terça-feira, 30 de novembro de 2010

Encontro Nacional Evoliano - 2010

Aqui fica a divulgação de um evento para os nossos estimados leitores do outro lado do Atlântico - o Encontro Nacional Evoliano. O evento decorrerá em João Pessoa, Paraíba, de 15 a 17 de Dezembro de 2010.



PROGRAMAÇÃO

Dia 15 de dezembro – Quarta-feira

19:00hs - Abertura e credenciamento

Palestra de apresentação: “Evola e a Tradição”

Dia 16 de dezembro – Quinta-feira

Palestra R. Daher

10:30 as 12:00hs - Comunicações

Palestra Luiz Pontual

14:00hs - “Evola, Guénon e a Tradição”

16:00hs - Debate: Evola e Guénon

17:00 lançamento de livros

1. Revolta Contra o Mundo Moderno – Julius Evola, 2010 – IRGET
2. Tradição Hermética – Julius Evola, 2010 – Ascese

Palestra Prof. Dr. Deyve Redson

19h00hs “Schopenhauer e o Pensamento Oriental”

Dia 17 de dezembro – Sexta-feira

Palestra Luiz Pontual 09:00

09:00hs - “Kon tan- A lanterna Cosmológica”

10:30hs - Debate

Palestra Prof. Mateus Azevedo 14:00

14:00hs - “A Filosofia Perene e os Luminares Espirituais do Século XX”.

16:00 hs - Mesa redonda: Filosofia Perene com Mateus Azevedo, Deyve Redson e outros

Lançamento de livros

1. FORMA & SUBSTÂNCIA NAS RELIGIÕES - DE FRITHJOF SCHUON (ED. SAPIENTIA, 2010)

2. OCULTISMO & RELIGIÃO: EM FREUD , jUNG E MIRCEA ELIADE - DE HARRY OLDMEADOW E MATEUS SOARES DE AZEVEDO (ED. IBRASA, 2010)

19h00hs - Debate e Plenária - Instituto Evola?

Sábado

Reunião Instituto Evola 09:00 as 10:30hs

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

A agricultura e o destino humano

O trecho abaixo apresentado constitui uma dupla estreia neste espaço de divulgação da escola de pensamento tradicionalista/perenialista. A do notável Lorth Northborne, autor do extraordinário A Agricultura e o destino humano, cuja versão final e integral constará no próximo número da Revista Sabedoria Perene, e também a do tradutor do respectivo artigo, Sandro Faria, a quem estamos muito gratos pelo importante contributo.

*

A Crosta desta terra experimenta periodicamente convulsões de várias naturezas e escalas. No decurso das maiores, continentes existentes são submersos e novos emergem. Entre convulsões, poderão existir idades de gelo e idades de chuva e de aquecimento que afectam a totalidade, ou apenas partes, da superfície do globo terrestre. Todas estas ocorrências, gigantescas e avassaladoras que são do ponto de vista humano, são incidentes triviais numa série de contínuas alterações que ocorrem numa escala cósmica, surpreendem a nossa imaginação pela sua imensidade e duração e reduzem todos os fenómenos terrestres a uma insignificância quantitativa. Em termos quantitativos, a vida humana é duplamente insignificante, pois desempenha um tão pequeno papel na história geológica do planeta, o qual não pode ser considerado separadamente do sistema solar nem este último separadamente do resto do universo.

Assim, se a vida humana tem algum significado de todo, não é no domínio da quantidade mas sim no domínio da qualidade. Valerá somente a pena preservar a vida humana em virtude do seu conteúdo qualitativo ou potencialidade qualitativa, ainda que a mesma tenha um aspecto quantitativo inerente, o qual não pode ser preservado a menos que se satisfaçam os seus requisitos quantitativos. A satisfação desses requisitos é justificada apenas até ao necessário para o desenvolvimento das potencialidades qualitativas da humanidade.

A maior dificuldade que surge no decorrer desta afirmação é que a natureza dessas potencialidades qualitativas não pode ser definida com precisão. Apenas a quantidade é mensurável, a qualidade como tal pode ser enunciada mas não medida. A qualidade é eternamente o que é, ou é percebida pelo que é ou não é percebida de todo. Nada pode expressar a sua natureza a quem não a percebe directamente. No entanto há que falar sobre qualidade, uma vez que é a chave para tudo; sem ela não há nada senão o caos da indistinção, a abstracção do número puro. Ao discutir qualidade, o mais que se pode fazer é comparar coisas que possuem uma qualidade com coisas que não a possuem. Ainda assim, a comparação é significativa apenas para alguém que conhece por experiência o que a qualidade em questão é.

Isto é tanto ou mais verdade para a qualidade, ou qualidades, que podem ser chamadas de “espirituais”. A palavra espiritual é inevitavelmente mal aplicada ou mal interpretada por qualquer um cujos limites da realidade coincidem com os limites da mensurabilidade. O mensurável é, em última análise, tudo o que pode ser contido nos poderes analíticos e descritivos do cérebro humano. Se não houvesse nada que transcendesse esses poderes, toda a qualidade poderia em princípio ser reduzida a quantidade. A distinção qualitativa essencial do homem reside nas suas potencialidades espirituais.

As convulsões terrestres envolvem a destruição periódica de vidas, humanas ou outras. Isto pode surgir-nos como algo terrível e tornar difícil compreender como é que um Deus todo misericordioso pode ter ordenado os acontecimentos desta forma. Esquecemo-nos que a lei da vida e da morte é aplicável não individualmente a criaturas vivas mas a tudo o que, por associação com a quantidade, é conferido uma forma, universos e o que fica para baixo. Tudo deve perecer; somente o Espírito, qualidade pura, é imperecível e sempre inteiramente ele próprio. Quer como indivíduos, quer como sociedades humanas, somos perecíveis. O Homem sempre soube isto, mas ao mesmo tempo também sempre considerou que deve haver, por assim dizer, algo por detrás de tudo, algo imperecível e maior que ele próprio. [1] Aceitar a perecibilidade e a dependência de nós mesmos e de todo o universo das formas, com toda a humildade que essa aceitação implica, é um prelúdio necessário para o entendimento da nossa situação, e tal entendimento é indispensável para uma actuação efectiva. No presente, os nossos alcances no domínio do quantitativo e do perecível parecem ter obscurecido a nossa dependência do qualitativo e do imperecível, confundindo por conseguinte o nosso sentido de direcção e frustrando muitas acções bem-intencionadas.

O que é que tem tudo isto a ver com agricultura? Tudo, na realidade; pela dupla razão de que o solo, resultado das convulsões terrestres, providencia a sua fundação física e que a relação da qualidade para com a quantidade, não apenas nos produtos finais da agricultura mas também na nossa abordagem aos seus problemas, envolve-nos a todos mais do que normalmente pensamos.

Do ponto de vista estrito da biologia e da economia, a agricultura é a fundação da vida humana no planeta e assim tem sido desde que o aumento da população ultrapassou as potencialidades de produção de alimentos da Natureza virgem. Uma vez estabelecida, torna-se na principal expressão do relacionamento entre o homem e a Natureza. Todas as restantes actividades humanas surgem como ramificações desta relação e são dela dependentes. Poderíamos seguir sem elas mas não sem a agricultura. Consequentemente, afecta-nos mais directamente que qualquer outra actividade; a qualidade das nossas vidas e a nossa posição é reflexo dela, e a sua qualidade reflecte-se em nós.

Esta verdade auto-evidente tem vindo a ser obscurecida pelas atracções e distracções do desenvolvimento industrial, mas surge-nos novamente, agora no seu aspecto quantitativo, devido ao rápido crescimento da população mundial. Este incremento parece acompanhar sempre uma revolução industrial. [2] Num período de tempo incrivelmente curto, o progresso industrial passou a ser o objectivo de quase todas as nações; e, uma vez estabelecido, um objectivo não é prontamente abandonado, especialmente quando a riqueza é o seu alvo e esta parece alcançável. Embora nos encontremos perante um risco de fome mundial dentro de poucas décadas, continuamos a dedicar uma proporção cada vez maior do nosso dinheiro e energia ao desenvolvimento industrial, cujas exigências são insaciáveis. A indústria gera constantemente novos crescimentos, que por sua vez criam novas oportunidades, mas com elas também novos desejos e novas necessidades. [3]

*


[1] Se não fosse assim, tanto ele próprio como o mundo perecível das formas seriam inteiramente irreais, uma mera ilusão passageira, sem causa e sem objectivo. Não só um tal conceito é contradito pela nossa consciência de existência mas é também, em última análise, desprovido de significado.

[2] Uma explosão populacional não é necessariamente ou somente resultado de mais ou melhor comida, habitação, ou atenção médica; por exemplo, nenhuma destas condições estiveram particularmente presente no início da revolução industrial britânica. Elas podem sem dúvida ajudar a sua concretização assim que esta começa, mas não são a sua causa.

[3] Curiosamente – ou talvez não tão curiosamente – os novos desejos são ao mesmo tempo os mais dispendiosos e os mais absurdos, por exemplo, televisão a cores, viagens cada vez mais rápidas e a colocação do homem na lua. Expansão pela expansão é a máxima; apenas pode ser alcançada mais rapidamente à custa de terceiros; quando todos a têm como objectivo, por toda a parte se exacerbam rivalidades entre interesses sectários, nacionais ou outros, e a preparação para a guerra, “fria” ou “quente”, torna-se de longe a maior consumidora de recursos.

Lord Northbourne

Lord Northbourne (1896-1982), Walter Ernest Christopher James, foi o 4.º Barão Northbourne de Kent, Inglaterra. Agricultor, educador, tradutor, cujos escritos versam sobre agricultura e religião comparada. Recebeu a sua educação em Oxford e foi Reitor do Wye College — o colégio de agricultura da Universidade de Londres. Lord Northbourne era um agrónomo perspicaz e escreveu um influente livro em 1940, Look to the Land. Neste livro, introduziu ao mundo o termo "agricultura biológica", bem como os conceitos relacionados com a gestão de uma proriedade agrícola como um “todo orgânico”. Depois de ler este livro, Marco Pallis contactou e introduziu Lord Northbourne aos escritos e às ideias tradicionalistas/perenialistas. Desde então, Lord Northbourne passou a adoptar este padrão de pensamento nos seus próprios escritos e a integrá-lo na sua própria vida, mantendo correspondência com muitos dos mais proeminentes escritores desta escola de pensamento, bem como com Thomas Merton. Os seus escritos são frequentemente citados como excelentes introduções à perspectiva tradicionalista, destacando-se também como tradutor e editor de importantes obras tais como The Reign of Quantity and the Signs of the Times, de René Guénon, Light on the Ancient Worlds, de Frithjof Schuon e Sacred Art in East and West, de Titus Burckhardt.


Publicações no “Sabedoria Perene”:

A agricultura e o destino humano

domingo, 14 de novembro de 2010

Dança

Como agradecimento a mais um maravilhoso espectáculo de dança tradicional da Índia, proporcionada pelas bailarinas Tarikavalli e Lajja Sambhavnath, ficam as seguintes palavras de Frithjof Schuon (Art from the Sacred to the Profane – East and West, World Wisdom 2007).

 * * *

A dança combina o espaço e o tempo, ao mesmo tempo que sumariza as restantes condições: a forma é representada pelo corpo do bailarino; o número, pelos seus movimentos; a matéria, pela sua carne; a energia, pela sua vida; o espaço, pela extensão que contém o seu corpo; e o tempo, pela duração que contém os seus movimentos. É assim que a Dança de Shiva sumariza as seis condições da existência, as quais são como que as dimensões de Māyā, e a priori as de Ātmā; se a Dança de Shiva, a Tāndava, traz a destruição do mundo, isto resulta precisamente do facto de fazer regressar Māyā a Ātmā. E é assim que toda a dança sagrada traz os acidentes de volta à Substância, ou o objecto particular, acidental e diferenciado, de volta ao Sujeito universal, substancial e uno (...)

Palavras Trovão

A tese do progresso indefinido depara-se com a seguinte contradição: se o homem pôde viver durante séculos sob a influência de erros e absurdos, – supondo que as tradições não são mais do que isso, e de tal forma que os erros e os absurdos seriam quase incomensuráveis – a imensidão de tal logro seria incompatível com a inteligência que atribuímos ao homem como tal e que somos obrigados a atribuir; dito de outro modo, se o homem é suficientemente inteligente para chegar ao “progresso” que encarna a nossa época, – admitindo que tal seja uma realidade – é a priori demasiado inteligente para ter sido enganado, durante milénios, por erros tão ridículos como aqueles que lhe atribui o mesmo “progressismo”; mas se, pelo contrário, o homem é tolo ao ponto de ter acreditado nesses mesmos erros durante tanto tempo, então ele é também demasiado tolo para os abandonar. Ou ainda, se os homens actuais chegaram finalmente à verdade, eles deveriam ser superiores em proporção aos homens da antiguidade, e essa proporção seria quase absoluta; na realidade, o melhor que se pode dizer é que o homem antigo – medieval ou da antiguidade – não era nem menos inteligente nem menos virtuoso que o homem moderno, bem longe disso. A ideologia do progresso é uma das absurdidades que impressiona pela falta de imaginação, bem como de um senso das proporções; é, de resto, essencialmente uma ilusão “vaishya”, um pouco como a “cultura”, que não é mais do que uma “intelectualidade” sem inteligência.

Frithjof SchuonCastes et Races

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A questão da promessa divina de proteção à Igreja

por Mateus Soares de Azevedo


Com relação à questão sobre a promessa do Cristo de proteção à Igreja (Mateus, 16: 18), posta pelo leitor do blogue Fábio Luque, é importante ponderar o seguinte.

A promessa divina não se refere apenas à Igreja Católica Romana. Pois a tradição cristã universal engloba três grandes confissões, ou correntes:

1. A Igreja Católica, cuja área providencial de atuação é, sobretudo, a Europa ocidental e as Américas, com extensões em África meridional, Oceania e partes de Ásia (como Filipinas e Coréia);

2. As Igrejas Ortodoxas Orientais, cuja área principal de atuação é o leste europeu e o Oriente Próximo, incluindo comunidades gregas, russas, melquitas, sírias etc estabelecidas nas Américas, na Oceania e Europa ocidental;

3. As igrejas protestantes originais, pré-liberais, sobretudo luteranas.

Jesus disse: “Onde dois, ou três, estiverem reunidos em meu Nome, eu estarei no meio deles”.

Frithjof Schuon interpretou os dois primeiros desta palavra divina como sendo o Catolicismo e a Ortodoxia. O terceiro, no condicional, expressa, entre outras possíveis interpretações, o caráter mais ou menos problemático e ambíguo do Protestantismo. Schuon escreveu, em seu magistral ensaio “A Questão do Protestantismo”, que este “manifesta incontestavelmente uma possibilidade cristã, limitada sem dúvida, e excessiva em algumas de suas características, mas não intrinsecamente ilegítima e, consequentemente, representativa de certos valores teológicos, morais e mesmo místicos. Se o Evangelismo - para usar o termo favorito de Lutero - estivesse situado num mundo como o do Hinduísmo, ele apareceria nesse particular como uma via possível, o que quer dizer que seria, sem dúvida, um darshana secundário entre outros (...)”.

Permitam-nos citar ainda algumas linhas deste mesmo texto, pois ele é bastante esclarecedor e, ademais, fornece uma resposta incisiva à opinião do grande René Guénon, que repelia o Protestantismo como manifestação heterodoxa e anti-tradicional no seio da Cristandade: “Poder-se-ia dizer analogicamente que a alma germânica - tratada por Roma de uma maneira demasiadamente latina, mas esta é outra questão - que esta alma, que não é grega, nem romana, sentia a necessidade de um arquétipo religioso mais simples e mais interior, um arquétipo menos formalista, portanto, e mais “popular” no melhor sentido da palavra; este é em certos aspectos o arquétipo religioso do Islã, uma religião baseada num Livro e conferindo o sacerdócio a todo fiel. Ao mesmo tempo, e de outro ponto de vista, a alma germânica sentia nostalgia por uma perspectiva que integrasse o natural ao sobrenatural, isto é, uma perspectiva tendendo a Deus sem ser contra a natureza; uma piedade não-monástica, todavia acessível a todo homem de boa vontade no meio das preocupações terrenas; uma via fundada na Graça e na confiança, e não na Justiça e nas obras; e esta via [o Protestantismo] tem incontestavelmente suas premissas no próprio Evangelho.”

Seja como for, e voltando o foco para a questão da promessa, creio que ela se refere fundamentalmente às igrejas ortodoxas, que não tiveram aggiornamento (como nota o grande William Stoddart em Remembering in a World of Forgetting (EUA, 2008, pp. 29-30), as igrejas orientais não sofreram estas três grandes ondas de destruição que devastaram a Cristandade ocidental: a Renascença, o Iluminismo e o aggiornamento).

A promessa vale também, certamente, aos grupos tradicionalistas católicos que não aceitaram a Weltanchauung conciliar e que lutam com grandes dificuldades, um pouco por todo mundo, para manter vivo o depósito da tradição que Cristo legou à sua Igreja, depósito este desprezado e mesmo “substituído” pela “nova” igreja, a de Roncalli, Montini, Woityla e Ratzinger. As igrejas católicas de rito oriental (melquita, armênia, ucraniana etc) estão igualmente cobertas pela promessa -- desde que, é claro, mantenham-se fieis à tradição que receberam do divino Mestre. Pois o importante aqui é ter claro que a promessa do Cristo não é incondicional, ou seja, ela não vale para aquelas partes de um organismo vivo como é a igreja que se corromperam ao longo do tempo e se desviaram da doutrina correta (este é o significado etimológico do termo grego “ortodoxia”).

As portas do inferno não prevalecerão contra a minha Igreja”, diz o Cristo na passagem do Evangelho de São Mateus citada. Hoje, não há dúvida que há correntes da tradição cristã que se corromperam ou se desviaram da “correta doutrina”, e a “nova igreja”, ou a igreja romana oficial, é desgraçadamente uma delas – ela certamente não faz parte da “minha igreja”. A promessa não cobre a heterodoxia; portanto, a promessa não cobre a “nova igreja”.

Civilização e Progresso

Publicamos desde já uma parte de uma selecção de trechos do capítulo Civilisation et progrès da obra Oriente et Occident do magistral autor tradicionalista René Guénon. A versão completa e definitiva desta tradução constará no terceiro número da Revista Sabedoria Perene.

*

A civilização ocidental moderna aparece na história como uma verdadeira anomalia: entre todas aquelas que nos são conhecidas mais ou menos completamente, esta civilização é a única que se desenvolveu num sentido puramente material, e este desenvolvimento monstruoso, cujo início coincide com o que se convencionou chamar de Renascimento, foi acompanhado, tal como estava fatalmente destinado, por uma correspondente regressão intelectual; dizemos correspondente em vez de equivalente, pois tratam-se aqui de duas ordens de coisas entre as quais não poderia existir qualquer medida comum. Esta regressão atingiu tal ponto que os ocidentais de hoje deixaram de saber o que é a intelectualidade pura, e tão pouco suspeitam de que tal possa existir; daqui resulta o seu desdém, não só pelas civilizações orientais, mas também pela idade média europeia, cujo espírito lhes escapa pouco menos completamente. Como fazer compreender o interesse de um conhecimento puramente especulativo àqueles para quem a inteligência é nada mais que um meio de agir sobre a matéria e de a sujeitar a fins práticos, e para quem a ciência, no sentido restrito em que a entendem, vale sobretudo na medida em que é aplicável para fins industriais? Nada exageramos: basta olhar em redor para se dar conta que é esta precisamente a mentalidade da imensa maioria de nossos contemporâneos; e um exame à filosofia posterior a Bacon e Descartes apenas confirmaria de novo estas constatações. Lembraremos apenas que Descartes limitou a inteligência à razão, que considerou como única função daquilo que acreditava poder chamar de metafísica a de servir de base à física, e que esta mesma física estava essencialmente destinada, segundo o seu pensar, a preparar a constituição das ciências aplicadas, mecânica, médica e moral – o limite último do conhecimento humano tal como o concebia. Não serão já estas tendências, assim formuladas, as mesmas que caracterizam, à primeira vista, todo o desenvolvimento do mundo moderno? Negar ou ignorar todo o conhecimento puro e supra-racional foi um abrir do caminho que logicamente poderia apenas conduzir, por um lado, ao positivismo e ao agnosticismo, os quais se entregam às mais redutoras limitações da inteligência e do seu objecto e, por outro lado, a todas as teorias sentimentalistas e voluntaristas, as quais se obrigam a procurar no infra-racional por aquilo que a razão não lhes pode dar. De facto, aqueles que nos nossos dias desejam reagir contra o racionalismo aceitam todavia a plena identificação da totalidade da inteligência com a razão, e crêem que aquela não é mais que uma faculdade puramente prática, incapaz de sair além do domínio da matéria. Bergson escreveu textualmente: "A inteligência, considerada no que parece ser a sua característica original, é a faculdade de fabricar objectos artificiais, em particular ferramentas para fazer ferramentas (sic), e de variar indefinidamente o seu fabrico" [2]. E novamente: "A inteligência, mesmo quando deixa de operar sobre a matéria bruta, segue os hábitos adquiridos nessa operação: aplica formas que são as mesmas da matéria desordenada. Ela está feita para este tipo de trabalho. Sem mais, este tipo de trabalho satisfá-la plenamente. E é isto que ela exprime ao dizer que somente assim atinge a distinção e a clareza" [3]. A partir destas últimas características podemos reconhecer sem esforço que não é a própria inteligência que está em causa, mas tão simplesmente a concepção cartesiana da inteligência, o que é bem diferente. E a "filosofia nova", como lhe chamam os seus aderentes, vai substituir a superstição da razão por uma outra, ainda mais grosseira sob certos aspectos, a superstição da vida. O racionalismo, ainda que impotente para se elevar até à verdade absoluta, deixava todavia subsistir a verdade relativa; o intuicionismo contemporâneo afunda esta verdade até ser não mais que uma representação da realidade sensível, em tudo o que ela tem de inconsistente e de incessantemente mutável; por fim, o pragmatismo acaba por fazer desaparecer a própria noção de verdade ao identificá-la com a noção de utilidade, o que resulta na pura e simples supressão da primeira. Se esquematizámos um pouco as coisas, de modo algum as desfigurámos e, quaisquer que possam ter sido as fases intermediárias, as tendências fundamentais são exactamente as que acabámos de descrever; os pragmatistas, indo até ao limite, apresentam-se como os mais autênticos representantes do pensamento ocidental moderno: o que importa a verdade num mundo em cujas aspirações, unicamente materiais e sentimentais e não intelectuais, encontram plena satisfação na indústria e na moral, dois domínios em que se pode bem passar sem conceber a verdade? Sem dúvida, não chegámos a este extremo num só golpe, e muitos europeus protestarão que não atingiram ainda tal extremo; mas aqui pensamos sobretudo nos americanos, que já se encontram numa fase mais "avançada", se assim o podemos dizer, da mesma civilização: tanto mentalmente como geograficamente, a América actual é verdadeiramente o "Extremo Ocidente"; e a Europa seguir-se-á, sem dúvida alguma, se nada vier impedir o desenrolar das consequências implicadas na situação actual.

Talvez mais extraordinária é a pretensão de fazer desta civilização anormal o próprio modelo de todas as civilizações, de considerá-la como "a civilização" por excelência, vista mesmo como a única merecedora desse nome. Igualmente extraordinária, e como complemento desta ilusão, é a crença no "progresso", encarado de um modo não menos absoluto e identificado naturalmente, na sua essência, com este desenvolvimento material que absorve toda a actividade do ocidental moderno. Ambas estas ideias de "civilização" e de "progresso", fortemente relacionadas, datam apenas da segunda metade do século XVIII, o que equivale a dizer que datam da época que, entre outras coisas, viu nascer também o materialismo [4]; estas foram propagadas e popularizadas sobretudo pelos sonhadores socialistas do início do século XIX. Deve-se reconhecer que a história das ideias permite fazer, por vezes, observações assaz surpreendentes e reduzir certas ideias fantásticas ao seu justo valor; ela o permitiria sobretudo se fosse feita e analisada correctamente, se não fosse, como acontece aliás com a história comum, falsificada por interpretações tendenciosas, ou limitada a obras de mera erudição académica, a investigações insignificantes sobre aspectos de detalhe. A verdadeira história pode ser perigosa para certos interesses políticos; e estamos no direito de questionar se não é por esta razão que determinados métodos, neste domínio, são impostos oficialmente e à custa da exclusão de quaisquer outros: conscientemente ou não, descartamos a priori tudo o que permitiria ver claramente as coisas, e é assim que se forma a "opinião pública". Mas regressemos às duas ideias acima tratadas e esclareçamos que, ao atribuir-lhes uma origem tão próxima, visamos unicamente esta acepção absoluta, e ilusória segundo a nossa opinião, que é a que mais comummente lhes é dada nos dias de hoje. O significado relativo que estas mesmas palavras são susceptíveis de ter é uma outra questão e, como este significado é muito legítimo, podemos dizer que se tratam neste caso de ideias que surgiram num determinado momento; pouco importa se elas foram expressas de um ou de outro modo e, se um termo é conveniente, não será pelo facto de ser criação recente que vemos inconvenientes em empregá-lo. Assim, não hesitamos dizer que existem "civilizações" múltiplas e diversas. Seria deveras difícil definir com precisão o conjunto complexo de elementos de diferentes ordens que constituem aquilo que se chama de uma civilização mas, todavia, qualquer um compreende bem o que se deve entender por tal. Não pensamos ser necessário tentar encerrar numa fórmula rígida as características gerais da civilização como tal, ou as características particulares de uma tal civilização; Este é um processo algo artificial, e duvidamos grandemente desses enquadramentos limitadores que tanto aprazem a mentalidade sistemática. Assim como há "civilizações", há também, no decurso do desenvolvimento de cada uma delas, ou de certos períodos mais ou menos restritos desse desenvolvimento, "progressos" que influenciam, não tudo de forma indiscriminada, mas este ou aquele domínio específico; Este não é senão, em suma, um outro modo de afirmar que uma civilização se desenvolve num determinado sentido, numa determinada direcção; mas, assim como existem progressos, existem também regressões, e por vezes até coexistem ambos em domínios distintos. Logo, insistimos que tudo isto é eminentemente relativo; se tomarmos as mesmas palavras num sentido absoluto, elas deixam de corresponder a qualquer realidade, e foi precisamente nesta época que elas passaram a representar estas ideias novas que existem há menos de dois séculos, e apenas no Ocidente. Certamente que "o Progresso” e “a Civilização", com letra maiúscula, podem ser muito eficazes em certas frases, tão vazias quanto retóricas, muito apropriadas para impressionar as multidões para quem as palavras servem menos para exprimir o pensamento do que para colmatar a sua ausência; estas desempenham um dos mais importantes papéis no arsenal das fórmulas de que os "dirigentes" contemporâneos se servem para conseguir o singular feito de sugestão colectiva, sem o qual a mentalidade especificamente moderna não saberia subsistir duradouramente. A este respeito não cremos ter alguma vez destacado suficientemente a analogia deveras notável que a acção do orador, por exemplo, tem com a do hipnotizador (a do domador pertence igualmente à mesma ordem); chamamos, de passagem, a atenção dos psicólogos para este objecto de estudo. Sem dúvida, o poder das palavras foi também exercido, em maior ou menor escala, em tempos que não o nosso; mas o que não tem paralelo é esta gigantesca alucinação colectiva através da qual toda uma porção da humanidade foi levada a tomar as mais fantásticas fantasias por realidades incontestáveis; e, entre os ídolos da mentalidade moderna, aqueles que aqui denunciamos são talvez os mais perniciosos de todos.
(...)

*

[2] L'Evolution créatrice, p. 151.
[3] Ibid, Pág. 174
[4] A palavra "materialismo" foi inventada por Berkeley, que dela se serviu unicamente para designar a crença na realidade da matéria; o materialismo no seu sentido atual, isto é, a teoria segundo a qual não existe qualquer outra coisa senão a matéria, remonta apenas a La Mettrie e a Holbach; não deve ser confundida com mecanismo, cujos exemplos podem ser encontrados mesmo entre os antigos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Forma e Substância nas Religiões




Divulgamos aqui a segunda publicação da Editora Sapietia: o magnífico "Forma e Substância nas Religiões" de Frithjof Schuon. Aqui fica o índice da obra e a ligação para uma apresentação do tradutor Mateus Soares de Azevedo.



Apresentação: Frithjof Schuon e o caminho da Metafísica, da Oração e da Virtude...
Prefácio do autor
1. Verdade e Presença
2. Forma e Substância nas Religiões
3. Atmâ – Mâyâ
4. Substância, Sujeito e Objeto
5. As Cinco Presenças Divinas
6. A Cruz Espaço-Tempo na Onomatologia Corânica
7. Observações sobre o Fenômeno Maometano
8. A Mensagem Corânica de Jesus
9. A Doutrina Virginal
10. Síntese dos Pâramitâs
11. Sobre o Elemento Feminino no Mahâyâna
12. O Mistério das Duas Naturezas
13. A Questão das Teodicéias
14. Algumas Dificuldades dos Textos Sagrados
15. Paradoxos da Expressão Espiritual
16. A Margem Humana
17. Sobre um Problema Escatológico
18. Os Dois Paraísos