sábado, 24 de novembro de 2012

Sugestão de prenda para o Natal




Com a aproximação do Natal, deixamos como sugestão de prenda esta belíssima obra da editora de livros para criança e jovens Wisdom Tales. Este livro reúne passagens seleccionadas dos Evangelhos para criar um conto de Natal que relata o nascimento e a infância de Jesus, incluindo a Anunciação, a Visitação, a adoração dos Reis Magos, a Apresentação no templo, e a fuga para o Egipto, e também o inspirador Sermão da Montanha. O livro só existe, até ao momento, em língua inglesa, mas as passagens seleccionadas estão identificadas e é muito simples constituir o conto com a ajuda de uma versão portuguesa da Bíblia.

Este livro de qualidade superior, que bem poderá tornar-se uma leitura clássica para um Natal em família, contém reproduções magníficas de pinturas, esculturas, iluminuras e vitrais de todo o mundo, que ilustram de forma brilhante o relato. Uma prenda que certamente fortalecerá o espírito de Natal dos mais pequenos, mas também o dos graúdos.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Olho do Coração (Chante Ishta)

Para além do livro que resultou da interacação de Hekaka Sapa com o poeta John Neihardt no início da década de 1930, Alce Negro Fala, deixamos também nota de uma outra obra repleta de ensinamentos espirituais da religião dos Indíos Sioux, tal como transmitidos pelo mesmo Alce Negro a Joseph Epes Brown, duas décadas depois.
Aqui fica uma pequena mas profundíssima passagem, bem como o indíce da primeira edição do livro na língua francesa (1953).


É o desejo do Grande-Espírito que a luz entre nas trevas para que nós possamos ver não apenas com os nossos dois olhos, mas sobretudo com o Olho único que está no Coração - Chante Ishta - com o qual nós vemos e conhecemos tudo o que é verdadeiro e bom.

(em Hehaka Sapa: Les Rites Secrets des Indiens Sioux, Payot, Paris, 1953, p.69)






Table de matiêres:

Avant Propos (Joseph Epes Brown)

Introduction (Frithjof Schuon)

Préface de Hékaka Sapa (Wapiti Noir)

I. La Descente de la Pipe Sacrée

II. La garde de l'ame

III. Le rite de purification

IV. Límploration d'une vision

V. La danse du soleil

VI. L'apparentage

VII. Préparation de la jeunne fille aux devoirs de la femme

VIII. Le lancement de la balle

(ver também The Sacred Pipe: Black Elk's Account of the Seven Rites of the Oglala Sioux, University of Oklahoma Press, 1953)

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O que é Jesus? Ele é o Sermão da Montanha *


Pode-se (...) ler toda a Bíblia, do livro do Gênesis ao Apocalipse de São João, do Cântico dos Cânticos de Salomão e dos Salmos de Davi às cartas de São Paulo, mas não se encontrará algo que supere a sabedoria do Sermão da Montanha. Não parece haver, de fato, em toda a Sagrada Escritura, uma seção que concentre maior número de doutrinas e conselhos espirituais perenes e universais. Boa parte de tudo aquilo que o leitor da Bíblia dela se recorda deriva do Sermão: o Pai-Nosso; as bem-aventuranças; o sal da terra e a luz do mundo; a porta que se abre a quem bate; as “pérolas” que não devem ser lançadas aos profanos; os “tesouros” a serem acumulados no céu; o oferecimento da outra face etc. E o ponto mais formidável de todos: o amor aos inimigos. Não foi à toa que Santo Agostinho chamou o Sermão de “regra perfeita” da vida virtuosa [1].



Fonte inesgotável de instruções espirituais e morais, o Sermão é o cerne dos Evangelhos. Vamos mais longe ainda: é a quintessência de todo o Cristianismo. Num poema, Frithjof Schuon pergunta: “What is Jesus?” E responde: “He is the Sermon of the Mount” [2].
* Excerto do artigo O Sermão da Montanha segundo a filosofia perene (Mateus Soares de Azevedo, Interações, 7 11, pp. 77-86, 2011)
[1] Em De Sermone Domini in monte (Edições Santo Tomás, 2003. Tradução de Carlos Nougué).
[2] “Que é Jesus? Ele é o Sermão da Montanha.” em: Songs without Names IX (EUA: World Wisdom, 2006).



segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O Alce Negro e a Rainha Vitória


Alce Negro (1863-1950) foi um lider espiritual dos Oglala Sioux e um homem de medicina. Foi baptizado em 1903 e não encontrou nenhuma contradição entre as suas tradições tribais e o catolicismo tradicional de então.

Alce Negro ditou a sua autobiografia ao poeta John Neihardt em 1930. O resultado foi um dos melhores e mais acessíveis clássicos da espiritualidade dos tempos modernos, que ademais comunica a poderosa mensagem universal e intemporal da sabedoria ameríndia, tal como acontece, por exemplo, com as Cartas do Shaykh Darkawi no caso da mística islâmica ou com os Relatos do Peregrino Russo no caso do cristianismo em geral, e do hesicasmo em particular.

Aqui fica uma pequena passagem deste muito recomendado épico histórico e espiritual, que relata o encontro entre o Alce Negro e a Rainha Vitória durante um dos espectáculos do "Buffalo Bill's Wild West Show" em Inglaterra, no ano de 1887. 

Dançámos e cantámos, e eu era um dos dançarinos escolhidos pela Avó, porque era jovem e ágil e podia dançar de muitas maneiras. Nós estávamos defronte da Avó Inglaterra. Ela era baixa e gorda e nós gostávamos dela porque ela era boa para nós. Depois de dançarmos, ela falou-nos. Disse algo do género: “Tenho 67 anos de idade. Vi todo o tipo de povos por esse mundo; mas hoje vi o povo mais bem-parecido que eu conheço. Se me pertencessem eu não permitiria que vos andassem a exibir desta maneira.” Ela também disse outras coisas boas, e depois disse que teríamos que a visitar, pois ela também tinha vindo visitar-nos. Ela apertou a mão a todos nós. A mão dela era muito pequena e suave.


(…) Meia lua depois fomos ver a Avó. (…) O vestido dela era todo brilhante e o chapéu dela era todo brilhante e a carruagem dela era toda brilhante e também os cavalos. Ela parecia um fogo a vir. Quando ela chegou onde nós estávamos, a carruagem dela parou e ela levantou-se. Então todas aquelas pessoas se levantaram e bradaram e fizeram-lhe vénias; mas ela fez uma vénia a nós. Enviámos um grande grito e as nossas mulheres fizerem o trémulo. As pessoas na multidão estavam tão excitadas que ouvimos dizer que algumas dela ficaram doentes e caíram. Depois, quando ficou calmo, cantámos uma canção à Avó.
Esta foi uma altura muito feliz.

in Black Elk Speaks, The Premier Edition, pp. 177-178 (ver também edição portuguesa)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Educação à luz da tradição



Quase todos os países do mundo moderno estão a “reformar” os seus sistemas de educação. Todavia, apesar dos enormes esforços e recursos aplicados no ensino e na aprendizagem, os ministros da educação modernos revêm constantemente os programas curriculares numa tentativa de decidir o que as crianças devem aprender.
  
O entendimento da natureza humana foi esquecido, a par com a perda de um sentido do sagrado e de uma ligação com o Princípio Divino. Estes aspectos essenciais  para o bem das crianças neste mundo e para o benefício dos seus fins últimos nunca são comunicados nem compreendidos. Nas sociedades tradicionais, a educação era um meio através do qual o conhecimento do Princípio Divino e da sua relação com a alma humana era transmitida às gerações mais jovens.

Education in the Light of Tradition é uma compilação de textos que aborda um tema raramente discutido nos círculos filosóficos e educacionais. Esta publicação da World Wisdom é um contributo para a redescoberta das verdades e dos valores nos sistemas de educação tradicionais e para o aclarar das dificuldades sentidas nos sistemas públicos de educação moderna.

O quarto número da Revista Sabedoria Perene, a publicar em breve, incluirá traduções de alguns artigos também considerados nesta publicação da World Wisdom. Damos também a conhecer os conteúdos desta excelente publicação:

Editorial

I. Education and the Human Condition

FRITHJOF SCHUON
The Triple Nature of Man

ANANDA K. COOMARASWAMY
The Bugbear of Literacy
TITUS BURCKHARDT
The Traditional Sciences in Fez

WILLIAM STODDART
The Role of Culture in Education
M. ALI LAKHANI
Education in the Light of Tradition: A Metaphysical Perspective

ENES KARIĆ
Moral Tuition and Education

II. Education in Traditional Societies
CHARLES EASTMAN (OHIYESA) & JOE MEDICINE CROW
Traditional Native American Education
JAGADGURU OF KANCHIPURAM
Traditional Hindu Education

MARCO PALLIS
Education in the Borderlands of Tibet

SACHIKO MURATA
Learning in the Confucian Tradition

WILLIAM C. CHITTICK
The Goal of Islamic Education

ANNE FITZGERALD-LO
Education in Sub-Saharan Africa

III. Dilemmas of Modern Education

MARTIN LINGS
Education at the Eleventh Hour
SEYYED HOSSEIN NASR
Modern Education: Its History, Theories, and Philosophies

LORD NORTHBOURNE
Intellectual Freedom

GHISLAIN CHETAN
Schools Adrift

IV. Solutions for Education Today?
 
JEAN BIÈS
Transdisciplinary Education: Profiles and Projects

JAMES S. CUTSINGER
The Once and Future College: Rose Hill in Theory and Practice
GRAY HENRY-BLAKEMORE
Educating Young Children Today: An Interview with Elena Lloyd-Sidle

Book Reviews

JANE CASEWIT
L’Ecole à la Dérive: L’Enseignement Actuel à la Lumière de la Tradition Universelle
by Ghislain Chetan

SAMUEL BENDECK SOTILLOS
A Spirit of Tolerance: The Inspiring Life of Tierno Bokar
by Amadou Hampaté Bâ

Notes on the Contributors  

Note on the Editor

sábado, 14 de julho de 2012

Educação na Décima Primeira Hora

Regressamos ao tema do próximo número da revista Sabedoria Perene, a Educação, com a publicação de um pequeno trecho de um dos ensaios que surgirão neste número, Educação na Décima Primeira Hora, um belíssimo texto de Martin Lings

Assinalamos o facto de esta tradução ser o fruto de uma nova colaboração com a revista, e que o mesmo nos traz grande alegria e incentivo para continuar com este trabalho de disponibilizar para a nossa língua as palavras cada vez mais urgentes destes autores. 

Anunciamos, ainda, que é nossa intenção disponibilizar este novo número da revista até ao fim do verão, se Deus quiser. 


“Então”, poderia perguntar-se, “o que devemos ensinar?” A resposta é: tanto quanto possível, a verdade completa, o que significaria ensinar muitas verdades que não foram ensinadas em épocas melhores, uma vez que as necessidades da décima primeira hora não são as mesmas que aquelas da sexta ou da sétima. A título de exemplo, permita-se ensinar aos jovens, no final da escolaridade, que muitos cientistas conjecturaram – mas em nenhum sentido provaram – que a Humanidade evoluiu a partir de uma espécie inferior. Esta conjectura é um incidente na história actual. Mas permita-se ensinar-lhes ao mesmo tempo que a teoria em questão, que apenas passou pelas mentes humanas numa época relativamente recente, é o exacto oposto não apenas daquilo que a Bíblia nos ensina, mas também da opinião unânime de todo o mundo pré-Bíblico em todas as partes do globo. Em particular, a tradição das quatro idades do ciclo temporal, do Ouro, da Prata, do Bronze e do Ferro, que dominou a perspectiva da antiguidade clássica, remontando às trevas da pré-história, foi também prevalente desde tempos igualmente recuados entre os Hindus e os Índios Americanos. Ou, para tomar apenas um aspecto da conjectura evolucionista, nomeadamente o de que a linguagem humana evoluiu a partir dos sons inarticulados dos animais, fazemos notar que muito embora a origem da linguagem esteja para lá da nossa capacidade de averiguação, a ciência linguística pode ainda assim conduzir-nos a um passado muito remoto, e ensina-nos que as línguas mais antigas são as mais complexas e majestosas, sendo ainda as mais ricas na variedade dos sons consonantais. Todas as línguas actualmente utilizadas derivaram de linguagens mais elaboradas, que foram simplificadas e, de forma geral, mutiladas e corrompidas. Involução, e não evolução, é também o destino do significado de muitas palavras. Todos os estudantes deveriam estudar a já referida degradação da palavra “intelecto”. É um facto científico que em todo o mundo antigo o conceito das faculdades humanas estava mais exaltado e tinha um alcance mais vasto do que hoje em dia. 

Deixemos que os conceitos tradicional e moderno do universo – ou, se preferirmos, da realidade – sejam colocados lado a lado. De acordo com o pensamento moderno típico, supõe-se que a “realidade” tenha sido constituída originalmente pelo mundo material, e apenas por este. Diz-se que a vida terá surgido de uma “centelha” a partir da matéria, de uma forma que está ainda por explicar, e que os organismos vivos foram desenvolvendo faculdades psíquicas, a começar pelos sentidos, depois os sentimentos e a memória, e por fim, à medida que o próprio homem evoluiu gradualmente, a imaginação e a razão. Do outro lado, de acordo com a explicação tradicional, não é o mais elevado que provém do menos elevado, mas o menos elevado que provém do mais elevado; nem está a existência limitada ao psíquico e ao físico. A Origem Suprema – e Fim – de todas as coisas é a Verdade Absoluta, que detém a única Realidade no sentido cabal da palavra, e que manifesta ou cria, em níveis inferiores da realidade, o todo da existência. A teoria tradicional da existência, comum a todas as religiões, é resumida na tradição sagrada do Islão: “Eu era um Tesouro Oculto, e desejei ser conhecido, e assim criei o mundo”. O psíquico e o físico, alma e corpo, são os dois níveis inferiores da realidade, e juntos constituem aquilo a que chamamos de “este mundo”. Sobre eles está o domínio do Espírito, conhecido como “o outro mundo” do ponto de vista da vida na terra, mas sendo primeiro na ordem da criação, porque constitui nada menos que o “transbordar” primordial da própria Realidade Divina. A partir deste reflexo imediato do Tesouro Oculto, o domínio psíquico é projectado como uma imagem que por sua vez projecta o domínio físico. A linguagem do simbolismo, que é parte da herança primordial do homem, baseia-se nesta hierarquia dos níveis distintos do universo. Um símbolo não é algo escolhido arbitrariamente pelo homem para ilustrar uma realidade superior; consegue fazê-lo precisamente porque está enraizado nessa realidade, que o projectou, como uma sombra ou um reflexo, no plano da terra. Cada objecto terrestre é o resultado de uma série de projecções, do Divino para o espiritual, do espiritual para o psíquico, do psíquico para o físico. Mas neste plano inferior, que é o mais afastado dos Arquétipos Divinos, e que, estando instalado no tempo e no espaço, sofre um extremo de diferenciação e de fragmentação, é necessário distinguir entre objectos periféricos, que não são mais do que pálidos e fragmentários reflexos, e os objectos mais centrais de cada domínio, ou seja, de cada subdivisão dos reinos animal, vegetal e mineral. O termo símbolo está reservado para aquelas manifestações mais directas que reflectem os seus arquétipos com maior clareza, tendo assim o poder de suscitar uma “lembrança”, no sentido Platónico, da verdade transcendente que é simbolizada.

Tradução de Sílvia Leite

domingo, 8 de julho de 2012

Fulgores de Fátima

por Pedro Sinde


Depois de uma primeira colaboração com o texto “O botão da perplexidade no caminho da flor”, o Pedro Sinde presenteou-nos com o primeiro de um conjunto de ensaios que pretende escrever em torno das aparições de Fátima. 

Gratos, partilhamos de seguida um trecho do texto que poderá ser lido na íntegra aqui.



Fulgores de Fátima, I

O escapulário e o rosário: duas armas para a ‘grande guerra santa’


Para J.-C. P.

As palavras que se seguirão procurarão reflectir sobre alguns aspectos, eventualmente menos notados, das aparições de Fátima. Estes textos não têm nenhuma ordem explícita, são apenas reflexões que procuram olhar para o tema das aparições a partir de diferentes ângulos, de modo a ir extraindo vários aspectos que nem sempre aparecem explicitamente; trata-se, afinal, de uma das grandes manifestações dos céus: as primeiras aparições do século XX e as maiores de que se tem conhecimento.

O leitor achará natural a referência ao rosário no título de um texto sobre as aparições de Fátima, no entanto, poderá espantar-se por aí se fazer referência explícita ao escapulário. Há várias razões importantes para isso, mas seria suficiente dizer que a Senhora do Carmo foi a última forma de que a Virgem se revestiu, na derradeira aparição, a 13 de Outubro de 1917, com o escapulário no braço direito; de resto, a importância atribuída ao escapulário foi reconhecida por Lúcia ao afirmar (bem antes de 1960) que o escapulário “é parte integrante da mensagem de Fátima” e ainda que “o Escapulário e o Rosário são inseparáveis” (Kyliano Lynch, Nossa Senhora de Fátima e o Escapulário). Podemos ainda lembrar estes dois elementos: por um lado, a veneração da Senhora do Carmo em Fátima é muito antiga e, por outro, a própria Lúcia acabou por entrar no Carmelo.
Nesta última aparição, a Virgem mostrou-se sucessivamente sob três aspectos: primeiro como Senhora do Rosário, depois como Senhora das Dores e, finalmente, como Senhora do Carmo, isto é, mostrou, de forma eloquente, três aspectos ou etapas vitais de qualquer caminho espiritual. Podemos dizer, entre outras coisas, que para chegarmos à paz do Carmelo, ao jardim da Virgem, ao Paraíso na Terra, começamos pelo fervor da crença (ou do conhecimento), representado no rosário, e que, com a sua ‘luz’ e com o seu ‘calor’, vai fixar o volátil e dissolver o fixo: por um lado, vai fixar a mente dispersa (agora cativada pela luz do rosário) e, por outro, vai dissolver a ‘dureza do coração’, os aspectos da alma que estão ‘endurecidos’, a insensibilidade, quer dizer, vai despertar a alma, retirando-a do sono e da passividade – ou do esquecimento – em que vive, introduzindo no seu dia-a-dia estes momentos de graça, de meditação, de oração, de invocação. Para a alma decaída, a transformação é, naturalmente, dolorosa.

sábado, 7 de julho de 2012

Palavras Trovão

Aqueles que sustentam o argumento evolucionista de um progresso intelectual gostam de explicar ideias religiosas e metafísicas através de factores psicológicos de natureza inferior, tais como o medo do desconhecido, a esperança pueril da felicidade eterna, o apego a um imaginário que nos é caro, o escapismo onírico, o desejo de oprimir os outros de forma fácil, etc; como pode alguém ignorar que tais suspeitas, apresentadas despudoradamente como factos demonstrados, implicam inconsequências e impossibilidades psicológicas que não podem escapar a qualquer observador imparcial? Se a Humanidade tivesse permanecido estupidificada durante milhares de anos, não é possível explicar como teria deixado de o ser, especialmente porque tal aconteceu supostamente num espaço temporal relativamente curto; e isto é ainda menos explicável quando se observa com que inteligência e heroísmo se foi estúpido durante tanto tempo, e com que miopia filosófica e decadência moral nos tornámos finalmente "lúcidos" e "adultos". 

Frithjof SchuonDu Divin à l'Humain 
 
Tradução de Sílvia Leite

domingo, 1 de julho de 2012

Relação mestre-discípulo – no Ocidente!



Aquele que instrui um candidato para a Dança do Sol é o tunkansila. Isto significa que é mais do que um avô. O candidato passa a ser como um recém-nascido. O seu instrutor dirige-o em tudo. Ele não deve fazer mais do que aquilo que o seu instrutor lhe diz. O instrutor pensa e fala por ele, e diz-lhe como pensar e falar. O instrutor estabelece as regras e o candidato deve obedecê-las com precisão. O instrutor torna-se o outro eu do candidato. 

- George Sword, Teton Sioux


quarta-feira, 25 de abril de 2012

Se desejas que o teu caminho se encurte...

Se desejas que o teu caminho se encurte para que chegues rapidamente à realização, praticarás as obras de caracter “necessário” (al-wâjibât) e aquelas “supererrogações firmemente recomendadas” (ma taakada mîn nawâfili-l-khayrât); aprende da ciência exterior aquilo que é indispensável para servir Deus, mas não te detenhas aí, porque não se exige o seu aprofundamento; é a ciência interior que precisas aprofundar; e combate a cobiça; então verás maravilhas. O “caracter nobre” não é outra coisa senão a taçawwuf dos Sufis, tal como ele é a religião dos homens religiosos; e que Deus amaldiçoe aqueles que mentem! 

Também, fugir sempre à sensualidade [1], porque ela é o oposto da espiritualidade, e os opostos não se rejuntam. À medida que reforças os sentidos, enfraquecer-te-ás no espírito, e inversamente. Ouve o que aconteceu ao nosso mestre (que Deus esteja satisfeito com ele) no começo de seu caminho. Ele tinha acabado de malhar três medidas de trigo e fê-lo saber ao seu mestre, o senhor al-‘Arabî ben Ábd-Allâh, que lhe disse: “Se aumentas no domínio dos sentidos, diminuirás no do espírito, e se diminuis neste, aumentarás naquele”. Isto é evidente, porque enquanto te relacionares com as pessoas (mundanas), jamais sentirás nelas o perfume do espírito; não sentirás senão o odor do suor, e isto advém da sensualidade os ter subjugado; ela apoderou-se dos seus corações e dos seus membros: eles não encontram nenhum benefício senão nela, de maneira que só tagarelam, só se ocupam e só se rejubilam dela e dificilmente se desapegam dela; e todavia numerosos são aqueles que dela se desapegaram para mergulhar no espírito para o resto de suas vidas; que Deus esteja satisfeito com eles e que nos faça tirar proveito da sua bênção, Ámen, Ámen, Ámen! – É como se Deus (exaltado seja ele) não lhes tivesse dado o espírito (isto é, às pessoas mundanas), embora cada qual faça parte dele, assim como as ondas fazem parte do oceano. Se eles o soubessem, eles não se deixariam distrair pelas coisas sensíveis; e se eles o soubessem, descobririam neles mesmos oceanos sem limites; e Deus é a garantia do que dizemos. 

[1] Al-hiss, a sensualidade no sentido mais lato do termo, ou seja o apego à experiência sensível. 

in Lettres d'un maître soufi, Le Sheikh al-'Arabî ad-Darqâwî, Traduites de l'Arabe par Titus Burckhardt; Letters of a Sufi Master, The Shaykh ad-Darqâwî, Translated by Titus Burckhardt

domingo, 1 de abril de 2012

Espírito de tolerância

Tierno Bokar (1875-1939) foi um mestre espiritual sufi que viveu no Mali no início do séc. XX. Apesar dos incríveis obstáculos que enfrentou no decurso da sua vida, as suas palavras acabaram por ser preservadas através de um dos seus mais próximos discípulos, Amadou Hampaté Bâ. Estas suas palavras, registadas num livro que aqui recomendamos, A Spirit of Tolerance – The Inspiring Life of Tierno Bokar, são palavras de elevada inteligência espiritual, com uma enorme ênfase no amor, na caridade e numa fraternidade que desconhece fronteiras religiosas. As palavras que seleccionámos dizem respeito precisamente a este último aspecto e são, tal como toda esta obra, verdadeiramente inspiradoras. 


“Tierno,” perguntei-lhe um dia, “será favorável relacionarmo-nos com pessoas de outras fés para trocar ideias e melhor compreender o seu Deus?” Ele respondeu:
Porque não? Dir-te-ei: devemos falar com estrangeiros desde que sejamos capazes de ser cordiais e respeitosos. Ganharás enormemente com o conhecimento de diversas formas religiosas. Acredita em mim, cada uma destas formas, por muito que te possam parecer estranhas, contêm aquilo que pode fortalecer a tua própria fé. Por certo, a fé, tal como o fogo, deve ser mantida através de um combustível apropriado para que resplandeça. Caso contrário, enfraquecerá, perderá intensidade e volume e transformar-se-á em brasas, depois em carvão e por fim em cinzas.

Acreditar que a nossa raça ou a nossa religião é a única que possui a verdade é um erro. Isto nunca poderia ser. Na verdade, na sua natureza, a fé é como o ar. Tal como o ar, ela é indispensável para a vida humana e não é possível encontrar um homem que não acredite verdadeira e sinceramente em algo. A natureza humana é tal que não é capaz de não acreditar em algo, seja em Deus ou em Satanás, seja no poder ou na riqueza, seja na boa ou na má sorte.

Assim, quando um homem acredita em Deus, ele é nosso irmão. Trata-o como tal e não sejas daqueles que se perdem. A não ser que se tenha a certeza de possuir todo o conhecimento na sua totalidade, é necessário preservarmo-nos de nos opormos à verdade. Algumas verdades apenas nos parecem para além da nossa aceitação pela simples razão de que o nosso conhecimento ainda não teve acesso a elas.

Evita confrontos. Quando algo noutra religião ou crença te choca, procura ao invés tentar compreendê-lo. Talvez Deus venha em teu auxílio e te ilumine sobre o que te causa estranheza…
(…) 
O ensinamento religioso dado por um Profeta ou por um mestre espiritual autêntico é como água pura. Pode ser absorvido sem qualquer perigo para a nossa saúde espiritual ou moral. Esse ensinamento será inteligível e de uma ordem superior. Tal como a água pura, não conterá nada que o possa alterar pela modificação do seu sabor, do seu odor, da sua cor. Amadurecerá a mente e purificará o coração, pois não contém qualquer poluente externo que possa ter o efeito de ofuscar a alma ou endurecer o coração. Não podemos deixar de enfatizar os benefícios resultantes do estudo dos ensinamentos de outras religiões reveladas. Elas são, para todos, como a água potável. (…)

sábado, 31 de março de 2012

Citações espirituais


Melhor que mil afirmações desprovidas de sentido
É uma palavra significativa que,
Tendo sido ouvida,
Traz paz.

Melhor que mil versos desprovidos de sentido
É uma linha de verso significativa que,
Tendo sido ouvida,
Traz paz.

Melhor que recitar cem versos sem sentido
É uma linha do Dharma que,
Tendo sido ouvida,
Traz paz.

Maior no combate
Que uma pessoa que conquista
Mil vezes mil pessoas
É aquele que se conquista a si mesmo.

Dhammapada, tradução de Alberto V. Queiroz a partir da versão inglesa de Gil Fronsdal

Sobre o trabalho

Diz um provérbio árabe que reflete a atitude do muçulmano perante a vida: "a lentidão é de Deus, a pressa é de Satanás", o que nos leva à seguinte reflexão: como as máquinas devoram o tempo, o homem moderno está sempre apressado, e como essa perpétua falta de tempo cria nele reflexos de pressa e de superficialidade, o homem moderno toma esses reflexos — que compensam uma série de desequilíbrios — por superioridades, e despreza, no fundo, o homem antigo de hábitos "idílicos" e sobretudo o velho oriental de andar lento e turbante longo para enrolar. Já não se consegue representar, por falta de experiência, qual era o conteúdo qualitativo da "lentidão" tradicional, ou como "sonhavam" as pessoas de outrora; o homem de hoje contenta-se com a caricatura, o que é muito mais simples e lhe é mesmo exigido por um instinto ilusório de conservação. Se as preocupações sociais — de base evidentemente material — determinam em tão grande parte o espírito da nossa época, isso não se deve apenas às consequências sociais do maquinismo e às condições inumanas que ele engendra, deve-se também à ausência de uma atmosfera contemplativa que, no entanto, é necessária para a felicidade dos homens, seja qual for o seu "padrão de vida", para empregar uma expressão tão bárbara quanto usual. 

Frithjof Schuon

Retirado da publicação em "Vera Philosophia". Não deixem de aí ler este e outros textos rigorosamente seleccionados e comentados.

sábado, 24 de março de 2012

Cartas do Shaykh ad-Darqâwî


Esta preciosa tradução de excertos de cartas do Shaykh ad-Darqâwî, o fundador de um importante ramo da Ordem Shadhiliyyad do Norte de África, pertence a uma classe de literatura sufi que ainda não recebeu a devida atenção fora do mundo islâmico.

Cada carta é uma preciosa gema de sabedoria, uma chave indispensável para abrir certas portas que estão diante de cada viajante ao longo do Caminho. Quase todas as cartas dizem respeito ao método e aos aspectos operativos da Via, baseados nas técnicas centrais da invocação ou dhikr. Neste domínio, elas devem ser consideradas entre as mais directas instruções dadas sobre o método sufi que se podem encontrar em toda a literatura sufi, enquanto, geralmente, os mestres têm preferido referir-se às técnicas espirituais propriamente ditas de forma alusiva. No entanto, ocasionalmente, também são discutidos aspectos fundamentais da doutrina sufi.

“A doença que está a afectar o teu coração é uma daquelas coisas que atinge o homem que Deus ama, pois, ‘entre todos os homens, os mais duramente provados são os Profetas, depois os santos, seguidos daqueles que, em maior ou menor grau, se lhes assemelham.’ Portanto não fiques abatido, uma vez que isto acontece muito frequentemente a homens cheios de sinceridade e amor, para que eles avancem em direcção ao seu Senhor. Através deste sofrimento, os seus corações são purificados e transformados em pura substância. Na falta de tais encontros com a realidade, ninguém alcançaria o conhecimento de Deus, longe disso, pois ‘se não houvessem arenas para as almas, os corredores não conseguiriam correr o seu percurso’, tal como é dito por Ibn ‘Ata-Illâh em Hikam, onde ele também diz: ‘Na variedade dos sinais e dos estados mutáveis, eu cheguei a reconhecer a Tua intenção em relação a mim, a de me mostrares todas as coisas, para que não possa existir nada em que eu não Te conhecesse.’ No mesmo sentido, os iniciados disseram: ‘É nestes tempos de rebelião que os homens se destacam de entre os homens. ‘No Alcorão está dito: Supõem as pessoas que serão deixadas em paz porque dizem ‘nós cremos’, e que não serão provados? (XXIX, 1).”

Ao disponibilizar estas cartas em língua inglesa, Titus Burckhardt prestou um serviço àqueles que buscam instrução espiritual. Ele também enriqueceu a literatura sufi nas línguas ocidentais e tornou disponível mais um documento de extraordinário poder e beleza, pertencente ao passado recente.

“Durante os seus primeiros anos em Marrocos, Titus Burckhardt imergiu na língua árabe e assimilou os clássicos do sufismo na sua forma original. Anos mais tarde, através das suas traduções, ele partilharia estes tesouros com um público mais vasto. Um dos seus trabalhos de tradução mais importantes foi o das cartas espirituais do ilustre mestre marroquino do século XVIII, Shaykh Mulay al-‘Arabi ad-Darqâwî. Estas cartas manifestam uma visão profunda e intensa de verdades metafísicas intemporais e, ao mesmo tempo, são um precioso documento de aconselhamento espiritual prático.”

William Stoddart

sábado, 18 de fevereiro de 2012

O Esoterismo Cristão Segundo Frithjof Schuon

Quando se fala de esoterismo cristão, pode tratar-se de três coisas:

Em primeiro lugar, pode ser a Gnose Cristã, baseada na pessoa, nos ensinamento e dons do Cristo, beneficiando-se ocasionalmente de conceitos platônicos, um processo que em metafísica não tem nada de irregular.[1]
Esta gnose se manifestou em particular, apesar de que de maneira bem desigual, em escritos como os de Clemente de Alexandria, Orígenes, Dionísio o Areopagita — o teólogo ou o místico, se se prefere — Scotus Erigena, Mestre Eckhart, Nicolau de Cusa, Jacó Böehme e Angelus Silesius.[2]

Em segundo lugar, pode se tratar de algo completamente diferente, qual seja, o esoterismo greco-latino – ou próximo-oriental – incorporado ao Cristianismo: pensamos aqui acima de tudo no Hermetismo e nas iniciações de ofício. Neste caso, o esoterismo é mais ou menos limitado ou mesmo fragmentário, ele reside mais no caráter sapiencial do método – hoje perdido – do que na doutrina e no objetivo; a doutrina era principalmente cosmológica, e consequentemente o objetivo não transcendia os “Pequenos Mistérios”, ou a perfeição horizontal, ou a perfeição “primordial”, se nos referimos às condições ideais da “Idade de Ouro”. Seja como for, este esoterismo cosmológico ou alquímico cristianizado – “humanista” num sentido ainda legítimo, posto que se tratava de restaurar ao microcosmo a perfeição de um macrocosmo sempre em conformidade com Deus – era essencialmente vocacional, dado que nem uma ciência, nem uma arte podem ser impostas a todo mundo; o homem escolhe uma ciência ou uma arte por razões de afinidade e qualificação, e não a priori para salvar sua alma. A salvação sendo garantida pela religião, o homem pode, a posteriori, e sobre esta base mesma, explorar seus dons e suas ocupações profissionais, e é mesmo normal ou necessário que ele deva fazê-lo quando uma ocupação ligada a um esoterismo alquímico ou artesanal se imponha a ele por um motivo qualquer.

Em terceiro lugar, e mesmo antes de tudo, e deixando de lado toda consideração histórica ou literária, podemos e devemos entender por “esoterismo cristão” a verdade pura e simples – verdade metafísica e espiritual – na medida em que ela é expressada ou manifestada mediante os dogmas, rituais e outras formas do Cristianismo. Formulado em sentido inverso, este esoterismo é a totalidade dos símbolos cristãos na medida em que eles expressam ou manifestam a pura metafísica e a espiritualidade una e universal. E isto é independente da questão de saber em que extensão um Orígenes ou um Clemente de Alexandria eram conscientes de tudo que está envolvido aqui; questão de resto supérflua, pois é evidente que, por razões mais ou menos extrínsecas, eles não poderiam ter consciência de todos os aspectos do problema tanto mais que foram largamente solidários da bhakti que determina a perspectiva específica do Cristianismo. Seja como for, é importante não confundir o esoterismo de princípio com o esoterismo de fato, ou uma doutrina virtual, que tem todos os direitos da verdade, com uma doutrina efetiva, que eventualmente pode não viver plenamente a promessa implicada em seu próprio ponto de vista.

Em relação ao legalismo judeu, o Cristianismo é esotérico em razão do fato de que é uma mensagem de interioridade: para o Cristianismo, a virtude interior toma precedência sobre as observâncias externas, ao ponto de abolir estas últimas.
Mas, seu ponto de vista sendo voluntarista, pode ser transcendido por uma nova interioridade, qual seja a da pura intelecção, que reduz as formas particulares a suas essências universais, e substitui o ponto de vista da penitência pelo do conhecimento purificador e libertador. A gnose é de natureza crística no sentido de que, por um lado, ela deriva do Logos – do Intelecto simultaneamente transcendente e imanente – e, de outro lado, ela é uma mensagem de interioridade e, portanto, de interiorização.





[1]
De maneira geral, influências intertradicionais são sempre possíveis em certas condições, mas fora de todo sincretismo. Incontestavelmente o Budismo e o Islã tiveram uma influência sobre o Hinduísmo, não lhe acrescentando novos elementos, bem entendido, mas favorecendo ou determinando a eclosão de elementos pré-existentes.



[2] Em outros termos: encontramos elementos de esoterismo sapiencial no gnosticismo ortodoxo – o qual se prolonga na teosofia de Jacó Boehme e seus continuadores –, depois na mística dionisiana dos renanos, e no Hesicasmo, bem entendido; sem esquecer este elemento parcial de esoterismo metódico que foi o Quietismo de um Molinos, traços do qual se encontram em São Francisco de Sales.

(Extraído de: L’Ésotérisme comme Principe et comme Voie, pp. 29-30 / Esoterism as principle and as Way, pp. 29-31)
Tradução de M.S.A.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A tarefa do educador moderno

A tarefa do educador moderno não é derrubar a selva, mas sim regar desertos.

C.S. Lewis, The Abolition of Man (1943)

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O elemento emocional

Continuamos com o tema da educação, desta vez com estas incisivas palavras de Frithjof Schuon.


A emotividade “percebe" e revela os aspectos de um bem ou de um mal que a simples definição lógica não consegue mostrar de forma directa e concreta: são os aspectos existenciais, subjectivos, psicológicos, morais e estéticos, quer da verdade, quer do erro; ou os da virtude e do vício. Imaginemos uma criança que, por simples ignorância e, portanto, por falta de sentido das proporções, profere uma palavra blasfematória; se o pai se enfurece, a criança aprende “existencialmente” algo que não aprenderia se o pai se limitasse a uma dissertação abstracta sobre o carácter blasfematório da dita palavra. A fúria do pai demonstra à criança de modo concreto a extensão da falha, ela torna visível uma dimensão que de outro modo manter-se-ia abstracta e anódina; o mesmo se passa para os casos inversos, mutatis mutandis: a alegria dos pais torna tangível para a criança o valor do seu acto meritório ou da virtude como tal. 

Contra toda a experiência e o bom senso, alguns adeptos da psicanálise – senão todos – consideram que jamais se deve punir uma criança, pois, pensam eles, o castigo os “traumatizaria”; aquilo que esquecem é que uma criança que se deixa traumatizar por um castigo justo – logo proporcional à falha – é já um monstro. A essência de uma criança normal é, sob um determinado aspecto, o respeito aos pais e o instinto do bem; um castigo justo, ao invés de o ferir profundamente, ilumina e liberta-o, projectando-o, para o dizer de alguma forma, na consciência imanente da norma. É certo que existem casos em que os pais se equivocam e, em resultado, a criança é traumatizada, mas a criança normal, ou normalmente virtuosa, não se deixará cair numa amargura vindicativa e estéril, bem pelo contrário: ela retirará a melhor parte da sua experiência, graças à intuição de que toda a adversidade é metafisicamente merecida, pois nenhum homem é perfeito sem adversidades.

Frithjof Schuon - Résumé de métaphysique intégrale (Le courrier du livre, 1985)

Informação

Com esta publicação pretende-se chamar a atenção para duas recentes adições nas nossas referências para fontes na Internet, as quais merecerão, por certo, toda a atenção dos nossos leitores. Aqui ficam: 

Vera Philosophia - Extratos de textos do filósofo Frithjof Schuon, com pequenos comentários

The Matheson Trust – For the Study of Comparative Religion



domingo, 29 de janeiro de 2012

Anúncio do 4º ciclo de estudos: Educação


Como anunciado numa publicação recente, foi iniciada a preparação do quarto número da Revista Sabedoria Perene que será dedicado à Educação. Este olhar para a educação será à luz da Tradição, de todas as tradições religiosas e sapienciais da humanidade, e será, por certo, profundamente crítico da educação actual, a qual se encontra aparentemente, como muitos outros aspectos da nossa sociedade, num estado profundamente doentio, arriscamos mesmo dizer, terminal.

É nosso desígnio que esta constatação resulte evidente do trabalho monográfico que será apresentado e que, não só as razões para tal infortúnio sejam apontadas, como também iluminadas as direcções para uma inversão deste caminho, em última análise, auto-destrutivo – pois o futuro da nossa existência como comunidade depende da educação dada aos nossos jovens.

Os trechos que se apresentam de seguida e que abrirão este ciclo de estudos ilustram bem o antagonismo entre as visões tradicionais e a visão moderna da educação. Mostram eloquentemente a incomensurável distância entre um mundo centrado no individualismo e outro que, vendo "Deus em toda a parte”, vê no outro a si próprio.


(…) E isto resulta, finalmente, que quando se passa de um ano para outro – ou mesmo espacialmente de uma sala de aula para outra – as conclusões podem ser diametralmente opostas. Mais isso não importa nem perturba ninguém, desde que seja garantida a liberdade de expressão. Trata-se de um total e absoluto desprezo da Verdade, o qual encontramos inevitavelmente – e em diversos graus – em todos os níveis da sociedade. Na maior parte das situações em que dois indivíduos emitem uma opinião contrária, é considerado adequado exigir que cada um deles “faça um esforço” para conseguir chegar a um “acordo” que se considerará “pelo menos uma verdade objectiva” (cada um sacrificando, de certa maneira, um pouco da sua subjectividade, sem falar da sua pretensão e do seu orgulho); e tudo isto sem dar qualquer importância à dignidade e ao valor intrínseco das personagens, nem tão pouco à profundidade da opinião emitida. (…) [mas] A verdade não é uma questão de “acordos” feitos de fraquezas e de subtis hipocrisias (…)

Ao agir deste modo numa sala de aulas, recusa-se tomar consciência que se está a encerrar o aluno nos estreitos limites do seu ego, o qual é incitado a uma espécie de autocracia. Pouco a pouco, torna-se insensível a qualquer coisa diferente da sua própria opinião, expressão da sua personalidade e da sua liberdade. Para mais, não se está longe de pensar que quanto mais a sua opinião é diferente dos seus colegas, mais ele dá prova da sua personalidade. E é esta, sem qualquer dúvida, a mais temível das prisões na qual se encerra um jovem: a sua própria. Uma célula limitada por todas as partes, tal como o é todo o indivíduo, e da qual se impede de sair sob pena de perder aquilo que chamamos de liberdade mas que é, na realidade, a pior das escravaturas. (…)

Extraído de 
de Ghislain Chetan


Uma das grandes lições que tínhamos que aprender era que devíamos ter uma grande força de vontade para ser desprendidos. Às crianças ensinava-se a dar aos outros e a fazê-lo com generosidade. Aquele que dava um presente sem valor não se podia considerar uma pessoa generosa. Tínhamos que oferecer as nossas posses até nos tornarmos pobres em bens materiais e até que não nos restasse nada mais do que o deleite e a alegria da nossa força desnudada. Era uma obrigação inevitável doar aos necessitados e aos desamparados, e quando as mães davam presentes aos débeis e aos anciãos davam uma parte desses presentes às crianças, para que eles mesmos pudessem oferecê-los por suas próprias mãos. As crianças lakota costumavam trazer para os seus tipis pessoas débeis e anciãs que passavam em frente à sua tenda. Se uma criança fazia isto a sua mãe devia preparar imediatamente uma refeição, pois ignorar a cortesia da criança seria algo imperdoável.

Uma vez que é muito fácil inspirar a compaixão de uma criança, os lakota aprendiam a oferecer presentes a todo o momento e em qualquer lugar, com o objectivo único de se converterem em pessoas fortes e valentes. O melhor guerreiro era aquele que se desprendia das suas posses mais queridas ao mesmo tempo que cantava de alegria e de bênção.
Luther Standing Bear
(Sioux Oglala)


Talvez o mais difícil da paternidade não fosse vigiar a conduta das crianças, mas sim vigiar a conduta adequada dos pais, uma vez que o método que usavam para ensinar os seus filhos era fazê-los observar detidamente a conduta dos adultos. As crianças lakota, que possuíam um grande vigor natural e que tinham as faculdades muito desenvolvidas graças ao contacto com a natureza, percebiam tudo através dos seus olhos e dos seus ouvidos. Assim, os pais lakota, tal como os restantes adultos, estavam submetidos a um exame contínuo da sua conduta e das suas conversas. Por esta razão, tinham que actuar da forma mais digna e exemplar possível.

Luther Standing Bear
(Sioux Oglala)

domingo, 22 de janeiro de 2012

Ofícios e a Tradição

Hoje deixo aqui mais uma muito generosa contribuição de um nosso amigo do outro lado do Atlântico, Alberto Vasconcellos Queiroz, que traduziu directamente do alemão o seguinte extracto do maravilhoso livro de Titus Burckhardt, “Fez, Cidade do Islão”.


Meu trabalho pode lhe parecer grosseiro, mas ele contém um significado sutil...” 

Eu conheci um penteeiro na rua de sua corporação, a mashshâtîn. Ele se chamava ‘Abd Al-Azîz (Servo do Todo-Poderoso), vestia sempre uma jelabá negra – a ampla túnica munida de mangas e de capuz – e um turbante branco com o lithâm, o véu de rosto, que emoldurava suas feições um tanto duras. O chifre para seus pentes ele o obtinha de cabeças de boi que comprava dos açougueiros. A testa com os chifres ele punha para secar numa área arrendada, depois retirava os chifres, abria-os longitudinalmente e os aplainava sobre o fogo, algo que devia ser feito com o maior cuidado, para que não rachassem. Desse material ele entalhava pentes e torneava caixas para antimônio, usado como cosmético para os olhos; isso ele fazia num torno muito simples, no qual ele conduzia com a mão esquerda um arco que, enrolado numa haste, a fazia girar, enquanto na mão direita ele segurava a faca e com um pé empurrava um contrapeso. Durante esse trabalho, ele costumava cantar suratas alcorânicas numa voz baixa. 

Fiquei sabendo que, em consequência de uma doença ocular que frequentemente se manifesta na África, ele já era meio cego e fazia seu trabalho mais pelo hábito que pela visão propriamente dita. Um dia ele se queixou para mim que a importação de pentes de plástico diminuía o seu ganho: “Não é somente triste que hoje, por causa do preço, os pentes ruins industrializados sejam preferidos aos pentes de chifre, muito mais duráveis”, disse; “é também absurdo que homens fiquem postados diante de uma máquina e tenham de repetir sempre o mesmo movimento sem ter o que refletir sobre ele, enquanto um antigo ofício como o meu cai no esquecimento. Meu trabalho pode lhe parecer grosseiro, mas ele contém um significado sutil, que não se deixa explicar pelas palavras. A mim mesmo ele só se revelou após muitos anos, e, mesmo que eu quisesse, não o poderia transmitir sem mais a meu próprio filho, se ele mesmo não pudesse alcançá-lo – e acredito que ele preferirá aprender algum outro ofício. Este ofício remonta de aprendiz a mestre até nosso Senhor Set, filho de Adão. Foi ele que o ensinou aos homens pela primeira vez, e o que um Profeta traz – pois Set era um Profeta – deve comportar em si um benefício particular, exterior tanto quanto interior. Isso eu fui entendendo gradualmente, que não há nada de fortuito neste ofício, que cada movimento das mãos e cada processo traz em si uma sabedoria. Mas nem todos o podem compreender. Contudo, mesmo que isso não seja compreendido, ainda é algo tolo e reprovável privar os homens do legado de um Profeta e fazer com que eles se postem diante de uma máquina para realizar dia-a-dia um trabalho que não tem sentido.” 

Portanto, a ameaça que hoje paira sobre os ofícios marroquinos não é somente um desafio exterior, mas também uma ameaça no plano da própria alma. Mesmo que nem todo artesão árabe medite com tanta consciência sobre seu ofício como aquele penteeiro, a maior parte dos ofícios ainda tem um conteúdo espiritual que, com as inovações da indústria moderna, ficará esquecido. 

Mesmo o aguadeiro, que não faz mais que encher nas fontes públicas da cidade sua pele de cabra para trazer aos bazares uma bebida fresca para os que têm sede, independentemente de se recebe deles alguma recompensa ou não, mesmo ele ainda mostra em toda a sua postura a dignidade humana, tal como nas terras européias ainda tem o camponês que lança com devoção a semente. 

Até mesmo o mendigo que se acocora diante das mesquitas e nas pontes e com sua veste cem vezes remendada exerce seu ofício, não pede com vergonha, mas diz ao passante: “Dê o que é de Deus!” ou canta com voz monótona um refrão religioso. 

Pois quase todos os que ainda não foram sugados pelos remoinhos do mundo moderno vivem aqui sua vida ainda como um papel provisório, que não empenha de forma definitiva sua alma, mas pertence à Divina Comédia desta existência terrena. 

(Titus Burckhardt, Fes, Stadt des Islam, Olten and 
Freiburg-im-Breisgau: Urs Graf Verlag, 1960, pp. 64, 69,70.)