também eles, verdadeiras pérolas de ‘sabedoria destilada’. Diz-nos o tradutor que a tradução de poesia é algo extremamente complexo e que estas traduções, efectuadas há vários anos, foram até hoje fruídas apenas por um núcleo muito restrito de amigos. Por esta razão, é imensa a nossa gratidão para com o tradutor, e é grande a esperança que os nossos leitores possam, tal como nós, sentir a fragrância, recorrendo às palavras de Alberto Queiroz, do remoto perfume do original.

* - Nome dado à colecção de poemas ingleses escrita por Frithjof Schuon.


Regina Coeli

És mais que um Símbolo, estás perto
De mim como o sangue e o coração; é certo,
És o ar que me faz viver, que puro e sábio me faz;
Doce e terno ar que o paraíso me traz.

És mais que as palavras que de ti falam,
E mais que as músicas sacras que embalam
Nosso louvor a Ti. Meu êxtase te pertencia
Mesmo antes de Deus criar a vinha.


Diga ‘Sim’

Diga ‘sim’ a Deus, Deus a ti dirá ‘sim’:
Da Porta do Céu, eis a chave dourada.
Na terra, não me ocupa minha estrada,
Ela pode ser longa:
              Curta é a Estrada de Deus a mim.


Grandeza

Perguntas-me o que é grandeza: um valor
Do homem não é, mas do Criador.
Nosso cor deve saber antes que seja tarde
Só nossa consciência de Deus tem tal qualidade.

Há uma só consciência d’Ele, veja bem.
A mil espelhos a única Luz se oferta.
A contingência é sonho, mas a Verdade é certa:
Sê o que és, não perguntes quem é quem.


Memento

Sabes que não podes mudar o mundo;
Renuncia a ele, deixas as coisas serem o que devem ser.
Certas coisas podemos mudar, outras não;
Em todo destino há algo a aprender.

Não esqueças: existe um Sumo Bem
Cujo Amor pode vencer a Fatalidade.
A razão é que o som mais profundo do Ser
Vem da harpa da pura Felicidade.


Liberdade

Sentes que o mundo terreno é triste,
Mas tal tristeza chorar não devias;
Não digas que é mau o mundo que existe…

Pois a toda sombra a hora final soa
E é infinda a alegria oculta nas coisas;
A vida é às vezes dura, mas a alma voa.

Contempla a dupla face da existência:
De um lado está o ferro, mas do outro o ouro vive.
Devias ver a felicidade que é tua essência,
E então saberias: Deus a fez pura e livre.


Omega

Da Infinitude dar uma imagem finita:
Em toda poesia esta intenção habita.
Toda obra humana a um limite final se inclina;
Seu arquétipo, no Céu, nunca termina.

Da Arte e da Beleza, qual a razão?
Mostrar o rumo do mais fundo Coração.

O canto de um pássaro do Céu surgia;
O mundo fora um sonho; era eu a melodia.


Símbolo

O Símbolo devias trazer em teu peito
E no Símbolo devias sempre morar;
Ele é um tesouro, e um abrigo,
E uma arma, e um barco a nos salvar.

Ele é uma Graça divina que nos dá vida;
Em tal Graça, não te podes perder.
E saiba, tu também és o Símbolo e
O Sinal de Deus, ou não pod’rias ser.


Ápice

Qual foi o maior instante em nossa vida?
Qual a maior felicidade, em que evento?
Terá sido um dia de glória, ou de amor?
Quando com gente santa passamos um momento?

Deve ter sido o dia em que encontramos Deus.
Ele entrou no tempo, não se sabe como. Mas, ora,
O tempo está sempre aí, e Deus é perto.
E assim, o ápice de nossa vida é agora.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Encontro Nacional Evoliano - 2010

Aqui fica a divulgação de um evento para os nossos estimados leitores do outro lado do Atlântico - o Encontro Nacional Evoliano. O evento decorrerá em João Pessoa, Paraíba, de 15 a 17 de Dezembro de 2010.



PROGRAMAÇÃO

Dia 15 de dezembro – Quarta-feira

19:00hs - Abertura e credenciamento

Palestra de apresentação: “Evola e a Tradição”

Dia 16 de dezembro – Quinta-feira

Palestra R. Daher

10:30 as 12:00hs - Comunicações

Palestra Luiz Pontual

14:00hs - “Evola, Guénon e a Tradição”

16:00hs - Debate: Evola e Guénon

17:00 lançamento de livros

1. Revolta Contra o Mundo Moderno – Julius Evola, 2010 – IRGET
2. Tradição Hermética – Julius Evola, 2010 – Ascese

Palestra Prof. Dr. Deyve Redson

19h00hs “Schopenhauer e o Pensamento Oriental”

Dia 17 de dezembro – Sexta-feira

Palestra Luiz Pontual 09:00

09:00hs - “Kon tan- A lanterna Cosmológica”

10:30hs - Debate

Palestra Prof. Mateus Azevedo 14:00

14:00hs - “A Filosofia Perene e os Luminares Espirituais do Século XX”.

16:00 hs - Mesa redonda: Filosofia Perene com Mateus Azevedo, Deyve Redson e outros

Lançamento de livros

1. FORMA & SUBSTÂNCIA NAS RELIGIÕES - DE FRITHJOF SCHUON (ED. SAPIENTIA, 2010)

2. OCULTISMO & RELIGIÃO: EM FREUD , jUNG E MIRCEA ELIADE - DE HARRY OLDMEADOW E MATEUS SOARES DE AZEVEDO (ED. IBRASA, 2010)

19h00hs - Debate e Plenária - Instituto Evola?

Sábado

Reunião Instituto Evola 09:00 as 10:30hs

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A agricultura e o destino humano

O trecho abaixo apresentado constitui uma dupla estreia neste espaço de divulgação da escola de pensamento tradicionalista/perenialista. A do notável Lorth Northborne, autor do extraordinário A Agricultura e o destino humano, cuja versão final e integral constará no próximo número da Revista Sabedoria Perene, e também a do tradutor do respectivo artigo, Sandro Faria, a quem estamos muito gratos pelo importante contributo.

*

A Crosta desta terra experimenta periodicamente convulsões de várias naturezas e escalas. No decurso das maiores, continentes existentes são submersos e novos emergem. Entre convulsões, poderão existir idades de gelo e idades de chuva e de aquecimento que afectam a totalidade, ou apenas partes, da superfície do globo terrestre. Todas estas ocorrências, gigantescas e avassaladoras que são do ponto de vista humano, são incidentes triviais numa série de contínuas alterações que ocorrem numa escala cósmica, surpreendem a nossa imaginação pela sua imensidade e duração e reduzem todos os fenómenos terrestres a uma insignificância quantitativa. Em termos quantitativos, a vida humana é duplamente insignificante, pois desempenha um tão pequeno papel na história geológica do planeta, o qual não pode ser considerado separadamente do sistema solar nem este último separadamente do resto do universo.

Assim, se a vida humana tem algum significado de todo, não é no domínio da quantidade mas sim no domínio da qualidade. Valerá somente a pena preservar a vida humana em virtude do seu conteúdo qualitativo ou potencialidade qualitativa, ainda que a mesma tenha um aspecto quantitativo inerente, o qual não pode ser preservado a menos que se satisfaçam os seus requisitos quantitativos. A satisfação desses requisitos é justificada apenas até ao necessário para o desenvolvimento das potencialidades qualitativas da humanidade.

A maior dificuldade que surge no decorrer desta afirmação é que a natureza dessas potencialidades qualitativas não pode ser definida com precisão. Apenas a quantidade é mensurável, a qualidade como tal pode ser enunciada mas não medida. A qualidade é eternamente o que é, ou é percebida pelo que é ou não é percebida de todo. Nada pode expressar a sua natureza a quem não a percebe directamente. No entanto há que falar sobre qualidade, uma vez que é a chave para tudo; sem ela não há nada senão o caos da indistinção, a abstracção do número puro. Ao discutir qualidade, o mais que se pode fazer é comparar coisas que possuem uma qualidade com coisas que não a possuem. Ainda assim, a comparação é significativa apenas para alguém que conhece por experiência o que a qualidade em questão é.

Isto é tanto ou mais verdade para a qualidade, ou qualidades, que podem ser chamadas de “espirituais”. A palavra espiritual é inevitavelmente mal aplicada ou mal interpretada por qualquer um cujos limites da realidade coincidem com os limites da mensurabilidade. O mensurável é, em última análise, tudo o que pode ser contido nos poderes analíticos e descritivos do cérebro humano. Se não houvesse nada que transcendesse esses poderes, toda a qualidade poderia em princípio ser reduzida a quantidade. A distinção qualitativa essencial do homem reside nas suas potencialidades espirituais.

As convulsões terrestres envolvem a destruição periódica de vidas, humanas ou outras. Isto pode surgir-nos como algo terrível e tornar difícil compreender como é que um Deus todo misericordioso pode ter ordenado os acontecimentos desta forma. Esquecemo-nos que a lei da vida e da morte é aplicável não individualmente a criaturas vivas mas a tudo o que, por associação com a quantidade, é conferido uma forma, universos e o que fica para baixo. Tudo deve perecer; somente o Espírito, qualidade pura, é imperecível e sempre inteiramente ele próprio. Quer como indivíduos, quer como sociedades humanas, somos perecíveis. O Homem sempre soube isto, mas ao mesmo tempo também sempre considerou que deve haver, por assim dizer, algo por detrás de tudo, algo imperecível e maior que ele próprio. [1] Aceitar a perecibilidade e a dependência de nós mesmos e de todo o universo das formas, com toda a humildade que essa aceitação implica, é um prelúdio necessário para o entendimento da nossa situação, e tal entendimento é indispensável para uma actuação efectiva. No presente, os nossos alcances no domínio do quantitativo e do perecível parecem ter obscurecido a nossa dependência do qualitativo e do imperecível, confundindo por conseguinte o nosso sentido de direcção e frustrando muitas acções bem-intencionadas.

O que é que tem tudo isto a ver com agricultura? Tudo, na realidade; pela dupla razão de que o solo, resultado das convulsões terrestres, providencia a sua fundação física e que a relação da qualidade para com a quantidade, não apenas nos produtos finais da agricultura mas também na nossa abordagem aos seus problemas, envolve-nos a todos mais do que normalmente pensamos.

Do ponto de vista estrito da biologia e da economia, a agricultura é a fundação da vida humana no planeta e assim tem sido desde que o aumento da população ultrapassou as potencialidades de produção de alimentos da Natureza virgem. Uma vez estabelecida, torna-se na principal expressão do relacionamento entre o homem e a Natureza. Todas as restantes actividades humanas surgem como ramificações desta relação e são dela dependentes. Poderíamos seguir sem elas mas não sem a agricultura. Consequentemente, afecta-nos mais directamente que qualquer outra actividade; a qualidade das nossas vidas e a nossa posição é reflexo dela, e a sua qualidade reflecte-se em nós.

Esta verdade auto-evidente tem vindo a ser obscurecida pelas atracções e distracções do desenvolvimento industrial, mas surge-nos novamente, agora no seu aspecto quantitativo, devido ao rápido crescimento da população mundial. Este incremento parece acompanhar sempre uma revolução industrial. [2] Num período de tempo incrivelmente curto, o progresso industrial passou a ser o objectivo de quase todas as nações; e, uma vez estabelecido, um objectivo não é prontamente abandonado, especialmente quando a riqueza é o seu alvo e esta parece alcançável. Embora nos encontremos perante um risco de fome mundial dentro de poucas décadas, continuamos a dedicar uma proporção cada vez maior do nosso dinheiro e energia ao desenvolvimento industrial, cujas exigências são insaciáveis. A indústria gera constantemente novos crescimentos, que por sua vez criam novas oportunidades, mas com elas também novos desejos e novas necessidades. [3]

*


[1] Se não fosse assim, tanto ele próprio como o mundo perecível das formas seriam inteiramente irreais, uma mera ilusão passageira, sem causa e sem objectivo. Não só um tal conceito é contradito pela nossa consciência de existência mas é também, em última análise, desprovido de significado.

[2] Uma explosão populacional não é necessariamente ou somente resultado de mais ou melhor comida, habitação, ou atenção médica; por exemplo, nenhuma destas condições estiveram particularmente presente no início da revolução industrial britânica. Elas podem sem dúvida ajudar a sua concretização assim que esta começa, mas não são a sua causa.

[3] Curiosamente – ou talvez não tão curiosamente – os novos desejos são ao mesmo tempo os mais dispendiosos e os mais absurdos, por exemplo, televisão a cores, viagens cada vez mais rápidas e a colocação do homem na lua. Expansão pela expansão é a máxima; apenas pode ser alcançada mais rapidamente à custa de terceiros; quando todos a têm como objectivo, por toda a parte se exacerbam rivalidades entre interesses sectários, nacionais ou outros, e a preparação para a guerra, “fria” ou “quente”, torna-se de longe a maior consumidora de recursos.

Lord Northbourne

Lord Northbourne (1896-1982), Walter Ernest Christopher James, foi o 4.º Barão Northbourne de Kent, Inglaterra. Agricultor, educador, tradutor, cujos escritos versam sobre agricultura e religião comparada. Recebeu a sua educação em Oxford e foi Reitor do Wye College — o colégio de agricultura da Universidade de Londres. Lord Northbourne era um agrónomo perspicaz e escreveu um influente livro em 1940, Look to the Land. Neste livro, introduziu ao mundo o termo "agricultura biológica", bem como os conceitos relacionados com a gestão de uma proriedade agrícola como um “todo orgânico”. Depois de ler este livro, Marco Pallis contactou e introduziu Lord Northbourne aos escritos e às ideias tradicionalistas/perenialistas. Desde então, Lord Northbourne passou a adoptar este padrão de pensamento nos seus próprios escritos e a integrá-lo na sua própria vida, mantendo correspondência com muitos dos mais proeminentes escritores desta escola de pensamento, bem como com Thomas Merton. Os seus escritos são frequentemente citados como excelentes introduções à perspectiva tradicionalista, destacando-se também como tradutor e editor de importantes obras tais como The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de René Guénon, Light on the Ancient Worlds, de Frithjof Schuon e Sacred Art in East and West, de Titus Burckhardt.


Publicações no “Sabedoria Perene”:

A agricultura e o destino humano

domingo, 14 de novembro de 2010

Dança

Como agradecimento a mais um maravilhoso espectáculo de dança tradicional da Índia, proporcionada pelas bailarinas Tarikavalli e Lajja Sambhavnath, ficam as seguintes palavras de Frithjof Schuon (Art from the Sacred to the Profane – East and West, World Wisdom 2007).

 * * *

A dança combina o espaço e o tempo, ao mesmo tempo que sumariza as restantes condições: a forma é representada pelo corpo do bailarino; o número, pelos seus movimentos; a matéria, pela sua carne; a energia, pela sua vida; o espaço, pela extensão que contém o seu corpo; e o tempo, pela duração que contém os seus movimentos. É assim que a Dança de Shiva sumariza as seis condições da existência, as quais são como que as dimensões de Māyā, e a priori as de Ātmā; se a Dança de Shiva, a Tāndava, traz a destruição do mundo, isto resulta precisamente do facto de fazer regressar Māyā a Ātmā. E é assim que toda a dança sagrada traz os acidentes de volta à Substância, ou o objecto particular, acidental e diferenciado, de volta ao Sujeito universal, substancial e uno (...)

Palavras Trovão

A tese do progresso indefinido depara-se com a seguinte contradição: se o homem pôde viver durante séculos sob a influência de erros e absurdos, – supondo que as tradições não são mais do que isso, e de tal forma que os erros e os absurdos seriam quase incomensuráveis – a imensidão de tal logro seria incompatível com a inteligência que atribuímos ao homem como tal e que somos obrigados a atribuir; dito de outro modo, se o homem é suficientemente inteligente para chegar ao “progresso” que encarna a nossa época, – admitindo que tal seja uma realidade – é a priori demasiado inteligente para ter sido enganado, durante milénios, por erros tão ridículos como aqueles que lhe atribui o mesmo “progressismo”; mas se, pelo contrário, o homem é tolo ao ponto de ter acreditado nesses mesmos erros durante tanto tempo, então ele é também demasiado tolo para os abandonar. Ou ainda, se os homens actuais chegaram finalmente à verdade, eles deveriam ser superiores em proporção aos homens da antiguidade, e essa proporção seria quase absoluta; na realidade, o melhor que se pode dizer é que o homem antigo – medieval ou da antiguidade – não era nem menos inteligente nem menos virtuoso que o homem moderno, bem longe disso. A ideologia do progresso é uma das absurdidades que impressiona pela falta de imaginação, bem como de um senso das proporções; é, de resto, essencialmente uma ilusão “vaishya”, um pouco como a “cultura”, que não é mais do que uma “intelectualidade” sem inteligência.

Frithjof SchuonCastes et Races

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A questão da promessa divina de proteção à Igreja

por Mateus Soares de Azevedo


Com relação à questão sobre a promessa do Cristo de proteção à Igreja (Mateus, 16: 18), posta pelo leitor do blogue Fábio Luque, é importante ponderar o seguinte.

A promessa divina não se refere apenas à Igreja Católica Romana. Pois a tradição cristã universal engloba três grandes confissões, ou correntes:

1. A Igreja Católica, cuja área providencial de atuação é, sobretudo, a Europa ocidental e as Américas, com extensões em África meridional, Oceania e partes de Ásia (como Filipinas e Coréia);

2. As Igrejas Ortodoxas Orientais, cuja área principal de atuação é o leste europeu e o Oriente Próximo, incluindo comunidades gregas, russas, melquitas, sírias etc estabelecidas nas Américas, na Oceania e Europa ocidental;

3. As igrejas protestantes originais, pré-liberais, sobretudo luteranas.

Jesus disse: “Onde dois, ou três, estiverem reunidos em meu Nome, eu estarei no meio deles”.

Frithjof Schuon interpretou os dois primeiros desta palavra divina como sendo o Catolicismo e a Ortodoxia. O terceiro, no condicional, expressa, entre outras possíveis interpretações, o caráter mais ou menos problemático e ambíguo do Protestantismo. Schuon escreveu, em seu magistral ensaio “A Questão do Protestantismo”, que este “manifesta incontestavelmente uma possibilidade cristã, limitada sem dúvida, e excessiva em algumas de suas características, mas não intrinsecamente ilegítima e, consequentemente, representativa de certos valores teológicos, morais e mesmo místicos. Se o Evangelismo - para usar o termo favorito de Lutero - estivesse situado num mundo como o do Hinduísmo, ele apareceria nesse particular como uma via possível, o que quer dizer que seria, sem dúvida, um darshana secundário entre outros (...)”.

Permitam-nos citar ainda algumas linhas deste mesmo texto, pois ele é bastante esclarecedor e, ademais, fornece uma resposta incisiva à opinião do grande René Guénon, que repelia o Protestantismo como manifestação heterodoxa e anti-tradicional no seio da Cristandade: “Poder-se-ia dizer analogicamente que a alma germânica - tratada por Roma de uma maneira demasiadamente latina, mas esta é outra questão - que esta alma, que não é grega, nem romana, sentia a necessidade de um arquétipo religioso mais simples e mais interior, um arquétipo menos formalista, portanto, e mais “popular” no melhor sentido da palavra; este é em certos aspectos o arquétipo religioso do Islã, uma religião baseada num Livro e conferindo o sacerdócio a todo fiel. Ao mesmo tempo, e de outro ponto de vista, a alma germânica sentia nostalgia por uma perspectiva que integrasse o natural ao sobrenatural, isto é, uma perspectiva tendendo a Deus sem ser contra a natureza; uma piedade não-monástica, todavia acessível a todo homem de boa vontade no meio das preocupações terrenas; uma via fundada na Graça e na confiança, e não na Justiça e nas obras; e esta via [o Protestantismo] tem incontestavelmente suas premissas no próprio Evangelho.”

Seja como for, e voltando o foco para a questão da promessa, creio que ela se refere fundamentalmente às igrejas ortodoxas, que não tiveram aggiornamento (como nota o grande William Stoddart em Remembering in a World of Forgetting (EUA, 2008, pp. 29-30), as igrejas orientais não sofreram estas três grandes ondas de destruição que devastaram a Cristandade ocidental: a Renascença, o Iluminismo e o aggiornamento).

A promessa vale também, certamente, aos grupos tradicionalistas católicos que não aceitaram a Weltanchauung conciliar e que lutam com grandes dificuldades, um pouco por todo mundo, para manter vivo o depósito da tradição que Cristo legou à sua Igreja, depósito este desprezado e mesmo “substituído” pela “nova” igreja, a de Roncalli, Montini, Woityla e Ratzinger. As igrejas católicas de rito oriental (melquita, armênia, ucraniana etc) estão igualmente cobertas pela promessa -- desde que, é claro, mantenham-se fieis à tradição que receberam do divino Mestre. Pois o importante aqui é ter claro que a promessa do Cristo não é incondicional, ou seja, ela não vale para aquelas partes de um organismo vivo como é a igreja que se corromperam ao longo do tempo e se desviaram da doutrina correta (este é o significado etimológico do termo grego “ortodoxia”).

As portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja”, diz o Cristo na passagem do Evangelho de São Mateus citada. Hoje, não há dúvida que há correntes da tradição cristã que se corromperam ou se desviaram da “correta doutrina”, e a “nova igreja”, ou a igreja romana oficial, é desgraçadamente uma delas – ela certamente não faz parte da “minha igreja”. A promessa não cobre a heterodoxia; portanto, a promessa não cobre a “nova igreja”.

Civilização e Progresso

Publicamos desde já uma parte de uma selecção de trechos do capítulo Civilisation et progrès da obra Oriente et Occident do magistral autor tradicionalista René Guénon. A versão completa e definitiva desta tradução constará no terceiro número da Revista Sabedoria Perene.

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A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: entre todas aquelas que nos são conhecidas mais ou menos completamente, esta civilização é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e este desenvolvimento monstruoso, cujo início coincide com o que se convencionou chamar de Renascimento, foi acompanhado, tal como estava fatalmente destinado, por uma correspondente regressão intelectual; dizemos correspondente em vez de equivalente, pois tratam-se aqui de duas ordens de coisas entre as quais não poderia existir qualquer medida comum. Esta regressão atingiu tal ponto que os ocidentais de hoje deixaram de saber o que é a intelectualidade pura, e tão pouco suspeitam de que tal possa existir; daqui resulta o seu desdém, não só pelas civilizações orientais, mas também pela idade média europeia, cujo espírito lhes escapa pouco menos completamente. Como fazer compreender o interesse de um conhecimento puramente especulativo àqueles para quem a inteligência é nada mais que um meio de agir sobre a matéria e de a sujeitar a fins práticos, e para quem a ciência, no sentido restrito em que a entendem, vale sobretudo na medida em que é aplicável para fins industriais? Nada exageramos: basta olhar em redor para se dar conta que é esta precisamente a mentalidade da imensa maioria de nossos contemporâneos; e um exame à filosofia posterior a Bacon e Descartes apenas confirmaria de novo estas constatações. Lembraremos apenas que Descartes limitou a inteligência à razão, que considerou como única função daquilo que acreditava poder chamar de metafísica a de servir de base à física, e que esta mesma física estava essencialmente destinada, segundo o seu pensar, a preparar a constituição das ciências aplicadas, mecânica, médica e moral – o limite último do conhecimento humano tal como o concebia. Não serão já estas tendências, assim formuladas, as mesmas que caracterizam, à primeira vista, todo o desenvolvimento do mundo moderno? Negar ou ignorar todo o conhecimento puro e supra-racional foi um abrir do caminho que logicamente poderia apenas conduzir, por um lado, ao positivismo e ao agnosticismo, os quais se entregam às mais redutoras limitações da inteligência e do seu objecto e, por outro lado, a todas as teorias sentimentalistas e voluntaristas, as quais se obrigam a procurar no infra-racional por aquilo que a razão não lhes pode dar. De facto, aqueles que nos nossos dias desejam reagir contra o racionalismo aceitam todavia a plena identificação da totalidade da inteligência com a razão, e crêem que aquela não é mais que uma faculdade puramente prática, incapaz de sair além do domínio da matéria. Bergson escreveu textualmente: "A inteligência, considerada no que parece ser a sua característica original, é a faculdade de fabricar objectos artificiais, em particular ferramentas para fazer ferramentas (sic), e de variar indefinidamente o seu fabrico" [2]. E novamente: "A inteligência, mesmo quando deixa de operar sobre a matéria bruta, segue os hábitos adquiridos nessa operação: aplica formas que são as mesmas da matéria desordenada. Ela está feita para este tipo de trabalho. Sem mais, este tipo de trabalho satisfá-la plenamente. E é isto que ela exprime ao dizer que somente assim atinge a distinção e a clareza" [3]. A partir destas últimas características podemos reconhecer sem esforço que não é a própria inteligência que está em causa, mas tão simplesmente a concepção cartesiana da inteligência, o que é bem diferente. E a "filosofia nova", como lhe chamam os seus aderentes, vai substituir a superstição da razão por uma outra, ainda mais grosseira sob certos aspectos, a superstição da vida. O racionalismo, ainda que impotente para se elevar até à verdade absoluta, deixava todavia subsistir a verdade relativa; o intuicionismo contemporâneo afunda esta verdade até ser não mais que uma representação da realidade sensível, em tudo o que ela tem de inconsistente e de incessantemente mutável; por fim, o pragmatismo acaba por fazer desaparecer a própria noção de verdade ao identificá-la com a noção de utilidade, o que resulta na pura e simples supressão da primeira. Se esquematizámos um pouco as coisas, de modo algum as desfigurámos e, quaisquer que possam ter sido as fases intermediárias, as tendências fundamentais são exactamente as que acabámos de descrever; os pragmatistas, indo até ao limite, apresentam-se como os mais autênticos representantes do pensamento ocidental moderno: o que importa a verdade num mundo em cujas aspirações, unicamente materiais e sentimentais e não intelectuais, encontram plena satisfação na indústria e na moral, dois domínios em que se pode bem passar sem conceber a verdade? Sem dúvida, não chegámos a este extremo num só golpe, e muitos europeus protestarão que não atingiram ainda tal extremo; mas aqui pensamos sobretudo nos americanos, que já se encontram numa fase mais "avançada", se assim o podemos dizer, da mesma civilização: tanto mentalmente como geograficamente, a América actual é verdadeiramente o "Extremo Ocidente"; e a Europa seguir-se-á, sem dúvida alguma, se nada vier impedir o desenrolar das consequências implicadas na situação actual.

Talvez mais extraordinária é a pretensão de fazer desta civilização anormal o próprio modelo de todas as civilizações, de considerá-la como "a civilização" por excelência, vista mesmo como a única merecedora desse nome. Igualmente extraordinária, e como complemento desta ilusão, é a crença no "progresso", encarado de um modo não menos absoluto e identificado naturalmente, na sua essência, com este desenvolvimento material que absorve toda a actividade do ocidental moderno. Ambas estas ideias de "civilização" e de "progresso", fortemente relacionadas, datam apenas da segunda metade do século XVIII, o que equivale a dizer que datam da época que, entre outras coisas, viu nascer também o materialismo [4]; estas foram propagadas e popularizadas sobretudo pelos sonhadores socialistas do início do século XIX. Deve-se reconhecer que a história das ideias permite fazer, por vezes, observações assaz surpreendentes e reduzir certas ideias fantásticas ao seu justo valor; ela o permitiria sobretudo se fosse feita e analisada correctamente, se não fosse, como acontece aliás com a história comum, falsificada por interpretações tendenciosas, ou limitada a obras de mera erudição académica, a investigações insignificantes sobre aspectos de detalhe. A verdadeira história pode ser perigosa para certos interesses políticos; e estamos no direito de questionar se não é por esta razão que determinados métodos, neste domínio, são impostos oficialmente e à custa da exclusão de quaisquer outros: conscientemente ou não, descartamos a priori tudo o que permitiria ver claramente as coisas, e é assim que se forma a "opinião pública". Mas regressemos às duas ideias acima tratadas e esclareçamos que, ao atribuir-lhes uma origem tão próxima, visamos unicamente esta acepção absoluta, e ilusória segundo a nossa opinião, que é a que mais comummente lhes é dada nos dias de hoje. O significado relativo que estas mesmas palavras são susceptíveis de ter é uma outra questão e, como este significado é muito legítimo, podemos dizer que se tratam neste caso de ideias que surgiram num determinado momento; pouco importa se elas foram expressas de um ou de outro modo e, se um termo é conveniente, não será pelo facto de ser criação recente que vemos inconvenientes em empregá-lo. Assim, não hesitamos dizer que existem "civilizações" múltiplas e diversas. Seria deveras difícil definir com precisão o conjunto complexo de elementos de diferentes ordens que constituem aquilo que se chama de uma civilização mas, todavia, qualquer um compreende bem o que se deve entender por tal. Não pensamos ser necessário tentar encerrar numa fórmula rígida as características gerais da civilização como tal, ou as características particulares de uma tal civilização; Este é um processo algo artificial, e duvidamos grandemente desses enquadramentos limitadores que tanto aprazem a mentalidade sistemática. Assim como há "civilizações", há também, no decurso do desenvolvimento de cada uma delas, ou de certos períodos mais ou menos restritos desse desenvolvimento, "progressos" que influenciam, não tudo de forma indiscriminada, mas este ou aquele domínio específico; Este não é senão, em suma, um outro modo de afirmar que uma civilização se desenvolve num determinado sentido, numa determinada direcção; mas, assim como existem progressos, existem também regressões, e por vezes até coexistem ambos em domínios distintos. Logo, insistimos que tudo isto é eminentemente relativo; se tomarmos as mesmas palavras num sentido absoluto, elas deixam de corresponder a qualquer realidade, e foi precisamente nesta época que elas passaram a representar estas ideias novas que existem há menos de dois séculos, e apenas no Ocidente. Certamente que "o Progresso” e “a Civilização", com letra maiúscula, podem ser muito eficazes em certas frases, tão vazias quanto retóricas, muito apropriadas para impressionar as multidões para quem as palavras servem menos para exprimir o pensamento do que para colmatar a sua ausência; estas desempenham um dos mais importantes papéis no arsenal das fórmulas de que os "dirigentes" contemporâneos se servem para conseguir o singular feito de sugestão colectiva, sem o qual a mentalidade especificamente moderna não saberia subsistir duradouramente. A este respeito não cremos ter alguma vez destacado suficientemente a analogia deveras notável que a acção do orador, por exemplo, tem com a do hipnotizador (a do domador pertence igualmente à mesma ordem); chamamos, de passagem, a atenção dos psicólogos para este objecto de estudo. Sem dúvida, o poder das palavras foi também exercido, em maior ou menor escala, em tempos que não o nosso; mas o que não tem paralelo é esta gigantesca alucinação colectiva através da qual toda uma porção da humanidade foi levada a tomar as mais fantásticas fantasias por realidades incontestáveis; e, entre os ídolos da mentalidade moderna, aqueles que aqui denunciamos são talvez os mais perniciosos de todos.
(...)

*

[2] L'Evolution créatrice, p. 151.
[3] Ibid, Pág. 174
[4] A palavra "materialismo" foi inventada por Berkeley, que dela se serviu unicamente para designar a crença na realidade da matéria; o materialismo no seu sentido atual, isto é, a teoria segundo a qual não existe qualquer outra coisa senão a matéria, remonta apenas a La Mettrie e a Holbach; não deve ser confundida com mecanismo, cujos exemplos podem ser encontrados mesmo entre os antigos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Forma e Substância nas Religiões




Divulgamos aqui a segunda publicação da Editora Sapietia: o magnífico "Forma e Substância nas Religiões" de Frithjof Schuon. Aqui fica o índice da obra e a ligação para uma apresentação do tradutor Mateus Soares de Azevedo.



Apresentação: Frithjof Schuon e o caminho da Metafísica, da Oração e da Virtude...
Prefácio do autor
1. Verdade e Presença
2. Forma e Substância nas Religiões
3. Atmâ – Mâyâ
4. Substância, Sujeito e Objeto
5. As Cinco Presenças Divinas
6. A Cruz Espaço-Tempo na Onomatologia Corânica
7. Observações sobre o Fenômeno Maometano
8. A Mensagem Corânica de Jesus
9. A Doutrina Virginal
10. Síntese dos Pâramitâs
11. Sobre o Elemento Feminino no Mahâyâna
12. O Mistério das Duas Naturezas
13. A Questão das Teodicéias
14. Algumas Dificuldades dos Textos Sagrados
15. Paradoxos da Expressão Espiritual
16. A Margem Humana
17. Sobre um Problema Escatológico
18. Os Dois Paraísos

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Três revoluções, três papas e a “nova” Igreja [1] - Parte 3/3

por Mateu Soares de Azevedo

(parte 2/3)


Joseph Ratzinger (Bento XVI)

Apesar de ter sido o braço direito de Woityla por um quarto de século, como prefeito da congregação da doutrina da fé no Vaticano, pode-se ainda dizer que a figura de Ratzinger e suas idéias não são suficientemente conhecidas. Seu ideário, contudo, pode ser bem compreendido prestando atenção às suas próprias palavras. Nos anos 1950, sua tese de habilitação ao seminário de Freising, na Alemanha, foi recusada por "falta de rigor teológico", suspeita de "heterodoxia neo-modernista" e por "subjetivizar o conceito de Revelação". Na autobiografia La Mia Vita, criticou a principal escola teológica católica, a tomista, como "fechada em si mesma, impessoal e pré-fabricada".

No livro Princípios de Teologia Católica, elogiou "o impulso dado por Teilhard de Chardin", cuja "ousada visão incorporou o movimento histórico do Cristianismo ao processo cósmico da evolução". Vê-se, assim, que a influência do jesuíta francês continua forte. Bento XVI citou-o novamente na sua primeira homilia de Páscoa como papa, em abril de 2006: “A ressurreição de Cristo é algo diferente: se tomarmos emprestada a linguagem da teoria da evolução, trata-se da maior das mutações, o salto mais crucial rumo a uma dimensão totalmente nova...” O espírito da fala, desnecessário realçar, é completamente teilhardiano.

Na mesma obra, escreveu que "a Verdade se torna função do tempo... Fidelidade à verdade de ontem consiste em abandoná-la e assumi-la na verdade de hoje." Na missa Pro eligendo pontífice, contudo, rezada por ele um dia antes de ser eleito pelos cardeais, descreveu a "ditadura do relativismo" como "o problema central da fé hoje ". O problema é que o cerne do relativismo é justamente a idéia de que nada é definitivo e que a verdade depende da história ou da classe social. A este respeito, Aristóteles afirmou: "Aqueles que declaram que tudo, inclusive a verdade, segue um fluxo constante se contradizem, pois, se tudo muda, sobre qual base podem formular uma afirmação válida?"

Em palestra em Subiaco, Itália, em 1o de abril de 2005, sustentou que "o Iluminismo é de origem cristã e não é acidente que tenha nascido no âmbito da fé ... O concílio Vaticano II enfatizou mais uma vez esta profunda correspondência entre Cristianismo e Iluminismo."

O paradoxal nesta tentativa de apropriação, pelo chefe da nova Igreja, da "glória do Iluminismo" é que este se destacou, como é bem sabido, por um marcado sentimento anti-religioso. Um dos "papas" do Iluminismo, o francês Diderot (1713-1784), editor da célebre Enciclopédia, acalentava a idéia de "enforcar o último Rei nas tripas do último Papa." Oxalá a “correspondência profunda” não chegue a tanto...

Comparado com seus antecessores imediatos, Ratzinger inaugura um novo conceito e fase. A simples escolha do nome já diz muito. Ele não quer ser nem um João Paulo III, nem um Paulo ou um João a mais. Tampouco um Pio, cujo nome indicaria repúdio ao modernismo, definido por Pio X (1903-14) como a “síntese de todas as heresias”. O modelo para o qual aponta é Bento XV (1914-22), papa conciliador. Desta maneira, pode-se especular que ele almejará conciliar tradição e revolução – como se fosse possível ‘conciliar’ a verdade com o erro.

De fato, suas ações apontam na direção da correção dos “excessos” conciliares e pós-conciliares. Ao mesmo tempo, busca um acordo entre contrários, de onde a inevitável ambigüidade. No Washington Times (30/9/2003) informou que era um teólogo radical durante o concílio, mas agora é visto como conservador. Sua Santidade disse que como o mundo tendeu tanto para a esquerda, mesmo um progressista de suas convicções parece conservador. Em La Croix (28/12/2001) esclareceu ser um representante da nova Igreja que não crê em “retorno à tradição”.

Seja como for, o cerne da questão é que Ratzinger enfrenta agora os efeitos perversos longínquos da revolução que ajudou a fomentar no passado. Quer limitar ou abolir as conseqüências destrutivas das inovações. Mas limita-se aos efeitos. Visa os “excessos”, não a raiz do que ele mesmo denominou “auto-demolição” da Igreja. Sua agenda, assim, aponta para uma intrincada “concertação”. Conseguirá ser bem sucedido nesta tarefa de Hércules? Ou se engajará numa obra de Sísifo? [5]

*

[1] Uma versão deste ensaio foi publicada em inglês, como capítulo do livro “Men of a Single Book: Fundamentalism in Islam, Christianity and Modern Thought” (World Wisdom, 2010).

[5] Devo a Rama Coomaraswamy e ao seu “The Destruction of the Christian Tradition” (World Wisdom, 2009, páginas 436-37) a maior parte das citações aqui reproduzidas de Bento 16. Acima de tudo, sou grato a William Stoddart pelas informações preciosas fornecidas em dois livros recentes: “What Do the Religions say about Each Other?” (Sophia Perennis, 2008) e “Invincible Wisdom” (Sophia Perennis, 2008).

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Três revoluções, três papas e a “nova” Igreja [1] - Parte 2/3

por Mateu Soares de Azevedo

(parte 1/3)


Karol Woitila (João Paulo II)
(1978-2005)


O pontífice que sucedeu Giovanni Battista Montini (Paulo VI) foi João Paulo I, o “papa sorriso” do marketing conciliar; ele governou por apenas 33 dias. Mas legou ao seu sucessor um nome que já é todo um programa. De fato, João vem do “precursor” do concílio, Luciano Roncalli (João XXIII, que governou a Igreja de 1958 a 63) [3], e Paulo de seu “finalizador”, Montini (Paulo VI), mas o polonês Karol Woityla (João Paulo II) foi além. Foi o responsável pela manutenção das transformações feitas durante o concílio e o imediato pós-concílio. Nesse sentido, pode-se dizer que teve um papel comparável ao de Napoleão após a Revolução Francesa, ao impedir a implosão do aggiornamento com o caos e a divisão que se formaram e a volta do Ancien Régime católico tradicional.

Woityla foi o papa da imagem, dos eventos externos, das viagens. Mas não teve nenhum êxito no enfrentamento da desespiritualização das sociedades contemporâneas, agudizada, não por acaso, desde o concílio. Além disso, durante os quase 27 anos de seu pontificado, as divisões internas do Catolicismo moderno só aumentaram.

De fato, todo o “carisma“ de Karol Woityla não foi capaz de colocar um fim à trágica crise que se abateu sobre a igreja desde os anos 1960. Dezenas de milhares de padres abandonaram o sacerdócio. Segundo a revista italiana Civiltá Cattolica (de 21 de abril de 2007), 69.063 padres abandonaram o sacerdócio entre 1964 e 2004. As vocações escasseiam tanto entre o clero secular como entre as ordens religiosas. Por todo o mundo, seminários, escolas e conventos foram fechados. Nos EUA, dos 49 mil seminaristas existentes em 1965, restaram hoje apenas 4.700. O número de freiras despencou de 180 mil, em 1965, para 75 mil em 2002. Os colégios católicos estadunidenses eram 1.566 em 1965; hoje são 786. Os estudantes nestas escolas caíram de 700 mil para 386 mil no mesmo período. A freqüência à missa caiu para menos de 20%, quando era de 75% em 1960. No Brasil, "o maior país católico do mundo", a Igreja perde cerca de um milhão de fiéis ao ano. Pesquisa Datafolha de maio de 2007 mostra que, entre 1997 (após a terceira visita apostólica de João Paulo II ao Brasil) e 2007, ano da visita de Bento XVI, o número de católicos caiu de 74% para 64%. Isso representa cerca de 15 milhões de almas que abandonaram a barca de Pedro. No mesmo período, o número de ateus e agnósticos mais que decuplicou, de 0,5% para 7,4%. Na Europa Ocidental, metade dos recém-nascidos não é mais batizada na Igreja. Em contraste, as igrejas orientais, que não seguiram o aggiornamento, vivem um bom momento. "Pelos frutos se conhece a árvore", ensina o Evangelho.

Karol Jozef Woityla foi escolhido como o 263º sucessor de São Pedro em 16 de outubro de 1978. Em quase três décadas de pontificado, ele não deixou de surpreender muitos fiéis e de deixar os não-católicos perplexos. Eles ainda se perguntam: foi um verdadeiro místico ou um apenas um pragmático? Um conservador ou um progressista? Gênio político ou mero oportunista? Tomista ou existencialista? Um espiritual ou um mundano? Ainda hoje, muitos se interrogam se decifraram de fato a protéica figura de Woityla. Questionam-se, também, acerca das perspectivas que se abrem na nova fase que se inicia após seu pontificado e sob o comando de seu braço direito no Vaticano, o alemão Bento XVI.

Woityla nasceu em 18 de maio de 1920 na pequena cidade medieval de Wadovice, distante 50 quilômetros de Cracóvia, na Polônia. Em 1946, com 26 anos, foi ordenado sacerdote. Em 1958, foi feito bispo; em 1964, arcebispo; em 1967, cardeal. Em 1978, sumo pontífice. Uma carreira fulminante. O primeiro não-italiano a ocupar o papado em quase 500 anos.

Ator semi-profissional, admirador da filosofia existencialista, amante das caminhadas, do esqui e da canoagem, operário na Polônia por curta temporada (para escapar à deportação, promovida pelos nazistas, dos estudantes desocupados). Os elementos inusitados em sua biografia são muitos.

Durante a II Grande Guerra, ele e seu grupo teatral sofreram influência da “antroposofia” do austríaco Rudolf Steiner (1861-1925). Este movimento constitui uma cisão da “Sociedade Teosófica”, a qual sustenta ser uma “síntese superior” de todas as religiões. Em O Tesosofismo, História de uma Pseudo-Religião, René Guénon diz que o “antroposofismo” constitui um confuso e sincrético amálgama de idéias reencarnacionistas, pseudo-científicas e pseudo-cristãs. Outro admirador de Steiner foi o jovem Ângelo Roncalli, o qual, a partir de 1959, governaria a Igreja sob o nome de João XXIII (quando professor do Angelicum de Roma, Roncalli perdeu seu posto por ensinar as exóticas teorias de Steiner).

Neste período, a grande paixão de Woityla foi indubitavelmente o teatro. Ele foi autor de um livro dedicado ao assunto, The Acting Person. Sua tradutora resumiu seu "complexo pensamento": "Enfatiza o valor irredutível da pessoa humana, vê uma dimensão espiritual na interação humana, o que leva a uma concepção profundamente humanista ." Os críticos teatrais, contudo, consideraram The Acting Person "entediante".

Quanto à filosofia de João Paulo II, ela é composta de idéias personalistas e existencialistas, com conceitos derivados de Heidegger, Husserl e Scheler. Outras importantes influências são os franceses Jacques Maritain -- cujo sonho era unificar as comemorações da Queda da Bastilha com as de Santa Joana D'Arc -- e Teilhard de Chardin, sempre ele!, que tentou combinar numa mesma visão Cristianismo, evolucionismo darwinista e marxismo. No seu livro O Signo da Contradição, João Paulo II compara as intuições de Teilhard às do livro do Gênesis!

Alguns o consideraram um dos grandes políticos do século; outros, um mestre da ambigüidade. Fluente em várias línguas, viajou o planeta de Norte a Sul, de Leste a Oeste, encontrando-se com reis, presidentes, intelectuais, artistas etc. Paradoxalmente, a instituição que liderou reduziu sensivelmente sua influência sobre a vida dos homens.

Participante ativo do Concílio Vaticano II, a contribuição de Woytila foi "decisiva" – pelo menos segundo a biografia distribuída pelo serviço de imprensa da Santa Sé no dia da eleição -- para a redação da Constituição pastoral Gaudium et Spes (sobre a Igreja no mundo contemporâneo). Este documento, no entanto, foi considerado pelo cardeal Heenan, antigo primaz da Inglaterra, como "uma duvidosa acomodação com tudo que está na base dos males que afetam a humanidade.” Contrariamente a todos os concílios anteriores, sua convocação foi feita essencialmente em resposta a motivações ideológicas e políticas, e não para encaminhar questões teológicas, como mostra Rama Coomaraswamy no bem documentado “Ensaios sobre a destruição da tradição cristã” [4].

Sua excepcionalidade resulta, assim, do fato de que foi determinado não por situações concretas avaliadas a partir da teologia, mas por abstrações ideológicas opostas a esta última. O açambarcamento da religião por ideologias pseudo-religiosas não é um fenômeno constatado somente no catolicismo, sendo de fato universal: no Islã, mediante o extremismo militante; no judaísmo, pela ação do sionismo político, que assumiu na prática o lugar da religião para muitos judeus; no hinduísmo, pelo nacionalismo xenófobo.

Laborem Exercens, sua terceira encíclica, de 1981, abordou a questão do trabalho. Nela, vale-se da linguagem ambígua tão bem explorada pelos textos do Vaticano II que se torna difícil de entender. A escritora Ursula Oxford conta a história de um jornalista americano que perguntou aos responsáveis do Vaticano como poderia analisar determinada greve à luz do texto. A declaração oficial foi de que "não há uma resposta específica, ou, para colocá-lo mais precisamente, pode-se analisá-la da maneira que a pessoa quiser".

Em Laborem Exercens, apesar do estilo vago e ambíguo de sempre, João Paulo II esposa uma tendência mais ou menos socialista e condena o capitalismo. Para ele, a "tradição cristã nunca sustentou que o direito à propriedade privada é absoluto e intocável". Na verdade, a Igreja sempre ensinou que o homem tem direito à propriedade privada, como observa Leão XIII na Rerum Novarum. Apesar de todo seu alardeado conhecimento do comunismo, João Paulo pareceu esquecer-se do fato que, sem propriedade privada, o homem não passa de escravo nas mãos do Estado Todo-Poderoso.

Quando um jornal checo, antes da queda do comunismo, criticou-o por ser “anticomunista”, o jornal oficial da igreja, L'Osservatorio Romano, deu-se ao trabalho de desmentir a informação, considerando-a "altamente ofensiva" e "absurda". Em 1978, o então vice-ministro das relações externas da Polônia, Josef Winiewicz, manifestou num jornal governamental sua "alegria" pela eleição do conterrâneo, fazendo questão de ressaltar que "a formação de sua mente e de sua personalidade aconteceu num país socialista".

Laborem Exercens fala de "socialização satisfatória", sem nunca definir com clareza o que entende por isso. Com seus antecessores imediatos, ele nunca condenou claramente o comunismo, isto é, até a Centésimo Ano, em que apresenta uma visão mais otimista do sistema de mercado, o que assinala aliás uma mudança em relação às encíclicas sociais anteriores. Os homens do Vaticano II nunca esclareceram que há uma doutrina econômica especificamente cristã, que defende a mais ampla distribuição da propriedade e critica os excessos do liberalismo e a concentração da riqueza. De outro lado, o comunismo foi condenado em mais de duas centenas de documentos da igreja tradicional. Pio XI, por exemplo, considerou-o "intrinsecamente perverso" e "contrário à própria lei natural", "um pseudo-ideal de justiça, igualdade e fraternidade".

Outro exemplo de ambigüidade é a segunda encíclica de João Paulo II, Dives in Misericórdia, de 1979. Escreve ele: "A igreja afirma-se e realiza-se de uma maneira teocêntrica, mas em si mesma a igreja está centrada no homem... ela é antropocêntrica". Ou, na audiência geral de 29 de novembro de 1980, onde se percebe um eco das teorias de Rudolf Steiner: "O Cristianismo é antropocêntrico precisamente porque é plenamente teocêntrico, e ele é teocêntrico graças ao seu especial antropocentrismo". O leitor inteligente saberá decifrar o significado das frases.


A despeito da grave crise, Woityla recusou-se a questionar a linha traçada por seus antecessores imediatos. Acompanhado do setor dominante na hierarquia eclesiástica, ele pareceu crer que a igreja, depois de séculos de balbucios e tartamudeios, subitamente nasceu numa manhã de 1962. Em sua primeira encíclica, expressa "seu amor pela herança única deixada à Igreja por João XXIII e Paulo VI" e sua "disposição em desenvolver este legado". Inúmeras foram as vezes em que afirmou que "realizar os ensinamentos do Vaticano II" seria a chave do seu governo.

Concílio que foi analisado nas seguintes palavras pelo então principal teólogo e segundo homem da hierarquia, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger:

"O papas esperavam uma nova unidade, mas o que ocorreu foram contendas e dissensões de tais proporções que a Igreja parece estar passando da autocrítica para a autodestruição. Esperávamos um novo entusiasmo, mas acabamos, pelo contrário, no tédio e no desencorajamento. Olhávamos para um salto rumo ao futuro, mas o que encontramos, ao contrário, é um crescente processo de decadência que em grande medida desenvolveu-se a partir do --- e pode ser imputado ao -- assim chamado espírito do concílio" (Entrevista sobre a Fé, Vittorio Messori, 1985).

Apesar das palavras lamuriosas, Ratzinger sequer cogitou em questionar o "legado do concílio", muito menos em fazer efetivamente algo para mudar a situação. Este tipo de autocrítica estéril, sem nenhuma conseqüência prática, já havia sido inaugurada por Paulo VI. Num discurso em 29 de junho de 1972, ele disse: "Acreditávamos que após o concílio veríamos um dia de sol para a igreja. Mas, em vez do sol, vimos nuvens, tempestades, trevas... Por alguma fissura, a fumaça de satã entrou no templo de Deus".

Todo o pontificado de João Paulo II continuou sentindo a fumaça, mas recusou-se a identificar a origem do fogo; não compreendeu que uma instituição espiritual não pode sobreviver com idéias vagas, frouxas, ambíguas e superficiais. De nada adiantarão os diversos e dispendiosos projetos em curso, especialmente os de marketing e comunicação; a história mostra que só uma idéia clara e poderosa, e respeito pelos ritos cuja origem é supra-humana, pode sensibilizar e mover almas.

A meu ver, seu papado representou o malogro derradeiro do projeto modernista inaugurado por João XXIII e implementado por Paulo VI. Este projeto procurou o aggiornamento, isto é, a “adaptação” da Igreja à ideologia dominante na década de 1960, a qual viveu com particular agudeza os postulados do modernismo, como a revolta estudantil de 1968 bem demonstrou. Esses postulados podem ser sintetizados em algumas idéias-chave: obscurecimento do senso do sagrado; “Marta”, em vez de “Maria” (ou ação em detrimento da contemplação); foco na história, em detrimento da espiritualidade; relativismo; cienticismo, ou crença na ciência e na tecnologia como fontes de felicidade humana.

Simplificando e colocando as coisas de uma maneira antes esquemática, mas não obstante legítima, pode-se dizer que os homens responsáveis pela condução da igreja então apostaram no “cavalo modernista”, na “nova ordem” que então se descortinava. Mas hoje, meio século depois, constata-se que este ideário, completamente “datado”, estava preso aos limites da época e não correspondia, portanto, aos princípios universais e perenes que caracterizam toda verdadeira religião. Em suma, o “cavalo” no qual a liderança católica tem apostado desde o concílio perdeu a corrida.

Desde então, houve muita agitação, na área litúrgica e doutrinal, falou-se muito, escreveu-se muito, houve muitos eventos de massa, mas não se pode, em definitivo, dizer que seus responsáveis deixaram um legado sólido para as futuras gerações. A mentalidade do aggiornamento, à qual os anos de João Paulo II e, agora, de Bento XVI, deram solução de continuidade, tem se caracterizado, ao contrário, pela superficialidade intelectual e a indigência espiritual.

(parte 3/3)

*

[1] Uma versão deste ensaio foi publicada em inglês, como capítulo do livro “Men of a Single Book: Fundamentalism in Islam, Christianity and Modern Thought” (World Wisdom, 2010).

[3] João 23 criou um vácuo, sem nada pôr no lugar. Sob o pretexto de substituir o vetusto e superado, o que fez foi uma razzia de tudo que era sagrado na igreja", o saudoso Paulo Francis escreveu sobre o assunto.

[4] T A Queiroz editor, São Paulo, 1990.


sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Três revoluções, três papas e a “nova” Igreja [1] - Parte 1/3

por Mateus Soares de Azevedo

Após a crucifixão, a religião cristã foi gradativamente se enraizando e se estabelecendo, sobretudo na Europa e no Oriente Próximo, mas também na Ásia e na África. Depois de vários séculos, alcançou seu apogeu naquilo que hoje chamamos de Idade Média – grosso modo, entre a coroação de Carlos Magno no ano 800 e 1300. Nesta época, floresceram confrarias espirituais como a franciscana e a dominicana; escolas de pensamento como a tomista (aristotélica) e a eckhartiana (platônica); movimentos artísticos como o românico e o gótico; sábios e santos como Francisco de Assis, Catarina de Siena, Alberto Magno e Dante, sem falar dos hospitais, universidades e asilos criados pela igreja.

Depois deste ápice, três revoluções modificaram a face da Cristandade. A primeira foi o Renascimento (século XV), a segunda, o Iluminismo (século XVIII) e a terceira, o Vaticano II (século XX).

A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento do divino rumo ao humanismo. O Iluminismo foi uma continuação disso, de uma maneira mais marcada e explícita. O Vaticano II foi a derradeira e mais devastadoras dessas revoluções, virando pelo avesso as principais crenças e práticas do Catolicismo. O concílio, assim, reforçou, de forma agressiva e destrutiva, e de dentro da cidadela da religião, as duas revoluções anteriores.

A própria denominação daquilo que estamos indicando como a ‘primeira’ das revoluções é enganosa, pois significou a ‘morte’, não o ‘renascimento’, do patrimônio intelectual, espiritual e cultural medieval. Este legado inclui a especulação teológica de séculos, como exposto na Suma de Santo Tomás de Aquino; a Divina Comédia de Dante, compreendendo uma visão e um ensinamento sobre o destino póstumo do homem; a altamente espiritual arte e arquitetura românica e gótica; os ícones bizantinos, e muitas outros elementos. A Renascença foi o primeiro movimento de afastamento da espiritualidade, transcendência, qualidade, interioridade e verticalidade, rumo a uma nova ênfase na materialidade, mundanidade, quantidade, exterioridade e horizontalidade. Sem esquecer a substituição do universalismo pelo individualismo, da intelectualidade pelo racionalismo. Em uma palavra, a Renascença significou o início do “reino da quantidade”, como explicado por René Guénon em seus clássicos A Crise do Mundo Moderno e O Reino da quantidade e os sinais dos tempos.

Três séculos após a Renascença, aconteceu uma segunda revolução, que traiu seu verdadeiro propósito pelo próprio nome; os líderes do auto-denominado “Iluminismo” viam a si mesmos como portadores da “luz” da ciência e da razão, contra as “trevas” da “superstição” e do “dogma”. Foi , assim, uma batalha ideológica contra a religião. Caracteristicamente, o movimento foi disseminado pela já secularizada maçonaria e serviu como base ideológica da Revolução Francesa. A redução da qualidade à quantidade, da espiritualidade ao materialismo, da interioridade à exterioridade experimentou assim um segundo estágio e representou uma radicalização dessas tendências que foi muito além da Renascença.

Este ‘reino da quantidade’, que deu seus primeiros passos na Renascença e se expandiu no Iluminismo alcançou a cidadela da religião com o concílio Vaticano II de 1962-65. O concílio permitiu que a nova ideologia humanista do ‘progresso’, ciência e tecnologia invadisse os sacros limites antes reservados para o conhecimento e o amor de Deus. Mas, desde que a religião nunca pode ser um suporte para a mentalidade materialista como estruturada pela Renascença e o Iluminismo, e de fato está em completa oposição a ela, os chefes do concílio buscaram uma pacto e uma acomodação com a mentalidade moderna. Tal meta constitui, contudo, uma clara traição do espírito cristão. Muito antes do Vaticano II, ainda na década de 1920, Guénon escreveu: qualquer compromisso entre o espírito religioso e a mentalidade moderna enfraqueceria o primeiro e só beneficiaria a segunda, cuja hostilidade não seria por isso diminuída, dado que o modernismo almeja a aniquilação total de tudo que, na humanidade, reflete uma realidade superior a ela mesma (A Crise do Mundo moderno). Palavras proféticas. [2]

O principal arquiteto desta revolução dentro da igreja foi o jesuíta francês Teilhard de Chardin; ele foi o ‘elo perdido’ entre o Renascimento, o Iluminismo e o Vaticano II. Com seu evolucionismo panteísta com verniz cristão, Teilhard dizia que Cristo representou um grande “salto evolutivo” e que Deus também está sujeito à “evolução”! Seu ‘testamento intelectual’ pode ser resumido num extrato de seu livro Cristianismo e Evolução (p.99):

"Se, como resultado de alguma revolução interior, eu perdesse sucessivamente minha fé em Cristo, minha fé no Deus pessoal e a fé no espírito, creio que continuaria a crer de forma invencível no mundo. O mundo, seu valor, sua bondade, sua infalibilidade, é isso, ao final das contas, a primeira, a última e a única coisa em que creio.”

Não é sem razão que um comentário espirituoso diz que se Lutero foi um cristão que deixou a Igreja, Teilhard foi um pagão que permaneceu nela!

Juntamente com o espectro de Teilhard, podemos dizer que nossa época ainda é dominada pelos espectros de Darwin, Marx, Freud e Jung. Alguns deles, ou todos, podem ser já considerados “história”. Mas sua influência, percebida ou não, deixou marcas profundas em nosso modo de pensar e agir. Os “ismos” que forjaram continuam sendo as peças básicas de nossa “religião” secular. Esta também tem seus defensores “fundamentalistas”, que praticam uma “intolerância religiosa” que nada fica a dever aos piores exemplos do passado. E ai de quem ouse questionar seus “dogmas”!

Pouquíssimas pessoas e instituições não foram afetadas por tais idéias. Em razão de sua influência no mundo ocidental, vale a pena avaliar como afetaram a Igreja Católica. Elas o fizeram especialmente mediante a revolução que foi o concílio Vaticano II. A natureza desta revolução pode ser apreciada pelos ditos e escritos dos papas do período, de João XXIII a Bento XVI. Através deles, percebe-se um programa radical e sem precedentes de rompimento com a tradição. Apesar disso, não suscitou grandes indagações por parte de um público que permanece relativamente passivo. As citações abaixo de Paulo VI mostram claramente quão drástica foi a revolução. Suas palavras estão em contradição com os próprios fundamentos do Cristianismo.

Giovanni Battista Montini (Paulo VI)
(1963-78)

Na audiência geral de 2 Julho de 1969, Montini declarou: “‘se o mundo muda, não deveria a religião também mudar?”

Ao abrir a 4ª. sessão do Vaticano II, em 14 de setembro de 1965, ele disse à assembléia reunida: “Pode a igreja, podemos nós mesmos, fazer outra coisa senão olhar para o mundo e amá-lo?”

É no seu pronunciamento de encerramento do concílio, em 7 de dezembro de 1965, que chegamos ao cerne da questão: “ Uma corrente de amor e admiração fluiu do concílio para o mundo moderno… os valores do mundo foram não apenas respeitados, mas honrados, seus esforços foram aprovados, suas aspirações purificadas e abençoadas.”

Foi neste mesmo pronunciamento que, com particular eloqüência, Montini nos legou o cerne de sua visão: “Todas as riquezas doutrinais do concílio não têm senão um propósito: servir ao homem… Reconheçam pelo menos isso, vós humanistas modernos que renunciaram à transcendência das coisas supremas, pelo menos este mérito e saibam reconhecer nosso novo humanismo: Nós também, Nós mais do que ninguém, também temos o Culto do Homem!”

(parte 2/3)

[1] Uma versão deste ensaio foi publicada em inglês, como capítulo do livro “Men of a Single Book: Fundamentalism in Islam, Christianity and Modern Thought” (World Wisdom, 2010).

[2] Vale lembrar que, de acordo com os Evangelhos, São Pedro negou o Cristo três vezes. Simbolicamente, pode-se talvez dizer que a igreja que Pedro estabeleceu herdou, por assim dizer, essas três negações, as quais podem ser relacionadas às três grandes rejeições, ou revoluções, sobre as quais estamos falando.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Palavras Trovão

Existem aqueles que alegam que a ideia de Deus apenas é explicável por oportunismo social, sem se darem conta do que existe de infinitamente desproporcionado e de contraditório numa tal hipótese; se homens como Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino – sem falar dos Profetas, de Cristo e dos sábios da Ásia – não foram capazes de observar que Deus é apenas um preconceito social ou outra fraude análoga, e se séculos ou milénios foram baseados intelectualmente na sua incapacidade, então não há inteligência humana possível, muito menos qualquer possibilidade de progresso, pois um ser absurdo por natureza não contém em si a possibilidade de deixar de ser absurdo.


Frithjof Schuon - Les stations de la sagesse

sábado, 2 de outubro de 2010

Gurvastakam

Hino de oito versos em louvor ao Guru [1]
de Shankaracharya



1. O corpo pode ser belo, a esposa maravilhosa, a fama grandiosa e a riqueza ilimitada como o Monte Meru; mas se a mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

2. Esposa, riqueza, filhos, netos e tudo mais; casa e amizades – pode nada faltar; mas se a mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

3. Pode estar nos nossos lábios todo o Vedas com os seus seis auxiliares e o conhecimento de todas as ciências; ter o dom da poesia e compor boa prosa; mas se a mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

4. Sou honrado noutras terras; no meu país sou próspero; posso pensar que ninguém me supera nas artes de boa conduta; mas se a mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

5. Posso ter a meus pés a constante devoção de todos os imperadores e reis deste mundo; mas se a mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

6. A minha fama percorre os quatro cantos do mundo fruto da minha generosidade e talento; tudo é colocado ao meu dispor em reconhecimento dessas virtudes; mas se a mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

7. A mente não se fixa no prazer, na concentração ou em múltiplos cavalos; nem na face da amada e na riqueza; mas se a mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

8. A minha mente não anda pela floresta, nem mesmo por minha casa, nem pelo que quero alcançar, não se fixa no corpo nem em nada que não tenha valor; mas se a minha mente não estiver fixada nos pés de lótus do Guru, de que serve, de que serve, de que serve, de que serve?

9. A pessoa virtuosa que ler estes oito versos sobre o Guru, e cuja mente esteja fixada nos ensinamentos do Guru – seja ela asceta, rei, estudante ou empregada, atinge o objectivo desejado, o estado denominado de Brahman.

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[1] - Tradução livre a partir de "The Hymns of Sankara" - T.M.P. Mahadevan (Motilal Banarsidass - Delhi 2002)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Homens de um livro só




A edição em língua inglesa deste Homens de um livro só, da autoria de Mateus Soares de Azevedo, estabelece uma muito necessária e clara distinção entre os nefastos efeitos do fundamentalismo pseudo-religioso e os benefícios que advêm das verdadeiras manifestações de religiosidade e espiritualidade. Por outro lado, e não de menor importância, clarifica de forma decisiva que o padrão de pensamento moderno é também ele mesmo uma forma de fundamentalismo que se caracteriza pelo total abandono, nomeadamente por parte do mundo ocidental, daquela visão “integral” da existência e do mundo que prevaleceu até ao final da idade média – a visão que passou a ser apelidada de tradicionalista ou perenialista a partir do século XX – e pela aceitação acrítica de teses “fragmentárias” sobre a mesma existência e o mesmo mundo, como é o caso das teses propostas por autores individuais como Darwin, Freud, Jung e Marx, entre outros.

Este livro tem o mérito de, em pleno século XXI, e à luz daquela visão “integral” da existência e do mundo, discernir e criticar brilhantemente estas diferentes formas de fundamentalismo, apontando simultaneamente na direcção da paz e da harmonia humana.

Esta edição recentemente publicada pela World Wisdom contém dois novos capítulos que não constam na primeira edição em língua portuguesa – um sobre o Concílio Vaticano II e outro sobre Carl Gustav Jung – e ainda uma profunda reformulação do primeiro capítulo, o qual contém novos dados sobre o sionismo. Aqui fica o indíce da mesma:

Forward by Alberto Vasconcellos Queiroz
Introduction by William Stoddart

PART I: Militant Fundamentalism vs Traditional Religion
1. Beware of the Men of a Single Book
2. Militant Islam, the Muslim World, and the Holy War
3. Asymmetries between Christianity and Islam
4. The Koran and the Bible
5. The Message of Islam
6. Sufism in the Face of Militant Fundamentalism

PART II: Secular Fundamentalism
7. Marxism as Fundamentalism
8. Freudian Psychoanalysis as Secular Fundamentalism
9. Jung and the Faithful without Religion
10. Vatican II and the Three Revolutions
11. Science Fundamentalism: A Short Answer to Three Militant Atheists

Map of the Islamic World
Selected Biography

sábado, 25 de setembro de 2010

Citações espirituais

O pecado que te deixa triste e arrependido é mais apreciado pelo Senhor do que a boa acção que te torna vaidoso e presunçoso.


Nahjul Balagha



Mesmo se não existissem o Céu e o Inferno, não seria correcto obedecer-Lhe? Ele é merecedor de adoração sem qualquer outro motivo.


Rabi’a al-Adawiyya

domingo, 29 de agosto de 2010

Al-‘Alawî: Um santo sufi do século XX



O Infinito ou o Mundo do Absoluto que concebemos como estando fora de nós é, ao contrário, universal e existe tanto dentro de nós como fora. Existe apenas Um Mundo, e este é Isto. Aquilo que concebemos como o mundo sensível, o mundo finito do tempo e do espaço, não é senão uma conglomeração de véus que escondem o Mundo Real. Estes véus são os nossos sentidos: os nossos olhos são os véus sobre a Verdadeira Vista, os nossos ouvidos são os véus sobre a Verdadeira Audição, e é assim também com os outros sentidos. Para nos tornarmos cientes da existência do Mundo Real, os véus dos sentidos devem ser removidos… e o que subsiste então do homem? Subsiste um ténue cintilar que lhe surge como a lucidez da sua consciência… Existe uma continuidade perfeita entre este cintilar e a Grande Luz do Mundo Infinito e, assim que esta continuidade for apreendida, a nossa consciência pode (através da oração) emanar e estender-se como que até ao Infinito e tornar-se Una com Ele, de modo que o homem passa a compreender que o Infinito Apenas é, e que ele, o humanamente consciente, existe apenas como um véu. Compreendido este estado, todas as Luzes da Vida Infinita podem penetrar a alma do sufi, e podem fazê-lo participar na Vida Divina, de forma que ele tem direito de exclamar: “Eu sou Alá”. A invocação do nome Allâh é como que um intermediário que avança e recua entre o cintilar da consciência e os esplendores ofuscantes do Infinito, afirmando a continuidade entre eles e tecendo-os cada vez mais próximos, em comunicação, até que são “unidos em identidade”.

[Tradução de um ensinamento oral transcrito na obra de Martin Lings A Sufi Saint of the Twentith Century: Shaikh Ahmad Al-Álawî: his spiritual heritage and legacy”]