domingo, 28 de março de 2010

Palavras Trovão

A ideia de que o homem não se pode erguer acima de toda a subjectividade humana é a mais infundamentada e contraditória das hipóteses: quem define então o que é esta “subjectividade humana”? Se é a própria subjectividade humana que o faz, então não existe qualquer conhecimento objectivo e, assim, nenhuma definição é possível; se é outra coisa diferente desta subjectividade que o faz, então está obviamente errado dizer que o homem não se pode erguer acima dela.

Frithjof SchuonSpiritual Perspectives & Human Facts

terça-feira, 23 de março de 2010

Revista Sabedoria Perene - Número 2


Editorial

Introduções

Breve introdução à “doutrina tradicional da arte”Timothy Scott
Em cada homem um artistaBrian Kebble
A ordem cultural: arte e literaturaAgustín López Tobajas

Doutrina tradicional da arte

Uma figura de linguagem ou uma figura de pensamento?Ananda K. Coomaraswamy
Princípios e critérios da arte universalFrithjof Schuon
A universalidade da arte sagradaTitus Burckhardt
A iniciação e os ofíciosRené Guénon

Exposição tradicional da arte

A porta RealTitus Burckhardt
A dança de ShivaAnanda K. Coomaraswamy
Mensagem da arte indumentária pele-vermelhaFrithjof Schuon
O impacto total da arte: os fundamentos espirituais do teatro de ShakespeareMateus Soares de Azevedo
O vórtice de TomarDalila L. Pereira da Costa

In memoriam

Titus Burckhardt e a escola perenialistaWilliam Stoddart

Fragmentos de espiritualidade

Fontes dos textos

Breves notas sobre os autores
_____________________

Revista Sabedoria Perene - Número 2

É com enorme satisfação que anunciamos a disponibilidade do segundo número da revista Sabedoria Perene.

O texto publicado de seguida é o editorial deste segundo número que pode ser obtido aqui.

EDITORIAL

Após a publicação do primeiro número desta revista dedicada ao estudo das doutrinas tradicionais e da Sophia Perennis e de nele termos exposto os significados dos termos “tradição” e “sabedoria perene”, na acepção que lhes é unanimemente conferida pelos muitos autores pertencentes à corrente de pensamento “tradicionalista” ou “perenialista”, e de termos constatado uma receptividade àquele primeiro número que ultrapassou as nossas melhores expectativas iniciais, é com enorme alegria e reforçado encorajamento que cumprimos neste segundo número o objectivo a que nos propusemos então – dar continuidade a este projecto de divulgação desta corrente de pensamento e, designadamente, disponibilizar desde já uma selecção de textos em língua portuguesa que versam sobre a temática da arte.

O leitor do primeiro número estará certamente ciente do sentido particular que aqui é dado à palavra “tradição”, o qual está em certa medida relacionado com a continuidade e a projecção em todos os aspectos da vida humana daquilo que é originalmente dado a conhecer ao homem dos vários contextos civilizacionais, em diferentes épocas e lugares, através das revelações religiosas ou sagradas. Inevitavelmente, a tradição entendida neste sentido particular deverá incluir os princípios espirituais e os valores subjacentes aos vários elementos que caracterizam uma determinada civilização. Entre estes elementos, a par com outros que esperamos abordar em números futuros, está o foco deste segundo número da Sabedoria Perene – a arte.

A arte, entendida neste contexto, pode ser abordada segundo aquele método científico que Platão utilizou, e que é em certa medida o mesmo da ciência medieval, e o mesmo que utilizam aqueles que nos dias de hoje valorizam e fazem eco do legado desta ciência antiga – ciência esta que não é mais do que a formulação da sabedoria perene em termos temporais, – reavivada por renomeadas personagens no campo das artes, tais como Ananda Kentish Coomaraswamy ou Titus Burckhardt, bem como por gigantes do pensamento tradicionalista ou perenialista dos nossos tempos, tais como os incontornáveis René Guénon e Frithjof Schuon. Importará esclarecer que a ciência aqui mencionada é aquela ciência “incriada” que se preocupa menos com a questão de conhecer muitas coisas do que com a perspectiva de ter uma visão “integral” da existência. “O seu método”, como escreve Burckhardt, “foi concebido para tudo menos para a investigação do mundo material e para o avanço da tecnologia. Ao contrário: (…) [esta ciência possui] os meios para abrir o olho espiritual à beleza das proporções matemáticas, e o ouvido espiritual à música das esferas.” A preocupação imediata desta ciência não é “um interesse antiquado, ultrapassado por algo mais sábio, mais abrangente, mais efectivo na sua habilidade para explicar quais as necessidades espirituais e práticas do homem, e como elas podem ser alcançadas”, conforme refere Brian Keeble, mas sim “um repositório vivo de sabedoria, que pode desafiar e demonstrar, de forma efectiva, o quanto inadequado é o que a substituiu.”

Quando exibida à luz dos holofotes desta ciência, a arte mostra-se em todo o seu esplendor e desempenha um papel vital para a existência espiritual do homem. A este respeito, fiquemos com as sábias palavras de Frithjof Schuon: “Poderíamos dizer que, depois da moral, a arte – no sentido mais amplo do termo – é uma dimensão natural e necessária da condição humana. Platão disse: ‘A beleza é o esplendor do verdadeiro.’ Digamos então que a arte, incluindo o artesanato, é uma projecção da verdade e da beleza no mundo das formas; ela é ‘ipso facto’ uma projecção de arquétipos. E é essencialmente uma exteriorização com vista a uma interiorização. Arte não significa dispersão, significa concentração, um caminho de volta a Deus. Toda a civilização tradicional criou um arcabouço de beleza; um meio circundante natural, ecologicamente necessário para a vida espiritual.” E, fazendo novamente uso das palavras de Burckhardt, as quais reiteram as de Schuon, “A arte esclarece o mundo; ajuda o espírito a desprender-se da perturbante multiplicidade de coisas, para que possa ascender em direcção à Unidade Divina.” Ainda no que respeita ao fim espiritual das artes, aquilo que Platão diz é que estamos dotados pelos deuses com a visão e a audição, e que a harmonia, à semelhança do ritmo, “foi dada pela Musas àquele que consegue fazer uso delas intelectualmente e não, tal como se supõe nos dias de hoje, como um auxílio ao prazer irracional.” Não deixa de ser relevante constatar que, já no seu tempo, Platão tenha pressentido que até o que eram originalmente imitações da realidade das coisas, não da aparência, se tornavam meras “formas de arte, cada vez mais esvaziadas de significação no seu percurso descendente até nós.” Não admira pois que Platão prescrevesse para a sua Cidade de Deus artes que, como ele dizia, “cuidarão dos corpos e das almas dos vossos cidadãos.” E se desta pequena resenha de citações, as quais poderão ser encontradas ao longo destas páginas, subsistir ainda a dúvida sobre se, segundo a perspectiva tradicionalista ou perenialista, existe espaço para aceitar aquele tipo de julgamento das obras de arte que se baseia no prazer que elas comportam, recorremos por fim às palavras de Sócrates, não totalmente desprovidas de humor: Não, “nem que todos os bois e cavalos e animais do mundo, em nome da perseguição do prazer, proclamem que tal é o critério.”

Poderá o leitor questionar-se sobre o porquê da necessidade de sistematizar e formular tão insistentemente este tipo de abordagem à arte. Ora, é verdade que isto nunca foi necessário durante todos os séculos em que a arte verdadeira era praticada pela maioria dos homens e mulheres. É contudo também verdade que, num tempo em que a concepção tradicional da arte já não é exercitada de forma generalizada, e num tempo em que parece predominar a confusão “artística” que a substituiu, este trabalho se tornou imperativo. Os artigos reunidos neste segundo número da Sabedoria Perene, não esgotando certamente tudo o que haveria a dizer ou escrever sobre a concepção tradicional da arte, constituem por si só um corpo de esclarecimento fundamental e contêm indicações e referências que poderão ser exploradas pelo leitor seriamente interessado nesta forma tão fulgurante de expressar a Verdade – a da arte verdadeira.

Passando ao conteúdo propriamente dito, o leitor encontrará desde logo três blocos de textos que visam, respectivamente, “introduzir”, “formular” e “expor” a arte tradicional. O primeiro destes três blocos inclui um trio de textos introdutórios, onde nos animamos com o estimado contributo de Pedro Sinde e Lídia Bom.

Este primeiro bloco prepara o encontro com o segundo bloco de textos, onde constam dois dos mais importantes e profundos ensaios contemporâneos de doutrina tradicional da arte, um deles o famoso “Uma figura de linguagem ou uma figura de pensamento?” da autoria de Ananda Kentish Coomaraswamy, e o outro o contundente “Princípios e critérios da arte universal” de Frithjof Schuon, ensaios cujo conteúdo, conforme diria o próprio Coomaraswamy, “pode ser ignorado mas (…) não pode ser refutado.” É também neste segundo bloco que se incluem dois apontamentos doutrinais sobre “A universalidade da arte sagrada”, de Titus Burckhardt, e sobre “A iniciação e os ofícios”, de René Guénon.

No terceiro bloco de textos, poder-se-á intuir a unidade transcendente de artes aparentemente tão díspares como, por exemplo, a da construção das catedrais e dos templos da religiosidade europeia, a da dança tradicional oriental, ou a da manufactura das roupas dos índios americanos. Na realidade, à luz daquela ciência “incriada” a que aludimos anteriormente, deslumbra-se o reflexo dourado, contínuo, inquebrável, que se mostra ora no fio de prumo com que o pedreiro trabalha a jamba da porta da catedral de Chartres, ora no fio sagrado que adorna a dança de Shiva, ora na linha com que os índios americanos cosem a sua roupa, ora no pano que descobre os palcos onde se desenrolam as peças de Shakespeare, ora ainda nas cordas das caravelas que se avistam na janela manuelina do Convento de Cristo em Tomar. Assim, é neste bloco de exposição tradicional da arte que se encontra a majestosa expressão de doutrina cristã contida no muito aclamado “A Porta Real” de T. Burckhardt; o belíssimo “A dança de Shiva” de A. K. Coomaraswamy, assinalado pelo prezado contributo de Noémia Silva, e a “Mensagem da arte indumentária pele‐vermelha”, traduzida por Mateus Soares de Azevedo, veiculada num capítulo do livro Ter um Centro, de Frithjof Schuon, cuja muito esperada publicação pela editoria Sapientia se prevê para o segundo semestre deste ano. É também neste terceiro bloco de textos que, com outro importante contributo de Mateus Soares de Azevedo, repetimos o feito de publicar artigos originalmente escritos em português, nomeadamente “O impacto total da arte: os fundamentos espirituais do teatro de Shakespeare”. A rematar este terceiro bloco, “O vórtice de Tomar” reúne palavras escritas pelas portuguesíssimas mãos de Dalila Pereira da Costa, seleccionadas pelo nosso editor Miguel Conceição.

Na rubrica “in memoriam” deste segundo número da Sabedoria Perene, o artigo “Titus Burckhardt e a escola perenialista” encerra o ciclo de homenagem às duplas de originadores (René Guénon e Frithjof Schuon) e de imediatos prossecutores (Ananda Coomaraswamy e Titus Burckhardt) desta escola de pensamento que nos propomos dar a conhecer, de forma explícita, aos leitores da língua portuguesa. Este notável tributo a Titus Burckhardt – e à escola de pensamento que este autor ajudou a consolidar através das suas reflexões sobre a arte sagrada, sobre as fés e sobre as civilizações, – é da autoria do também muito notável William Stoddart, justamente considerado uma das figuras contemporâneas mais importantes no campo da filosofia perene. A tradução deste artigo é ainda um marco de colaboração transatlântica, que não podemos deixar passar sem um reconhecido agradecimento ao Alberto Vasconcelos Queiroz, responsável por grande parte do trabalho de tradução do texto incluído nesta rubrica. Esta rubrica prosseguirá, em números futuros, com o intuito de homenagear outros autores importantes desta escola de sabedoria, tais como Martin Lings, Marco Pallis, Whitall Perry e outros.

No último bloco deste número, recorremos novamente à rubrica “fragmentos de espiritualidade” e oferecemos ao leitor mais algumas palavras de pura sabedoria espiritual das várias tradições da humanidade, desta vez centradas no tema a que se dedica este volume – a arte.

Antes de entregar ao leitor mais um número desta revista, e inspirados nas palavras de Ananda Kentish Coomaraswamy, que nos esclarece que “todas as artes, sem excepção, são imitativas”, que “a obra de arte apenas pode ser julgada como tal (e independentemente do seu ‘valor’) pelo grau em que o modelo tenha sido correctamente representado” e ainda que “a beleza da obra é proporcional à sua precisão (integritas sive perfectio), ou verdade (veritas)”, importa recuperar as nossas palavras do primeiro número e reiterar que, com os textos aqui apresentados, pretendemos sobretudo “imitar”, o mais fielmente possível, o modelo da sabedoria intemporal – o modelo da Sabedoria Perene.

Nuno M. Almeida
Alvor, 10 de Março de 2010

quarta-feira, 17 de março de 2010

Anúncio - Revista Sabedoria Perene 2

Estando cada vez mais próxima a publicação do segundo número da Revista Sabedoria Perene, é agora o momento de revelar o conteúdo completo deste número integralmente dedicado à arte. Espero que o mesmo faça crescer a expectativa dos nossos leitores que, no entanto, não terão de esperar muito mais para poderem ler todos os textos que assinalam o concluir de mais um ciclo do trabalho a que nos vimos a dedicar desde o ano de 2007, o qual nos tem presenteado com muitos e saborosos frutos. O nosso desejo é que esses frutos possam ser colhidos por todos aqueles que buscam a Verdade.



Editorial

Introduções
Breve introdução à “doutrina tradicional da arte” – Timothy Scott
Em cada homem um artista – Brian Kebble
A ordem cultural: arte e literatura – Agustín López Tobajas

Doutrina tradicional da arte
Uma figura de linguagem ou uma figura de pensamento? – Ananda K. Coomaraswamy
Princípios e critérios da arte universal – Frithjof Schuon
A universalidade da arte sagrada – Titus Burckhardt
A iniciação e os ofícios – René Guénon

Exposição tradicional da arte
A porta Real – Titus Burckhardt
A dança de Shiva – Ananda K. Coomaraswamy
Mensagem da arte indumentária pele-vermelha – Frithjof Schuon
O impacto total da arte: os fundamentos espirituais do teatro de Shakespeare – Mateus Soares de Azevedo
O vórtice de Tomar – Dalila L. Pereira da Costa

In memoriam
Titus Burckhardt e a escola perenialista – William Stoddart

quinta-feira, 11 de março de 2010

A Dança de Shiva

Com os seguintes trechos, extraídos do belíssimo texto de Ananda Coomaraswamy, "A Dança de Shiva", conclui-se a apresentação do segundo número da revista Sabedoria Perene. O texto completo será incluído nesta revista, que está na forja.



(...) Esta é a Sua dança. O seu significado mais profundo é sentido quando nos apercebemos que tem o seu lugar no coração e em nós próprios. Deus está em toda a parte; toda a parte é o coração. Assim, encontramos também num outro verso:

O pé que dança, o som do tilintar das campainhas,
As canções que são cantadas e os passos variados,
A forma assumida pelo nosso Gurupara Dançante –
Descobre isto dentro de ti, e então as tuas amarras desaparecerão.

Para este fim, tudo excepto o pensamento de Deus deve ser banido do coração, para que somente Ele habite e dance no seu interior. Na Unmai Vilakkam, encontramos:

Os sábios silenciosos, destruído o triplo laço, estão estabelecidos onde eles próprios são destruídos. Lá eles vêem o sagrado e estão preenchidos com beatitude. Esta é a dança do Senhor da assembleia, “cuja forma é a Graça.

Com esta referência aos ‘sábios silenciosos’, comparemos as bonitas palavras de Tirumûlar:

Quando aí repousam, eles (os Yogis que atingem o mais alto cume da paz) perdem-se de si próprios e tornam-se inactivos… Onde os inactivos residem é o puro Espaço. Onde os inactivos se movimentam é a Luz. O que os inactivos sabem é o Vedânta. O que os inactivos encontram é o sono profundo em que estão imersos.”

Shiva é um destruidor e adora os locais da cremação. Mas o que é que Ele destrói? Não apenas os céus e a terra no fechar de cada ciclo do mundo, mas os grilhões que amarram cada alma individual. Onde e o que é o campo da cremação? Não é o local onde os nossos corpos terrenos são cremados, mas os corações dos Seus amantes, depostos, desperdiçados e desolados. O local onde o ego é destruído significa o estado onde a ilusão e as acções são incineradas: isto é o crematório, o campo da cremação onde Sri Natarâja dança, e daí Ele é chamado Sudalaiyâdi, Dançarino dos campos crematórios. Nesta semelhança, reconhecemos a conexão histórica entre a dança graciosa de Shiva enquanto Natarâja, e a sua dança selvagem como demónio dos cemitérios.

Esta concepção é corrente igualmente entre Sâktas, especialmente em Bengal, onde o aspecto de Mãe de Shiva, em vez do aspecto de Pai, é adorado. A dançarina aqui é Kali, para cuja entrada o coração tem que ser purificado pelo fogo, esvaziado pela renúncia. Uma prece num Hino Bengal a Kali, diz o seguinte:

Porque Tu adoras o Campo da cremação,
Eu fiz um do meu coração,
Para que Tu, a Negra, do campo da cremação a caçadora,
Possas dançar a Tua dança eterna.
Nada mais está no meu coração, ó Mãe;
Dia e noite resplandece a pira funerária;
As cinzas dos mortos, por todo o lado espalhadas,
Eu preservei contra a Tua chegada,
Com a Mahakala, conquistadora da morte, sob os teus pés
Entrarás tu, dançando a Tua dança rítmica,
Para que eu Vos possa ver com os olhos fechados.

(...) Na noite de Brahmâ, a Natureza é inerte, e não pode dançar até que Shiva o deseje: Ele emerge do Seu êxtase e, dançando, envia através da matéria inerte ondas pulsantes de som despertador, e oh! A matéria também dança e surge como um círculo de glória à Sua volta. Dançando, Ele sustém os seus variados fenómenos. Na totalidade do tempo, ainda dançando, Ele destrói todas as formas e nomes pelo fogo, e dá um novo descanso. Isto é poesia; mas, no entanto, ciência.

Não é estranho que a figura de Natarâja tenha dominado a adoração de tantas gerações passadas: familiar com todos os cepticismos, perito em revelar todas as crenças a partir das superstições primitivas, exploradores do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, nós continuamos ainda adoradores de Natarâja.

terça-feira, 9 de março de 2010

Princípios e critérios da arte universal

Estamos mesmo na recta final de preparação do próximo número do Sabedoria Perene, o qual será anunciado muito em breve. Contudo, ainda vamos apresentar alguns trechos de dois dos trabalhos que serão incluídos neste segundo número. Os primeiros, apresentados de seguida, são extraídos de um importante texto de Frithjof Schuon “Princípios e critérios da arte tradicional”, publicado na sua obra Castes et Races. Estas selecções ilustram bem uma das faces que terá este número, a face da dura e rigorosa crítica do modo como é hoje entendida a arte.


(..) Contam que Til Ulespiege, contratado como pintor na corte de um príncipe, apresentou à concorrência uma tela em branco manifestando: “Quem não é filho de pais decentes nada verá nesta tela.” Pois bem, nenhum dos senhores reunidos quis reconhecer que não via nada: cada um pretendendo admirar a tela branca. Tempos houveram em que esta história poderia passar por brincadeira; ninguém se atreveria a prever que um dia entraria nos costumes do “mundo civilizado”. Nos nossos dias, qualquer um pode mostrar-nos qualquer coisa em nome da “arte pela arte”, e se protestamos em nome da verdade e da inteligência, é nos respondido que não entendemos nada, como se tivéssemos uma misteriosa lacuna que nos impedia de compreender, não a arte chinesa ou azeteca, mas sim o mamarracho sem valor de um europeu que vive ao nosso lado. Segundo um abuso de linguagem amplamente agravado nos nossos dias, “compreender” significa “aceitar”; recusar é não compreender; como se não fosse possível recusar algo precisamente por a compreender ou, pelo contrário, que se aceite algo porque não se a compreende.

E isto permite-nos manifestar um duplo erro fundamental sem o qual as pretensões dos supostos artistas seriam inconcebíveis, a saber: que uma originalidade contrária às normas colectivas hereditárias seja psicologicamente possível fora dos casos de alienação mental, e que um homem possa produzir uma verdadeira obra de arte que não seja compreendida em nenhum grau, por numerosos homens inteligentes e cultos que pertencem à mesma civilização, à mesma raça e à mesma época que o suposto artista. Na realidade, as premissas de tal originalidade ou singularidade não existem na alma humana normal, nem, com maior razão, na inteligência pura; as singularidades modernas, longe de derivar de algum “mistério” de criação artística, não são mais que erro filosófico e deformação mental. Cada um crê-se obrigado a ser um grande homem; a novidade é tomada por originalidade, a introspecção mórbida por profundidade, o cinismo por sinceridade, a pretensão por génio, de tal modo que se acaba por tomar a pintura por um esquema de anatomia ou uma pele de zebra; faz-se da “sinceridade” um critério absoluto, como se uma obra não pudesse ser psicologicamente “sincera” mas espiritualmente falsa ou artisticamente nula. O grande erro desses artistas é ignorarem deliberadamente o valor objectivo e qualitativo das formas e das cores e crerem-se a coberto de um subjectivismo que estimam interessante e impenetrável, quando não é mais do que trivial e ridículo; o seu próprio erro os obriga a recorrer, no mundo das formas, às possibilidades mais inferiores, como Satanás, que querendo ser tão “original” como Deus, não tinha outra opção senão o horror. De um modo geral, o cinismo parece desempenhar um papel importante em certo moralismo ateu: a virtude não é dominar-se e calar-se, mas sim deixar-se levar e divulgá-lo aos quatro ventos; qualquer pecado é bom desde que se o proclame com brutalidade; a luta silenciosa é “hipocrisia”, visto que se oculta algo. Na mesma ordem de ideias, crê-se como “sincero” e “realista” o descobrir cinicamente o que a natureza dissimula, como se esta actuasse sem razão suficiente.

(...) É significativo, nesta ordem de ideias, que se exalte com facilidade um suposto artista “porque expressa o seu tempo”, como se uma época em si mesma – algo, pois, que pode ser qualquer coisa – tivesse direitos sobre a verdade; se o que “expressa” um surrealismo correspondesse realmente ao nosso tempo, tal expressão não provaria senão uma coisa: que este tempo não vale a pena que se expresse; mas a nossa época, felizmente, contém todavia algo mais do que o surrealismo. Seja como for, pretender que uma obra é boa porque “expressa o nosso tempo”, equivale a afirmar que um fenómeno é bom pela simples razão de expressar algo: assim, um crime é bom porque expressa uma inclinação criminosa, um erro é bom porque expressa uma carência de conhecimento, e assim com tudo. O que os defensores das tendências surrealistas se esquecem ou ignoram antes de tudo, é que as formas, sejam pictóricas, esculturais, arquitectónicas ou outras, dependem de uma hierarquia cósmica de valores e traduzem, quer sejam verdades, quer sejam erros, de modo a que não haja aqui nenhum lugar para a aventura; a eficácia psicológica das formas, tão benfeitora enquanto estas são verdadeiras, torna-as, pelo contrário, terríveis, quando são falsas.

Com o objectivo de dar a ilusão de objectividade ao deslizamento subjectivo, são projectadas qualidades imaginárias – e propriamente “histéricas” – nas futilidades mais insignificantes: discute-se sobre matizes de “contraste” e “equilíbrio” – como se estes não existissem em qualquer parte, – e fazendo-o, eventualmente, espezinhando tapetes anónimos que são obras-primas de arte abstracta. Quando qualquer coisa pode ser arte, qualquer um é artista, e as palavras “arte” e “artista” já não têm qualquer sentido; é verdade que existe uma perversão da sensibilidade e da inteligência que, nas extravagâncias mais gratuitas, descobre novas dimensões, e inclusivamente “dramas”, mas o homem de espírito são não tem, na verdade, de se preocupar com isso. O erro dos surrealistas é crer que a profundidade está na direcção do individual, que este, e não o universal, é o que é misterioso, e que este mistério é acrescentado à medida que se afundam no obscuro e no mórbido; este é um mistério invertido e, por isso, satânico; ao mesmo tempo, é uma falsificação da “originalidade” – ou unicidade – de Deus. Mas o erro também está noutro lado, oposto em aparência: a arte converte-se numa “técnica” sem inspiração, a obra já não é mais do que uma “construção”; já não se tratam de resíduos do subconsciente, mas unicamente de razão e cálculo, os quais, pelo demais, não exclui de modo algum as interferências do irracional, do mesmo modo que o surrealismo intuitivo está muito longe de excluir os procedimentos artificiais. As afectações “sinceristas” de simplicidade não saem deste quadro, pois a compressão brutal e o idiotismo nada têm que ver com a simplicidade das coisas primordiais.

Tudo quanto acabámos de dizer aplica-se também, de uma maneira ou de outra, à poesia e à música: também aqui, alguns atribuem-se o direito de se denominarem “realistas” ou “sinceros” o que, segundo parece, “expressa o nosso tempo”, enquanto que a “realidade” a que se referem não é mais do que um mundo factício do qual já não se pode escapar: erigindo-se em virtude esta incapacidade, qualifica-se, com desdém, de “romantismo” ou “nostalgia” a necessidade inata de harmonia, que é própria ao homem natural. A música ultramoderna – por exemplo, a “electrónica” – está fundada no menosprezo de tudo quanto entra na própria definição de música, o mesmo se verificando no caso, mutatis mutandis, da arte poética; já não é mais do que um sistema – miseravelmente fabricado – de ruídos que violam o princípio da razão suficiente. Não há nenhuma justificação possível para essa mania pueril de “fazer tábua rasa” com séculos ou milénios, “regressar à estaca zero”, inventar novos princípios, novas bases, novas estruturas, pois tal invenção não só é insensata, como é também incompatível com a sinceridade criadora; dito de outro modo, há coisas que se excluem: não se pode fazer brotar do coração uma poesia enquanto se inventa completamente a língua em que esta se expressa. O ponto de partida é aqui, como nas artes visuais, a crença numa originalidade quase absoluta, isto é, em algo que não responde a nenhuma possibilidade positiva, não podendo modificar-se até aos fundamentos o sentido musical de uma colectividade social ou tradicional;31 pretende-se “libertar” a música de determinados “preconceitos”, “convenções” ou “opressões”, mas na realidade ela liberta-se da sua própria natureza, como se “libertou” a pintura da pintura; o surrealismo “libertou” a arte da arte, como se “liberta” a vida de um corpo, matando-o.

segunda-feira, 1 de março de 2010

A Porta Real

O texto abaixo apresentado é uma reprodução parcial da versão integral e ilustrada que constará no próximo número da Revista Sabedoria Perene, o qual se prevê para muito breve. A tradução apresentada baseia-se na tradução inglesa de William Stoddart deste "The Royal Door" de Titus Burckardt.


* * *




Foi construída, entre os anos 1140 e 1150, a passagem tripartida na frente ocidental da catedral de Chartres. Esta sempre foi chamada de Porta Real, porque as figuras erectas nas jambas em parte representam reis e rainhas do Antigo Testamento.


O estilo desta porta é ainda romanesco no seu equilíbrio repousado e, contudo, é já gótico na medida em que o repouso das suas partes já não descarrega para a terra, mas para cima, como se essas partes subissem ao alto à semelhança de chamas imóveis a arder. As formas ainda são austeras e encerradas em si próprias; entregam-se tão pouco à luz incerta que muda constantemente do amanhecer ao anoitecer, como aos movimentos incertos da alma humana. Áreas claras e escuras são criadas por superfícies lisas e ásperas (elas próprias caneladas, entalhadas ou quebradas por ornamentos), com um efeito algo semelhante a cores, e na realidade, a dada altura, estiveram de facto revestidas com ouro e com outras cores. O revestimento original já desapareceu, mas um ainda subsistente esmalte – uma leve e melódica suavidade a encerrar a crueza da pedra – cobre as superfícies e as articulações.


Do ponto de vista do seu significado mais profundo, as imagens da triplicada Porta Real representam a mais completa expressão de doutrina que alguma vez foi incorporada nas paredes e nos apoios de uma passagem. Cristo aparece três vezes, cada vez no meio de um tímpano: por cima da entrada do lado direito, vemo-lo recentemente descido à terra, sentado no regaço de Sua Mãe entronizada; por cima da entrada do lado esquerdo, Ele ascende ao Céu, rodeado por anjos; e no tímpano central, Ele revela-se a Si mesmo na Sua eterna majestade. A Natividade parece indicar a natureza humana de Cristo, e a Ascensão a Sua natureza Divina; mas a referência imediata é simplesmente à Sua vinda e ida, ao facto de que Ele é o alfa e o ómega da existência terrena, dois extremos entre os quais permanece Sua eterna majestade, tal como o momento presente entre ontem e amanhã. Estes são os três diferentes significados da Porta – a Porta que é Cristo Ele mesmo.

A parte inferior da passagem integral representa a terra, e a parte superior o Céu. Assim é porquanto as figuras nas jambas da porta, ainda que os seus nomes sejam desconhecidos, são certamente representantes do Antigo Testamento, e os antepassados terrestres da Encarnação Divina. À semelhança da Encarnação, eles suportam o Céu dos tímpanos. Entre estes domínios inferior e superior, e interrompido apenas pelas próprias portas de entrada, percorre a delicada fiada de capitéis, nos quais todos os principais incidentes na vida de Cristo são sucessivamente retratados: é como a linha de demarcação entre dois mundos.


Que as figuras nas jambas pareçam tão altas e delgadas significa que elas próprios são os “pilares da igreja”, às quais S. Paulo se refere nas Escrituras. Durand de Mende escreve: “Os pilares da Igreja são os bispos e os doutos eclesiásticos que mantêm a Igreja erecta (…)”. Estritamente falando, as jambas e as figuras com elas associadas representam uma espécie de ante-câmara, precisamente como faz o Antigo Testamento em relação ao Novo. Numa porta de passagem semelhante, em Le Mans, esta divisão entre ante-câmara e corpo principal da igreja é clara: os pilares da parede frontal estão todos decorados com personalidades do Antigo Testamento, enquanto as jambas propriamente ditas estão decoradas com estátuas dos Apóstolos. Apenas os últimos pertencem ao “corpo” da Igreja.


(...)

O homem medieval mantinha sempre a ordem mais profunda das coisas em mente.


O tímpano da porta central é mais largo e mais alto do que os do lado direito e do lado esquerdo e tem apenas duas zonas, enquanto os das portas laterais têm três. No tímpano do lado direito, as imagens sucessivas da mãe humana, da apresentação sacrificial no templo, e da Rainha Celeste, estão posicionadas cada qual em cima da outra; no tímpano do lado esquerdo, onde Cristo ascende, uma hoste de anjos, à semelhança de múltiplos relâmpagos saídos de uma nuvem tempestuosa, descendem sobre os discípulos reunidos abaixo.


No tímpano da porta principal, a imagem da eterna majestade de Cristo, a qual foi retratada em tantas portas de igrejas Romanescas, encontra a sua mais harmoniosa representação. É possível inscrever todas as figuras geométricas neste tímpano; será sempre em consonância com a ordenação das cinco figuras e com a onda de movimentos que saem para fora da figura central e que regressam a ela. Entre a curva das arquivoltas e a auréola em forma de amêndoa que envolve Cristo – estas formas que separam e reúnem – um fôlego ou respiração avança e recua, dando à imagem integral a sua vida.

Cristo está rodeado pelas quatro criaturas descritas por Ezequiel e João: o leão, o touro, a águia e o homem alado. Estes são interpretados como os protótipos eternos dos quatro evangelistas e a sua fantástica forma animal serve para elevar a representação antropomórfica da Divindade no seu meio a um nível supra-humano.

Na arquivolta mais interna das três, anjos rodeiam a majestade de Cristo, e os vinte e quatro anciãos do Apocalipse, que aparecem nas duas arquivoltas exteriores, erguem os olhos para Ele. No lintel, os doze apóstolos apresentam-se em grupos de três, e à sua direita e esquerda estão duas testemunhas proféticas, talvez Elias e Henoc, que estão para regressar no fim do tempo.


Porque é que o nascimento de Cristo está retratado sobre a entrada do lado direito, que fica a sul do eixo principal da igreja, e a ascensão de Cristo sobre a entrada do lado esquerdo, a norte do eixo principal, dado que o norte e o sul, segundo a interpretação litúrgica, correspondem respectivamente ao Antigo e ao Novo Testamento? Presumivelmente a posição física das portas encerra uma alusão ao antigo símbolo cósmico da januae coeli, as duas portas dos céus, conhecidas para o período Romano tardio. O Céu tem duas portas, nomeadamente os dois solstícios; através da “porta do Inverno”, o “novo sol” entra no mundo, e através da “porta do Verão”, a plenitude da luz deixa o mundo. Segundo uma visão antiga das coisas, mencionada por Platão, os deuses entram neste mundo pela primeira porta, e saem dele pela segunda. A localização do solstício de Inverno, que ocorre durante a época de Natal, fica nos céus do sul, e a localização do solstício de Verão nos do norte; pareceria que a ordem representativa na porta ocidental da Catedral de Chartres é uma referência directa a isto: através da porta a sul a Luz Divina descende ao mundo; pela do norte regressa ao invisível. Entre os dois portões do Céu permanece o eixo imutável do mundo; a isto corresponde a porta central.


(...)


Na ciência medieval, é menos uma questão de conhecer muitas coisas, do que de ter uma visão “integral” da existência. O seu método foi concebido para tudo menos para a investigação do mundo material e para o avanço da tecnologia. Ao contrário: possuía os meios para abrir o olho espiritual à beleza das proporções matemáticas, e o ouvido espiritual à música das esferas.



Quando hoje dizemos “forma”, referimo-nos apenas aos aspectos visíveis e mensuráveis das coisas, especialmente aos seus contornos espaciais. Para os mestres medievais, por outro lado – para os académicos e, num certo sentido, também para os artistas – “forma” era o somatório das propriedades ou qualidades essenciais de uma coisa; era o que constituía a unidade interior do objecto manifestado. “As formas das coisas,” escreve Thierry de Chartres, “estão, fora e para além da matéria, contidas no Espírito Divino. Aí, na sua plenitude simples e imutável, existe a verdadeira forma. Mas aquelas que, de uma certa e não totalmente explicável maneira, estão impregnadas na matéria, são por assim dizer efémeras e não são formas no verdadeiro sentido. Elas são apenas algo semelhante a reflexos ou representações de verdadeiras formas.”


Por conseguinte, a verdadeira forma não é nem limitável nem mutável; é antes como um raio do Espírito criativo que, descendendo na matéria, empresta-lhe forma passageiramente. Uma analogia para isto é a criação artística: assim como o artista pode mais ou menos completamente, dependendo da sua humildade, imprimir num material a imagem espiritual que carrega dentro de si, também a essência de uma coisa se pode manifestar mais ou menos perfeitamente nessa coisa particular.


Esta forma de olhar para as coisas é geralmente chamada de platónica, e por isso os homens que ensinavam em Chartres no início do século XII – tais como Bernard, Gilbert de la Porée, Guilherme de Conques, e Thierry (que, exactamente na altura em que a Porta Real estava a ser construída, era chanceler da escola da catedral) – eram todos platonistas. Seria contudo injusto atribuir simplesmente o seu pensamento a uma escola filosófica; nos seus trabalhos há um elemento que transcende o pensamento como tal, há nomeadamente uma contemplação espiritual genuína que, apesar de estar longe de depender de palavras, tem todavia que fazer uso delas para se comunicar a si mesma.


De acordo com o ponto de vista platónico, toda a existência emana hierarquicamente da Fonte Divina una, que não é nem diminuída nem alterada por esse facto. Pode esta perspectiva ser reconciliada com a história da criação relatada na Bíblia? Existe de facto uma contradição entre encarar uma luz que brilha porque está na sua natureza brilhar (e que não se consegue conceber de mais nenhum modo do que a brilhar), e encarar um acto criador que, num determinado momento, chama à existência algo que não estava lá previamente. Os mestres de Chartres perguntaram-se a eles mesmos esta questão e também responderam a ela. Quando, com Guilherme de Conques, se olha para o tempo ele mesmo como algo criado, a aparente contradição desaparece. Antes da criação do mundo, Deus não estava no tempo: ele estava na Eternidade, que fica para além de todo o tempo, no eterno Agora. Não se pode dizer que Deus criou o mundo num dado tempo, pois o tempo ele mesmo começou com o mundo; do ponto de vista deste mundo, a existência (que brilha ou irradia para diante a partir de Deus) aparece como se tivesse começado no tempo. Numa tal ponte de ligação de duas imagens aparentemente incompatíveis, pode-se ver o carácter mais do que meramente mental da contemplação espiritual.


A arte da Porta Real, na sua inimitável e inultrapassável reconciliação de distância estelar e proximidade viva, é nascida do mesmo espírito.