quinta-feira, 11 de março de 2010

A Dança de Shiva

Com os seguintes trechos, extraídos do belíssimo texto de Ananda Coomaraswamy, "A Dança de Shiva", conclui-se a apresentação do segundo número da revista Sabedoria Perene. O texto completo será incluído nesta revista, que está na forja.



(...) Esta é a Sua dança. O seu significado mais profundo é sentido quando nos apercebemos que tem o seu lugar no coração e em nós próprios. Deus está em toda a parte; toda a parte é o coração. Assim, encontramos também num outro verso:

O pé que dança, o som do tilintar das campainhas,
As canções que são cantadas e os passos variados,
A forma assumida pelo nosso Gurupara Dançante –
Descobre isto dentro de ti, e então as tuas amarras desaparecerão.

Para este fim, tudo excepto o pensamento de Deus deve ser banido do coração, para que somente Ele habite e dance no seu interior. Na Unmai Vilakkam, encontramos:

Os sábios silenciosos, destruído o triplo laço, estão estabelecidos onde eles próprios são destruídos. Lá eles vêem o sagrado e estão preenchidos com beatitude. Esta é a dança do Senhor da assembleia, “cuja forma é a Graça.

Com esta referência aos ‘sábios silenciosos’, comparemos as bonitas palavras de Tirumûlar:

Quando aí repousam, eles (os Yogis que atingem o mais alto cume da paz) perdem-se de si próprios e tornam-se inactivos… Onde os inactivos residem é o puro Espaço. Onde os inactivos se movimentam é a Luz. O que os inactivos sabem é o Vedânta. O que os inactivos encontram é o sono profundo em que estão imersos.”

Shiva é um destruidor e adora os locais da cremação. Mas o que é que Ele destrói? Não apenas os céus e a terra no fechar de cada ciclo do mundo, mas os grilhões que amarram cada alma individual. Onde e o que é o campo da cremação? Não é o local onde os nossos corpos terrenos são cremados, mas os corações dos Seus amantes, depostos, desperdiçados e desolados. O local onde o ego é destruído significa o estado onde a ilusão e as acções são incineradas: isto é o crematório, o campo da cremação onde Sri Natarâja dança, e daí Ele é chamado Sudalaiyâdi, Dançarino dos campos crematórios. Nesta semelhança, reconhecemos a conexão histórica entre a dança graciosa de Shiva enquanto Natarâja, e a sua dança selvagem como demónio dos cemitérios.

Esta concepção é corrente igualmente entre Sâktas, especialmente em Bengal, onde o aspecto de Mãe de Shiva, em vez do aspecto de Pai, é adorado. A dançarina aqui é Kali, para cuja entrada o coração tem que ser purificado pelo fogo, esvaziado pela renúncia. Uma prece num Hino Bengal a Kali, diz o seguinte:

Porque Tu adoras o Campo da cremação,
Eu fiz um do meu coração,
Para que Tu, a Negra, do campo da cremação a caçadora,
Possas dançar a Tua dança eterna.
Nada mais está no meu coração, ó Mãe;
Dia e noite resplandece a pira funerária;
As cinzas dos mortos, por todo o lado espalhadas,
Eu preservei contra a Tua chegada,
Com a Mahakala, conquistadora da morte, sob os teus pés
Entrarás tu, dançando a Tua dança rítmica,
Para que eu Vos possa ver com os olhos fechados.

(...) Na noite de Brahmâ, a Natureza é inerte, e não pode dançar até que Shiva o deseje: Ele emerge do Seu êxtase e, dançando, envia através da matéria inerte ondas pulsantes de som despertador, e oh! A matéria também dança e surge como um círculo de glória à Sua volta. Dançando, Ele sustém os seus variados fenómenos. Na totalidade do tempo, ainda dançando, Ele destrói todas as formas e nomes pelo fogo, e dá um novo descanso. Isto é poesia; mas, no entanto, ciência.

Não é estranho que a figura de Natarâja tenha dominado a adoração de tantas gerações passadas: familiar com todos os cepticismos, perito em revelar todas as crenças a partir das superstições primitivas, exploradores do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, nós continuamos ainda adoradores de Natarâja.

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