terça-feira, 8 de março de 2011

O protesto da terra

Seguimos com a apresentação do terceiro número da revista Sabedoria Perene, o qual esperamos disponibilizar muito em breve. Os trechos seleccionados e apresentados de seguida foram extraídos de um texto de Charles le Gai Eaton publicado no livro “The Essential SOPHIA – The Journal of Traditional Studies”, Word Wisdom 2006. O texto, “The Earth’s Complaint”, foi inicialmente publicado no Volume 3 - nº1 da publicação periódica SOPHIA. Trata-se de um olhar corânico para a crise ambiental que vivemos, o qual comporta em si uma mensagem urgente para todos os homens, que continuam de costas voltadas e com “ouvidos moucos” para a terra e para os sinais de um iminente “protesto”.


Quando a terra tremer com um grandioso tremor, e a terra ceder aos seus fardos, e o homem gritar “O que a aflige?” – Nesse Dia ela contará as suas histórias, pois o seu Senhor a inspirou. Nesse Dia a humanidade sairá em grupos separados para lhe serem mostradas as suas acções. Quem quer que tenha feito o peso de um átomo de bem o verá nesse momento, e quem quer que tenha feito o peso de um átomo de mal o verá nesse momento.
Alcorão 99:1-8


Como reforço às implicações desta curta sûra, o Profeta terá dito que, quando nascer o Último Dia, a própria terra testemunhará tudo o que o homem fez. Poderia, assim, dizer-se, que deixamos as nossas impressões digitais em tudo o que tocamos, e que estas se mantêm bem para lá do momento em que seguimos o nosso caminho.

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Não existem lugares onde nos possamos esconder. Estamos, como nos relembra de diversas formas o Alcorão, rodeados de uma hoste de testemunhas, desde Deus e os Seus anjos até à terra que pisamos. Não lhes conseguimos esconder os nossos segredos. Por vezes me interrogo se será essa a razão pela qual os árabes tendem tanto para o secretismo. Sabendo que são observados de todo o lado, de cima e de baixo, estimam a única privacidade que lhes resta colocando um véu entre eles e o seu próximo, quer seja homem ou mulher. No outro extremo, os ocidentais actuais procuram desenfreadamente confessar tudo, não apenas aos seus amigos mas também na televisão e na imprensa. Ao se crerem sós, vedados e inobservados, eles sentem a necessidade de se auto-exporem como forma de escapar ao isolamento.

No entanto, o rasto que deixamos atrás de nós na terra é apenas um dos lados da relação recíproca que temos com tudo o que nos rodeia. Não somos estanques mas sim como que porosos. Ensopamos elementos de tudo quanto vemos, ouvimos ou tocamos, os quais absorvemos na nossa substância. Quando tratamos o mundo natural como um objecto a ser explorado e conquistado, estamos também a danificar-nos a nós mesmos. Os ambientalistas não deixam de ter razão quando predizem que o nosso abuso da terra terá consequências desastrosas para a humanidade, mas essa deveria ser a menor das nossas preocupações. As consequências ocorrem a vários níveis; quanto mais elevado o nível, mais mortais podem elas ser. O Alcorão ordena: “Não geres confusão na terra após este justo comando.” Quando diz também que a terra e tudo o que nela existe é criada para nosso uso, isto não implica uma transferência de propriedade; é uma incumbência a nós delegada, e respondemos perante o “Senhor de todas as coisas” pelo nosso ministério. O muçulmano é constantemente relembrado, quer no Alcorão, quer nos ditos preservados do Profeta, que a ganância e o desperdício estão entre os maiores pecados. Podemos usar aquilo que nos é disponibilizado para o nosso sustento, mas nada mais; e mesmo esse pouco não é mais do que um roubo se abandonámos a nossa função humana e decidimos renunciar a oração universal que transporta toda a criação de novo para a sua origem.

Ao muçulmano é garantido que toda a terra é para ele uma mesquita. As construções emparedadas para as quais é chamado para a oração são apenas uma conveniência. Os campos, as florestas e o deserto são igualmente adequados como locais de oração e, assim, exigem o mesmo respeito que é prestado a uma mesquita convencional. A ligação com o céu pode ser estabelecida em toda e qualquer parte (“Para onde quer que te vires, aí está a Face de Deus”). (…)

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Mas apreender, mesmo que de uma forma vaga, os “sinais de Deus” à nossa volta – aqueles sinais que o Alcorão refere repetidamente – exige os olhos de uma criança preservados na maturidade. É dito que o Profeta rogou em oração: “Senhor, acresce-me em espanto!” É esta a forma como uma criança vê o mundo, puro como acabado de criar pela mão de Deus e repleto de maravilhas. No entanto, com a passagem dos anos e das ansiedades que o tempo impõe, essa visão esmorece; por outro lado, nas palavras do Alcorão: “Não são os olhos que cegam, mas os corações nos peitos que cegam.” Imbuído de fé, o coração ainda pode recuperar a sua visão, a sua intuição. Depois da chamada para a oração, quando os muçulmanos se alinham em filas apertadas atrás do seu Imam, o líder da oração, eles são chamados a gastar alguns instantes na renúncia de todas os cuidados do dia e de todos os assuntos urgentes que prenderam a sua atenção, a virar a sua face para o Criador e Lhe dirigir a palavra. Por vezes o Imam oferece-lhes alguns concelhos: “Rezem como se esta fosse a vossa primeira oração!” Cada vez que nos voltamos para Deus é um novo começo, um renascer, e o mesmo deveria suceder quando olhamos, com os corações despertos, para o mundo que nos rodeia.

Ao agirmos assim devemo-nos lembrar que nada é o que parece, ou melhor, que nada é apenas aquilo que parece. Tal como com os versos do Alcorão (no árabe, a mesma palavra é usada para versos e para “sinais” na natureza), existe um significado literal e, ao mesmo tempo, um significado mais profundo. Os versos são sagrados, tal como o são os “sinais”. É aqui que chegamos a um dos sintomas mais perigosos da alienação; a perda do sentido do sagrado no mundo moderno, uma perda – uma privação – que afecta tanto a Umma muçulmana como o ocidente. O Alcorão condena aqueles que separam aquilo que Deus juntou, e a fragmentação que vemos hoje é um exemplo claro desta separação de conexões. O crítico francês da nossa civilização tecnológica, Jacques Elull, referiu que, no passado, a experiência profunda do sagrado era o seu contacto imediato com o mundo natural. É praticamente impossível compreender totalmente o que é a religião – ou os grandes mitos que testemunhavam a unidade do cosmos – quando a natureza se tornou remota e inteiramente “outra”. Como diz Elull, o sentido do sagrado decai quando deixa de ser rejuvenescido pela experiência. A percepção dos habitantes das cidades seca em resultado da falta de suportes na sua nova experiência no mundo artificial da tecnologia urbana.

A perda de harmonia entre o homem e o seu meio ambiente natural não é mais do que um aspecto da perda de harmonia entre o homem e o seu Criador. Aqueles que viram as costas ao Criador e O esquecem, não mais se podem sentir em casa na criação. Eles assumem o papel das bactérias que acabam sempre por destruir o corpo que invadiram. Desta forma, o “Vice regente de Deus na terra” não mais detém a custódia da natureza e, ao perder a sua função, é um estranho que não reconhece os marcos ou que se conforma com os costumes deste lugar; alienado, vê-o apenas como matéria-prima a explorar. Ele pode encontrar riquezas e conforto na exploração, mas não a felicidade. Ele nunca poderá cantar como o poeta persa Sa’di:

Eu estou radiante com o cosmos,
pois o cosmos recebe a sua alegria através Dele;
eu amo o mundo,
pois o mundo a Ele pertence.

(…)

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